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Pedro Salgueiro

Thomas Colle,  The Return, 1837

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Ensaio, crítica, resenha & comentário: 


Fortuna:


Alguma notícia do autor:

Pedro Salgueiro

 

Leonardo da Vinci, Embrião

 

Teresa Schiappa

 

 

 

 

 

William Blake, Death on a Pale Horse

 

 

 

 

 

Pedro Salgueiro



 

Pedro Salgueiro nasceu no Sertão do Inhamuns (Tamboril, Ceará, 1964), publicou O Peso do Morto (1995), O Espantalho (1996), Brincar com Armas (2000; 2.ª edição/On-line, França: Éditions 00h00.com, 2001), Dos Valores do Inimigo (2005) e Inimigos (2007), de contos; além de Fortaleza Voadora (2006), de crônicas, e Pici (2014), de pesquisa histórica. Prêmios: Academia Cearense de Letras, Ministério da Cultura/INL, Radio France Internationale – RFI (Prêmio da União Latina/Concurso Guimarães Rosa), Secretaria de Cultura do Estado do Ceará/SECULTCE, Secretaria de Cultura do Município de Fortaleza/SECULTFOR e Secretaria de Cultura de Sobral/CE (Prêmio Domingos Olimpio de Literatura). Contos publicados nas antologias Geração 90: Manuscritos de Computador – Org. Nélson de Oliveira (São Paulo: Boitempo, 2001), Os Cem Menores Contos Brasileiros do Século XX – Org. Marcelino Freire (São Paulo: Ateliê, 2004), Contos Cruéis: as narrativas mais violentas da literatura brasileira contemporânea – Org. Rinaldo de Fernandes (São Paulo: Geração, 2006), Quartas Histórias: contos baseados em narrativas de Guimarães Rosa – Org. Rinaldo de Fernandes (Rio de Janeiro: Garamond, 2006), Contos de Algibeira – Org. Laís Chaffe (Porto Alegre: Casa Verde, 2007), Todas as Guerras – Org. Nélson de Oliveira (Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2009) e Assim Você Me Mata – Org. Cláudio Brites (São Paulo: Terracota, 2012). Edita, com outros escritores, as revistas literárias Caos Portátil e Para Mamíferos. Organizou, em parceria, o Almanaque de Contos Cearenses (1997) e O Cravo Roxo do Diabo: o conto fantástico no Ceará (2011). Seu livro Dos Valores do Inimigo foi indicado pela Universidade Federal do Ceará para o seu vestibular, em 2005 e 2006, e Inimigos foi finalista do Prêmio Jabuti de Literatura, da Câmara Brasileira do Livro, em 2008.

 

 

 

 

 

 

 

Riviere Briton, 1840-1920, UK, Una e o leão

 

 

 

 

 

Ana Miranda

 


 

 

Fortaleza voadora

 

 

 

Fortaleza voadora, a expressão que dá título a este livro de crônicas, tem pelo menos dois sentidos. O primeiro refere-se ao pesado avião bombardeiro norte-americano que, durante a Segunda Guerra Mundial, pousava e decolava no campo do Pici, onde ficava uma das bases aéreas do Ceará, aberta aos aliados. O segundo sugere a palavra popular, local, de tom burlesco: voador significando distraído, e, por extensão, otário. Bem de acordo com nosso Pedro Salgueiro, que guarda em si a tradição dos dichos, da jocosidade, da graçola, da sátira cearense. Nascido na cidade sertaneja de Tamboril, que visitei recentemente, Pedro carrega, ainda, uma ironia devastadora, e cultiva uma hostilidade atilada contra o lirismo, o traço poético, ou a linguagem beletrista. Ele é seco, de pedra, feito aquelas paisagens de caatinga, no verão, ou os estampidos de armas de fogo que ressoam pela recordação sertaneja.

