Antônio Carlos Secchin
A poesia de Afonso Félix de Sousa
“Aqui estou, um
pássaro exilado” é o primeiro verso do primeiro poema do
primeiro livro de Afonso Félix de Sousa e já sinaliza, de certa
forma, as três grandes direções que sua poesia iria perseguir. De um
lado, o “estar aqui” sublinha o pertencimento a um espaço; de outro,
o “pássaro” é símbolo e repositório imemorial do lirismo;
finalmente, o exílio aponta a perda ou a fratura de uma unidade
primordial, que apenas a fé na transcendência promete recompor.
Telúrica, lírica e mística – assim é a poesia de Afonso Félix de
Sousa. A terra, a mulher e o divino formam o eixo em torno do qual
gira a criação de Afonso.
Abrigado pelo selo
da revista Orfeu, órgão oficioso da Geração de 45, o poeta estréia
em 1948, com O túnel. Em geral, a (má) leitura que se faz
dessa Geração ( a supor que se faça alguma...) a descreve como
alienada e cultora de formas fixas. Porém, mais do que mero capricho
de um grupo de rapazes, a recusa aos valores pragmáticos e
explicitamente políticos foi tônica de grande parte da
intelectualidade ocidental pós-guerra, desencantada com os rumos de
um mundo agressivamente cindido entre comunismo e capitalismo.
“Os acontecimentos me aborrecem” é o verso que Drummond colheria
em Paul Valéry para servir de epígrafe a seu Claro enigma
(1951). Quanto à prática das formas fixas, ela representou uma
espécie de “classicização” (eventualmente extremada) da linguagem
poética contra o desgaste de certos procedimentos modernistas que se
esvaíram na repetição, levada a cabo pelos epígonos, das
“antifórmulas” inventadas pelos pioneiros de 22. É, portanto, nesse
ambiente de desconfiança frente a verdades políticas e poéticas que
o jovem Afonso pavimenta o seu Túnel. Na primeira parte, os
“Sonetos elementares”, em versos brancos, já atestam um virtuosismo
que faz o poeta transitar dos tetrassílabos do poema VII ao metro
bárbaro do XXII. A segunda parte, “Prolongamento”, em versos livres,
força a nota lírico-erótica, de um erotismo ao mesmo tempo intenso e
recatado ou, ainda, recatadamente exposto em sua intensidade:
“Helena a me arder no sangue/ eu trouxe lá de Goiás”.
O livro seguinte,
Do sonho e da esfinge (1950) apresenta o mesmo convívio de
versos livres, em geral longos, e de peças isométricas, a exemplo
dos decassílabos dos “Quartetos de contemplação e fuga”, que Darcy
Damasceno, ao apresentar a coletânea Pretérito imperfeito
(1976), considerou um dos ápices da poesia de Afonso. Um tom de
doída nostalgia perpassa o poema, tecido num hábil entrecruzamento
de imagens voláteis (“De pássaros sou feito, e quero espaços”)
com outras fundamente terrestres (“Ah! flor e espinhos/ no jardim
onde o amor dorme em raízes”). Fiel a seu título, o livro exibe
uma atmosfera fluida, haurida numa semântica do impalpável. A
ausência e o vazio, como categorias-chave, sustentam metáforas
lunares e noturnas, levando “a mundos que sentimos e não vemos”.
O discurso algo
etéreo das primeiras obras cede passo à celebração sensorial e
concreta da natureza em O amoroso e a terra, de 1953. João
Cabral, quase à mesma época, clamava contra o divórcio entre o
universo (em geral metafísico e autocentrado) do poeta e a realidade
cotidiana do leitor, e lamentava que formas populares de poesia
houvessem sido abandonadas em prol de uma sofisticação que
conduziria a arte ao hermetismo e à esterilidade. Um mundo solar,
ébrio de luzes, cores e cheiros, habita as páginas dos treze poemas
desse Amoroso, que se vale dos metros da redondilha para
acentuar o teor cantabile de versos que são pura alegria e
paixão: “As noites que lá se foram/ voltam dançando, e a catira/
que se escuta sempre longe/ é doce – ainda que fira./ O vento dá na
roseira,/mas meu bem, ninguém me tira”. Textos que trazem em
seus títulos toadas e abecês, como se o poeta estivesse retornando à
gramática primordial da poesia.
Recordar, de certo
modo, é reavivar uma “doce ferida”. Se O amoroso e a terra
enfatizou o adjetivo “doce”, a obra seguinte, Memorial do errante
(1956), incidirá no substantivo “ferida”. Sim, porque Goiás não é,
como se poderia ingenuamente supor, apenas um espaço; é,
antes, um tempo, transcorrido e perdido em algum recanto da
infância. Daí ser necessário cavar fundo na memória: não para reaver
o passado, mas para confrontar-se com seus despojos: “Como não
tinha amor, não guardei o rebanho/ para bem tarde ver que era eu o
desgarrado.// Como não tinha amor, descuidei-me das flores/ e é meu
peito, é meu peito o jardim em ruína”.
Trinta e seis
sonetos ingleses compõem Íntima parábola (1960), com versos
alexandrinos de rigorosa fatura, em que a seriedade e o tom elevado
não obstam a que o poeta rime “Rimbaud” com “maiô”.
