Adriana Lisboa
Literatura Feminina: modos de
enterrar
05 de Março de 2005
Parece incrível que o tema “literatura
feminina” continue a receber essa atenção quase obsessiva em nosso
meio literário. É comum entre as escritoras um grande mal-estar
diante dessa espécie de subgênero, essa parte que lhes caberia no
latifúndio (patriarcal falocêntrico etc.) literário. A maioria delas
preferiria enterrar a categoria.
Mas o tema continua dando pano para
manga. Poucos foram os críticos que conseguiram, por exemplo,
receber a antologia organizada por Luiz Ruffato, “25 mulheres que
estão fazendo a nova literatura brasileira”, sem cair na tentação de
buscar a tal “voz feminina” em meio às autoras — que apenas têm em
comum o fato de serem mulheres escrevendo em diversos lugares do
Brasil contemporâneo, e ponto final. Se o projeto editorial favorece
a impressão equivocada, cabe ao leitor — que é autônomo — escapar a
ela e buscar não a inexistente unidade, mas a saudável diferença.
Recentemente, o editor de um website
cultural chegou a afirmar que três escritoras presentes num debate
na última Flip (Festa Literária Internacional de Paraty) confirmaram
a existência da literatura feminina através das leituras que fizeram
no evento: a primeira dedicou o livro a uma irmã gêmea imaginária. A
segunda teceu loas a uma poeta cigana. A terceira (e autora deste
artigo) leu um trecho passado numa cozinha. Segundo essa lógica,
poderíamos concluir: se os livros fossem dedicados a um irmão
imaginário, louvassem um poeta cigano e fossem passados, digamos,
numa borracharia, ou em frente à churrasqueira, caracterizariam uma
literatura masculina?
Os critérios pecam por uma lamentável
falta de rigor nessa discussão — como aliás em várias outras que têm
circulado pelo meio literário. É impressionante que o espaço da
crítica, já tão carente de vozes sérias, esteja abrindo os braços e
as pernas para “impressões de leitura” inadmissivelmente levianas e
superficiais (e, ao mesmo tempo, arrogantemente taxativas). Como já
foi dito, se hoje há um escritor em cada esquina, há pelo menos uns
dez críticos literários. Mas isso é pano para outra manga. E é
preciso registrar a essencial contribuição de nomes como Beatriz
Resende ao debate, defendendo a existência de um olhar literário
especificamente feminino, mas ao mesmo tempo refutando todos os
estereótipos sexistas (Beatriz aponta inclusive para o desdobramento
do entrave numa “literatura pós-feminismo”). Bem-vindas as
divergências: trata-se, neste caso, de discussão criativa. No outro,
de blablablá inconsistente.
A primeira e mais óbvia refutação da
existência de uma literatura feminina vem desse contraponto
rasteiro: jamais se falou de uma literatura masculina. É como se
essa última fosse, então, uma espécie de a priori, conjunto
dominante no qual se inscrevem subgêneros: o feminino, o gay, o
negro — além de masculino, o grande cânone literário é,
naturalmente, branco. Isso faz pensar nos patriarcas de antigamente,
que não se incomodavam que suas esposas tivessem “amiguinhas” (ou
seja, amantes), porque o sexo entre mulheres não era considerado
sexo.
Para recorrer a critérios literários
(e não a generalizações da época da vovó, como a de que cozinha é
lugar de mulher), o que seria, então, essa tal literatura feminina?
Há pelo menos dois ângulos a se analisar. O primeiro a definiria
através de uma leitura “de conteúdo”. Literatura feminina seria
aquela que tematiza “assuntos femininos” tais como a maternidade, a
sexualidade da mulher, a afetividade do ponto de vista “delas” — a
profusão de aspas é inevitável.
Mas de que diabos vale, então, a
escrita de ficção? Não se deve esperar que bons autores e autoras
tenham inventividade e talento suficientes para falar com
competência do Outro — seja o outro país, a outra classe social, o
outro tempo ou o outro sexo? O que dizer dos homens que se saíram
maravilhosamente bem na tarefa de narrar experiências de mulheres?
Ainda: a sexualidade de uma gueixa
japonesa, de uma stripper carioca ou de uma afegã mutilada pela
clitoridectomia, a maternidade de uma ativista do Greenpeace, as
monjas budistas do Nepal, as retirantes nordestinas — seriam as
experiências dessas mulheres, quando usadas como temas de obras
literárias, passíveis de reunião numa categoria “o feminino”? Diz
Rosa Montero: “Quero escrever sobre o gênero humano, mas por acaso
cinqüenta e um por cento da Humanidade são do sexo feminino.”
Com isso, passamos a um segundo viés
de análise da questão: o “feminino” na literatura estaria não na
temática, mas na maneira de narrar, marcando uma coloração
específica do texto, uma espécie de olhar privilegiado pelas
mulheres. Mas como definir esse olhar? Como encontrar, fora do
terreno da pura abstração, a unidade necessária para caracterizá-lo,
se mesmo em nossa época e entre as fronteiras do nosso país a
experiência de ser mulher é absolutamente heterogênea? Segundo
alguns, essa dicção feminina apontaria para o lírico, o elíptico, o
intimista etc. Aceitando esse critério, muitos senhores que conheço
deveriam, então, reivindicar o rótulo de literatura feminina para
sua obra. Além do que, essa divisão recorre a estereótipos, a uma
polarização irreal entre o Feminino e o Masculino — homens são de
Marte, mulheres são de Vênus.
Quando começamos a descascar com
seriedade a cebola, não parece sobrar muita coisa capaz de sustentar
essa discussão. Deveríamos dar um passo adiante e ver se vale a pena
desdobrá-la, aprofundá-la ou simplesmente enterrá-la. Mas,
sobretudo, que o debate se fundamente em critérios aceitáveis, em
valores literários, que se apóie não em impressão mas em reflexão.
Escritores de ambos os sexos merecem ser lidos pela qualidade
literária do que fazem, isentos de rótulos. No caso das mulheres,
essa é a única forma de honrar o lugar que vêm conquistando, a
duríssimas penas, numa História que quase sempre quis relegá-las ao
lugar de coadjuvantes. Do contrário, seguiremos todas sendo Amélias
boazinhas, e simplesmente substituindo pela prótese de silicone o
velho sutiã.
Adriana
Lisboa é escritora e tradutora, autora de “Caligrafias” |