         Fortaleza, para Pedro Salgueiro, é a cidade madrasta. Quando mudou-se do sertão dos Inhamuns para residir na capital, ele sentiu a perda do paraíso. Acabara-se a infância, a liberdade das ruas e quintais interioranos, as brincadeiras soltas. Portanto, sua relação com a cidade é contraditória. Vai do ódio agourento, como vejo na primeira das crônicas deste livro, ao amor mais bucólico e radiante, presente em “Da memória dos relógios”, que fecha este volume com um sentimento de nostalgia. A saudade, aliás, é um dos afetos do nosso autor, que, no entanto, dosa qualquer doçura com um toque ranzinza e divertido.

Há toda uma família de escritores mal-humorados, que imprecam contra suas cidades, famílias, amores, paixões, sentimentos ou existência. Gregório de Matos, ou Millôr Fernandes, por exemplo. O paradigma seria, nos dias de hoje, Thomas Bernhard (falecido em 1989), que enfrentou o sentimento de orgulho saxão, vociferando contra a Áustria e tudo o que ali existia. Pedro Salgueiro poderia ser visto como um Thomas Bernhard cearense. Mas Bernhard é um romancista obsessivo, compulsivo, elíptico e barroco, enquanto Pedro Salgueiro é um contista de uma serenidade indolente, como se escrevesse deitado na rede da varanda. Seu comedimento o distancia dessa ovelha-negra da literatura germânica, e o aproxima do genial Dalton Trevisan. Mas Pedro é Pedro, e nos leva por um mundo que é seu, feito de lembranças de circos, charlatães de rua, quixotes de subúrbio, vampiros urbanos, vilas, bairros, dessa nossa “burrinha loura desmiolada pelo sol”. Um vôo rasante, em avião bombardeiro.                                                         


Direto para a página de Ana Miranda

 

 

 

 

 

 

Da Vinci, La Scapigliata, detail

Pedro Salgueiro


Conto lá, conto cá

O Povo, Fortaleza, Ceará, Brasil

Fortaleza, 10 de Novembro de 2001



LIVROS

Conto lá, conto cá

O lançamento local do livro Geração 90 - Manuscritos de Computador, antologia composta por 17 contistas brasileiros, acontece hoje, a partir de 17h30min, no Alpendre

Pedro Salgueiro

Pedro Salgueiro, contista: "É o gênero que escolhe a gente" (Foto: Dário Gabriel 24/09/98)

[10 01h 13min]


''Esta não é a antologia dos melhores contos da década de 90, mas dos melhores contistas surgidos na década de 90'', vai avisando o escritor e organizador do livro Geração 90 - Manuscritos de Computador (Boitempo Editorial, São Paulo, 2001), Nelson de Oliveira. A peneira já rendeu polêmica na imprensa. Pudera. Do time de mais de 50 contistas que estrearam nos anos 90, contribuindo para a vitalidade do gênero no Brasil, apenas 17 foram selecionados e tiveram fragmentos de suas produções publicadas. ''Tanto na prosa quanto na poesia, prefiro os livros que apresentam alguma pesquisa com a linguagem, que brincam com a semântica e a sintaxe, que evitam a todo custo cair no conservadorismo canhestro. Gosto mesmo é da invenção. Mas não das invencionices sem-pé-nem-cabeça!', adiantou Nelson, dando conta de critérios subjetivos que lhe renderam críticas mas não chegaram a estremecer o valor da obra.

Desafio tomado para si. ''Creio que o fato de eu ser contista, e de também ter estreado na década de 90, me fez ir atrás da minha família literária. Sempre me perguntava: que cara têm os escritores da minha geração? É possível falar numa Geração 90, da mesma maneira como se fala na famosa Geração 70, de Rubem Fonseca, Lygia Fagundes Telles e Sérgio Sant'anna? Isso me fez vasculhar sebos, bibliotecas e livrarias, à procura de coletâneas de contos lançadas na década de 90. Eu precisava descobrir, custasse o que custasse, quais eram as características da prosa curta brasileira do final do milênio'', observou Nelson. E se os contistas contemporâneos não se aproximam de seus mestres antecessores em termos de popularidade e reconhecimento, comemore-se a flagrante diversidade de linguagens e formas mapeadas de norte a sul do País.

''Teve um resenhista que escreveu que a Geração 90 foi a geração sem ruptura. Ora, e foi mesmo! E vejo isso como algo muito positivo. Está na hora das pessoas perceberem que o tempo das vanguardas, dos manifestos estéticos, dos dogmas e de tudo o mais já vai longe. Os contistas da Geração 90 dão continuidade à melhor prosa feita na década de 70. Hoje, é mais importante você depurar o que de melhor já foi feito, literariamente falando, do que ficar lançando modismos a cada seis meses'', opinou Nelson. Entre nomes depurados e já incensados pela crítica, vide Marçal Aquino, Fernando Bonassi e Cadão Volpato, dois cearenses: Jorge Pieiro e Pedro Salgueiro. Durante o lançamento local do livro, hoje, a partir de 17h30min, no Alpendre, os dois prometem falar sobre suas produções, na esteira de mais uma edição de Uma Conversa: Poesia.

''Soube da existência do Jorge Pieiro ao ler um resenha do Manoel Ricardo de Lima, publicada no caderno Vida & Arte, em 1999. O texto tratava de dois livros lançados nessa época: o Caos Portátil, do Jorge, e o meu Treze. Fiquei curioso em conhecer esse trabalho cujo título, Caos Portátil, tinha um quê de irônico e apocalíptico. Escrevi ao Manoel, pedindo o endereço do Jorge. Desde então nos correspondemos regularmente. Já a ficção do Pedro Salgueiro eu só fui conhecer meses antes do lançamento da antologia. Gostei muito do despojamento narrativo dos contos do livro Brincar com Armas. Seu realismo mágico é feito de frases curtas, de gestos rápidos, e isso me agrada'', credenciou Nelson.


SERVIÇO

Uma Conversa: Poesia - Lançamento do livro Geração 90 - Manuscritos de Computador (Boitempo Editorial, São Paulo, 2001, 264 páginas, preço médio: R$ 26,00), seguido de debate aberto ao público. Hoje, às 17h30min, no Alpendre (rua José Avelino, 495 - Praia de Iracema). Mais informações: 219.3032.


Quem é quem

Nelson de Oliveira nasceu em Guaíra (SP) e é diretor de arte. Publicou Fábulas (contos, 1995); Os saltitantes seres da lua (contos, 1997); Quem é quem nesse vaivém (novela infantil, 1998), Naquela época tínhamos um gato (contos, 1998), Treze (contos, 1999), Subsolo infinito (romance, 2000), Às moscas, armas! (contos, 2000), O leão que achava que era domador (conto infantil, 2001), O sumiço das palavras (novela infantil, 2001) e O Filho do Crucificado (contos, 2001). Participou da antologia Dois zero zero zero, da Komedi (2000). Entre os prêmios, destaque para o Casa de las Américas (1995).


Pedro Salgueiro nasceu em Tamboril (CE), é professor e funcionário público federal. Autor de O Peso do Morto (Contos, Editora Giordano, 1997); O Espantalho (Contos, Coleção Alagadiço Novo - Edições UFC, 1996) e Brincar com Armas (Contos, Topbooks, 2000). Por este último, levou o prêmio da Biblioteca Nacional (bolsa para obra em curso, voltada a escritores iniciantes), em 1997. Também venceu o Concurso Guimarães Rosa de Literatura, na França, promovido pela Rádio France Internationale, que adquiriu os direitos virtuais da obra, lançada no site 00h00.com/portugues.


Jorge Pieiro naceu em Limoeiro do Norte (CE), é diretor da Letra & Música Comunicação e professor de Literatura. Autor de Ofícios de Desdita (novela, 1987); Fragmentos de Panaplo (contos, 1989); O Tange/dor (poemas, 1991); Galeria de Murmúrios (ensaio, 1995); Neverness (poemas, 1996) e Caos Portátil (contos, Letra & Música, 1999). Este último pôs uma pulga atrás da orelha do crítico Wilson Martins, que ficou em dúvida sobre como classificá-lo: ''surrealismo extemporâneo'' ou ''a escritura do século 21''. ''Surtiu o efeito que eu queria'', comemorou Pieiro, avesso a categorizações.

 

 

 

Provocações entre pares

Jorge Pieiro

Jorge Pieiro diz escrever contemas, algo entre conto e poemas (Foto: Fábio Lima)

[10 01h 13min]


Toma lá, dá cá. Os escritores Jorge Pieiro e Pedro Salgueiro, presentes na antologia Geração 90 - Manuscritos de Computador, toparam entrevistar-se mutuamente. O Vida & Arte propôs a conversa virtual: cada um faria três perguntas ao outro, centrando foco em inquietações do momento, fossem elas 'literárias' ou não. Sem confetes. No papo rápido, a veia crítica, cortante, irônica. De ambos.


De Pedro para Jorge

Pedro Salgueiro - Jorge, cê que é chegado a um conto surrealista, me esclareça: o que um dos Estados com um dos maiores índices de miséria do país como o nosso quer lançando dois candidatos a Presidência da República? Fazer ficção surrealista ou é piada mesmo?
Jorge Pieiro - Com certeza, não é por mania de grandeza nem por molecagem, que seria muito típica por aqui. Poderia, numa melhor hipótese, ser uma tentativa de elevação da auto-estima, uma vez que a humildade cearense é secular e faz um mal danado. Vai ver que são indícios da tal globalização e do neoliberalismo se reproduzindo... Ou seria mais uma daquelas estratégias da acrobacia política, em que o acrobata nunca pede desculpas antes de cair? Qualquer das sugestões invalida uma comparação com o surrealismo, que é algo muito mais sublime. Se eu estiver enganado, desistirei de manuscrever no computador qualquer tipo de conto, principalmente os enquadrados como surrealistas. Afinal, não se deve misturar sonho e utopia com realismo de baixo calão.

PS - Por que os escritores de nossa terrinha brigam tanto entre si? Se não há leitores, muito menos editores, e nem se come mais ninguém com um bom poema?
JP - Brigam, é? Na verdade, nunca presenciei uma briga. Imagino que eles gostam é de festa, de movimento. Se isso é verdade, pode ser que seja devido à síndrome da ibijara - a velha cobra de duas cabeças -, questão levantada pelo poeta e crítico Floriano Martins, faz tempo, falando da inveja provinciana dos nossos artistas. Quanto à falta de leitores, não concordo com a afirmativa. Eles existem. O diabo é que os nossos livrinhos nunca chegam às listas dos mais vendidos ou porque não são mesmo interessantes... para eles. Quanto a um bom poema, ele acaba atrapalhando mesmo. O papel dele é outro. Não me pergunte qual.

PS - O que nossa Cidade, nosso Estado teriam para oferecer aos muitos navegantes que adentram esta taba de Alencar além do turismo dos três ''pês'': praia, piada de mau gosto e prostituição?
JP - Pensamentos imperfeitos com vastas emoções. Quem quiser que descubra por si mesmo. Esses navegantes são, afinal, sempre pirateados... Para mim, de pê, apenas um refúgio: panaplo, com minúscula, mesmo. Mas ninguém consegue chegar por ali...


De Jorge para Pedro

Jorge Pieiro - Os seus primeiros livros O peso do morto e O Espantalho apresentam contos que, em sua maioria, seguem a tradição do gênero. Alguns até caminham pela senda traçada por Moreira Campos. Isso lhe garantiu alguns prêmios literários. No entanto, você já me confidenciou que se diz cansado de escrever o que chamou, por analogia com a poesia, esses ''sonetos parnasianos'', para tentar uma nova formulação que seria, digamos, menos palatável aos juízes de concursos literários. Então, que caminho deverá ser seguido?
Pedro Salgueiro - É bom que estejamos sempre insatisfeitos com o que fazemos, acho que crescemos com isto. Apenas não tento forçar a barra com malabarismos estéticos, pirotecnias verbais. Acho que já chega de literatura vazia escrita com espalhafato. Procurarei sempre escrever legível, pois escrevo para seres humanos normais, sobre seres humanos comuns... também acho que o conteúdo é que deve ser inteligente, desconcertante... e não apenas a casca das palavras, somente para se mostrar profundo o que na maioria é apenas artifício, ludibriação. Nossa geração tenta (não sei se de forma consciente) obstruir estes malabarismos, não sei se conseguirá. Também: nem meus contos se tornarão piores por terem ganhado muitos prêmios literários nem os seus se tornarão melhores por nunca os terem ganhado, a qualidade literária de um texto não é medida por estes míseros parâmetros, ainda bem, acho.

JP - A antologia Geração 90 - manuscritos de computador é uma miscelânea de estilos. Você diria que seus contos estão em boa companhia?
PS - Meus pobres contos estão sim em boas companhias, chega a ser engraçado meus pequenos mundinhos de cidade do interior, de subúrbios distantes ali ao lado de tanta coisa boa, fico feliz mas sem nenhuma vaidade mesquinha. Muitos dos autores dali eu já conhecia de antes; sou leitor de todos eles... mas também ficaria feliz se no lugar dos meus trabalhos estivessem contos de tantos outros autores daqui que admiro e que não estão lá, como Tercia Montenegro, Napoleão de Sousa Jr, Astolfo Lima Sandy, Dimas Carvalho e outros, apenas para falar nos daqui e de minha geração.

JP - O que você acha dos seus contos?
PS - Não sou daqueles que coloca nos céus suas próprias coisas: diria apenas que são contos sinceros, escritos com muita dedicação, porém com muito sofrimento, insatisfação... quando os escrevo procuro ser o mais autêntico possível, sem máscaras nem subterfúgios. Mas sei de muitos que só escrevem por vaidade, para buscar aplausos... estes continuam sendo aquelas criancinhas precoces que ficam recitando versos na sala de estar para as visitas, e que depois olham para o pai orgulhoso esperando aplausos (como bem dizia Raduan Nassar).
 

 

 

 

 

 

 

 

 

Titian, Venus with Organist and Cupid

Pedro Salgueiro


 

Caro Soares

 

Pedro Salgueiro

Abraços e parabéns pelo seu livro maravilhoso: estou  mastigando-o devagarinho, cheirando... o cheiro daquele nosso sertão — épico: daquele sertão-mundo que só os que são poetas verdadeiros (como você e Gerardo Mello Mourão) tiram do pitoresco para retirar o épico. 

Parabéns, amigo! Sinto orgulho de conhecê-lo primeiro através de seus escritos.

Um grande abraço.

Pedro Salgueiro 

 

 

 

 

 

 

 

Winterhalter Franz Xavier, Alemanha, Florinda

 

 

 

 

 

 

 

 

Um esboço de Leonardo da Vinci

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

The Gates of Dawn, Herbert Draper, UK, 1863-1920

Carlos Augusto Viana

Diário do Nordeste, Fortaleza, Ceará, Brasil

19.11.2006


Fantasmas do eu: Solidão e abandono

 

 

Há em Pedro Salgueiro, (Dos Valores do Inimigo, Editora UFC, 114 páginas) um mundo escuro, mas, ao mesmo tempo, prenhe de vida - tal universo configura o grotesco: o mundo conhecido estranhado, porque distante de nós. O grotesco nasce quando o ser humano sente que nem tudo na natureza é harmonioso: o feio, ao lado do belo; o disforme, do gracioso; o mal, do bem; a sombra, da luz. É o mundo dos valores do inimigo, livro indicado para este vestibular da UFC.

 

 

 

A ficcionista, ensaísta e professora Lourdinha Leite Barbosa em seu ensaio ´Dos valores do inimigo e de outros valores da narrativa de Pedro Salgueiro´, considera que, na contemporaneidade, o conto ´é produto da complexidade dos novos tempos. Antes havia um modo de narrar que considerava o mundo como um todo, mundo que o escritor conhecia, compreendia e dominava com o seu saber onisciente. caráter de fragmentação´: Segurou o corrimão com dedos trêmulos, os olhos entre serenos e assustados, fez um esforço enorme e subiu no ônibus pelaCarlos Augusto Viana porta da frente. Cumprimentou o motorista sem obter resposta, levando muito tempo para atravessar o espaço desde os degraus até as primeiras cadeiras.

Tinha um ar de marinheiro de muitas viagens; os olhos acesos procuravam, brilhando quando encontravam outros bem mais jovens; selecionou uns tantos e ficou à espreita - um caçador analisando a presa. Segurou no suporte da cadeira e suspirou fundo, disfarçando em um assovio baixo, tentando se acalmar - os olhos, mais acesos, vasculhavam; mirou um par deles, bem novos, quase infantis; aguardou por instinto, paciente... e a moça, pensando entender o olhar, retribuiu com uma simpatia que puxou um sorriso no canto do lábio. O velho renasceu, a respiração dobrou, a pele do pescoço ficou avermelhada que nem um galo de briga. As idéias rodopiavam na cabeça, no longo espaço entre o sorriso da moça e as primeiras palavras.

- O senhor quer sentar? Sente-se - e, sem dar tempo à resposta, foi levantando-se.

O moço antigo sentiu o golpe, murchando; as idéias rodopiavam mais e mais na cabeça; pigarreou tentando ganhar tempo, e a boca, sem o seu consentimento, respostou:

- Não... não, obrigado! - Mas o corpo já vencido o levava à cadeira, ante a insistência da moça que alegava notar seu cansaço, e ainda por cima o segurou pelo ombro na ajuda inesperada.

O homem murchou de vez, encolheu os ombros; as mãos - que, até o sorriso, se mantinham firmes - retomaram o ligeiro tremor, o pescoço novamente enrugou-se, e ele então sentiu uma paz tranqüila e triste... como nunca havia sentido na vida´ (´Um velho´, p.112 -113)

Sobretudo, inquietante essa narrativa. Enquanto ação, há, tão-somente, os movimentos de um ´velho´, em um ônibus, dos ´degraus até as primeiras cadeiras´. A princípio recusa a ajuda de uma ´moça´ que lhe oferece um lugar, mas, ´o corpo já vencido o levava à cadeira´, onde, sentado, sente ´uma paz tranqüila e triste... como nunca havia sentido na vida´.

Mas do que trata a narrativa? Aparentemente, da degeneração oriunda da velhice: a precariedade dos movimentos, a dificuldade em ordenar os pensamentos, o cansaço, a discrepância entre o corpo e o espírito: o ´velho´ não deseja a ajuda, mas o corpo já não lhe obedece a vontade.

Uma leitura vertical, entretanto, abre caminhos a uma série de especulações.

Em primeiro lugar, a personagem, o ´velho´, age como um voyeur: ´os olhos acesos procuravam...´; ´os olhos, mais acesos, vasculhavam...´; depois, a metáfora ´um caçador analisando a presa´, bem como as suas reações quando deparou ´um par deles, (olhos) bem novos, quase infantis´, - reações como: suspirar fundo; aguardar, por instinto, pacientemente; o avermelhar-se da pele quando ´a moça, pensando entender o olhar, retribuiu com uma simpatia...´ - tudo isso pode apontar a possibilidade de tratar-se de um psicopata sexual. Observe-se a sutileza do símile: ´a pele do pescoço ficou avermelhada que nem um galo de briga´, pois alude a uma peleja, ao papel de predador.

É substancial o recurso da estilística da repetição: a reiteração das ´idéias´ que ´rodopiavam na cabeça´ serve de ponta entre o presente e o passado: na primeira aparição dessa passagem, as idéias rodopiam ´no longo espaço entre o sorriso da moça e as primeiras palavras´; por fim, tais idéias aparecem quando ele, o ´velho´, recupera - ou tenta fazê-lo - o ´moço antigo´ e sente ´o golpe, murchando´.

A expressão ´moço antigo´ é a imagem-chave da composição da personagem, pois, a partir desses opostos, é possível compô-la no passado, quando, vigoroso, entrava nos ônibus, selecionava a vítima e se punha à espreita, até que esta, ´pensando entender o olhar´, retribuía-lhe a gentileza, para, finalmente, converter-se em presa.

Até o sorriso da ´moça´, as mãos do velho ´se mantinham firmes´, pois ele entrara no ônibus carregando um caçador adormecido.

Assim, o sorriso da ´moça´, ao mesmo tempo em que reconstrói a antiga relação caçador X presa, inscreve no ´velho´ a sua realidade atual, por isso ele ´murchou de vez´, encolhendo os ombros - num gesto de resignação.

A ´paz tranqüila e triste... como nunca havia sentido na vida´ talvez faça alusão às torturas que tomam conta de um psicopata sexual após o gozo de exterminar sua vítima e o horror de fazê-lo. Tal passagem constitui um ritual; por isso, só quando mais uma vez apaziguado (há de encontrar um motivo - quase sempre de natureza mística - que lhe justifique o comportamento), voltará a agir.


 

Direto para a página de Carlos Augusto Viana

 
 
 

 

 

 

 

 

 

Um esboço de Leonardo da Vinci

 

 

Edmilson Caminha


 

“TE ODEIO, FORTALEZA...”

 

Assim começa Fortaleza voadora, a seleção de crônicas de Pedro Salgueiro - boa a partir do título, que tanto nos evoca o B-52, bombardeiro americano da segunda guerra, quanto o surrealismo de uma cidade a sobrevoar sua gente... Difícil escrever sobre a terra natal sem a pieguice da louvação, do derramamento fácil, do encanto que transforma em qualidade o que defeito é. Mas, como diria Nelson Rodrigues, ninguém com mais direito de falar mal do ente amado (seja cidade ou mulher) do Edmilson Caminhaque o amante... Falar mal, explique-se, com refinamentos de arte, segundo o título da coluna assinada outrora, no Correio da Manhã, por Carlos Heitor Cony.

Na Fortaleza voadora, resgatam-se do esquecimento bairros como Gentilândia e Parque Araxá, criaturas pitorescas como o “homem da cobra” e tipos que não deixam morrer a instituição do “pino”, costume cearense que deveria ser tombado como patrimônio imaterial, à semelhança do frevo em Pernambuco e do acarajé na Bahia. Não há, para os pinadores que têm na prática uma das razões de viver, barreiras cívicas ou mesmo religiosas: há quem declare tê-los visto em ação na platéia das paradas da Independência e até junto às beatas na procissão do Senhor Morto... De figuras assim é que se faz o espírito de uma cidade, a essência de um lugar, a natureza de um povo, por dizerem mais que os monumentos históricos e os discursos políticos.

Com suas crônicas, não desmerece Pedro Salgueiro a tradição do gênero na literatura cearense, em que se destacam nomes com o valor de Rachel de Queiroz, Mílton Dias, Ciro Colares, Guilherme Neto, Caio Cid, Lustosa da Costa e Juarez Leitão, além de outros. Somente obra desse quilate para ter, como revisores, ninguém menos do que Ana Miranda (também autora do excelente prefácio), Tércia Montenegro e Sânzio de Azevedo. Um verdadeiro luxo, dessa Fortaleza voadora que decola possante para voar em céu de brigadeiro...     


 

Edmilson Caminha: Escritor e jornalista, autor de Villaça, um noviço na solidão do mosteiro (1998), Drummond: a lição do poeta (2002) e Pedro Nava: em busca do tempo vivido (2003).


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