Acentua-se o veio de uma “lírica do pensamento”, já vislumbrada nos
“Sonetos da meditação”, vazados em rimas toantes, da obra anterior;
reflexão agora acrescida de um tempero camoniano, claramente exposto
nas peças 12 e 16, ou veladamente esparso ao longo do livro. O
sentimento amoroso e suas armadilhas constituem o leit-motif
dessa Parábola, que, sendo exemplar e genérica, não deixa
também de ser “íntima”, ou seja, a partir de um amor o poeta
prospecta o amor. Mas, como “tudo é matéria ao canto”, o
sentimento humano se transmuda em amor divino, no derradeiro poema
do livro: “Tua presença é luz que tive entre meus braços/ e ,
terrível, mostrou-me os meus próprios pedaços”. Essa divindade,
simultaneamente amada e temida, é a figura lateral que, mais tarde,
ocupará o centro do mais recente livro de Afonso (Sonetos aos pés
de Deus).
Ao mergulho no
passado de O amoroso e a terra responde a imersão no presente
do poeta em Álbum do Rio (1965), lançado no ano da
comemoração do quarto centenário de fundação da cidade, e dedicado à
esposa de Afonso, a também talentosa poeta Astrid Cabral. Mais uma
vez optando por formas de maior singeleza e comunicabilidade (de que
uma epígrafe de Noel Rosa já era augúrio), Afonso investe na melodia
do “ponteio”, da “suíte”, da “balada”, do “assovio”, do “madrigal” e
de outras modalidades que irmanam o canto à poesia. E, no caso, um
canto público – o poeta como voz coletiva, expressa em “discursos”,
“improviso” e “aclamação”, palavras presentes em títulos de poemas e
que pressupõem audiência múltipla e indistinta, oposta ao intimismo
da tradição lírica – , algo similar ao que, no ano seguinte, João
Cabral de Melo Neto denominaria “poemas em voz alta”. Destaquemos
que, num canto tão polifônico, cabe até o minimalismo rítmico do
“Soneto ao bonde do jardim da Glória”, rara e exímia composição de
texto em verso monossílabo.
Chão básico &
itinerário leste (1978) surge após longo intervalo de 13 anos,
mediado pelo lançamento, em 1976, do já citado Pretérito
imperfeito, reunião da obra poética do autor. A parte inicial do
novo livro trata, basicamente, de perdas ( não se intitulasse
“Balanços” um dos poemas...). Mas, para além da pungência da
“Segunda glosa elegíaca”, sobre a morte da mãe, se destacam
igualmente notas de refinado humor e sutil auto-ironia, conforme se
lê em ‘A ilha deserta”, em “50 anos” (“Prossegue o jogo/ mas já
de cartas marcadas/ a ferro e fogo”) e sobretudo na muitíssimo
bem-humorada “Réplica do aposentado”. Itinerário leste
congrega peças escritas durante a estada do poeta no Oriente
Próximo, e que ora flagram aspectos da realidade árabe ora
restabelecem os elos nativos por meio de poemas-resposta a livros ou
mensagens oriundos do Brasil. Também no Itinerário desponta a
veia irônica de Afonso, como no texto-agradecimento por sua nomeação
para o exercício de missão comercial no Líbano (“Nossa ou deles a
oferta,/ o lucro é coisa certa/ e os contos do vigário/ aqui não têm
otário”). No conjunto, o livro se apresenta em linguagem
despojada, e com uma prática desenvolta do metro curto, menos usual
no conjunto da obra do autor.
As engrenagens do
belo, coroa de sonetos, publicado embora em 1981, é texto de que
o poeta se ocupava desde 1952, daí guardar certa semelhança formal
com livro do final daquela década, Íntima parábola, ambos
compostos no modelo inglês – em alexandrinos na Parábola, e
em decassílabos nas Engrenagens. Trata-se, agora, com a
mestria que se exige para urdir as quinze “jóias da coroa” de
sonetos, de celebrar o belo em suas irrupções ostensivas e
incontroláveis, e de sublinhar a necessidade de a beleza
corresponder a uma experiência visceral, pulsante e histórica –
ainda que de uma história forjada na imaginação- , contra a idéia de
um esteticismo sem raízes e apenas exteriormente perfeito. Outros
temas povoam a obra, como o amor, o desejo de diálogo e a afirmação
do deserto intransponível que medeia entre o eu e o outro. Nessa
empreitada de fino lavor metalinguístico, e francamente hostil a um
formalismo de fachada, Afonso atinge um de seus mais elevados
patamares: “O belo vem do sol do que já vimos.// Pouco nos toca o
inédito e o perfeito,/ se a perfeição se erige em templo gasto/ se o
inédito a si mesmo está sujeito/ além de ser a sua sombra e rasto”.
Qüinquagésima
hora (1987) é o (até agora) derradeiro livro do autor concebido
sem unidade temática. Tal diversidade, porém, faz-se acompanhar de
uma profunda homogeneidade no diapasão do sentimento que a exprime:
referimo-nos à inflexão arraigadamente pessimista que o autor
infiltra em seu discurso, concebendo a existência como uma sucessão
de desencantos. Leia-se, a propósito, essa pequena obra-prima sobre
a solidão e o desencontro que é “O hóspede”. Tristeza, olvido,
estranheza, aridez, amargura, melancolia e dissipação se aliam na
mais desesperançada coletânea de Afonso: “Morte completa/
dissolve em lento/ esquecimento/ um poeta”. Curiosamente, dois
textos já contêm o substrato dos livros subseqüentes. O fecho do
terceiro dos “Sonetos crepusculares” prenuncia a atmosfera dos
Sonetos ao pé de Deus. E “De pai a filho” evoca um ser – o filho
Giles, ainda vivo – num poema que, três anos depois, integrará a
comovente elegia de À beira de teu corpo.
O canto fúnebre ao
filho desaparecido encontra, em nossas letras, alguns predecessores
de alta estirpe: o “Cântico do calvário”, de Fagundes Varela, no
século XIX; ou, já no século XX, A lápide sob a lua (1968),
de Abgar Renault. A esses títulos agrega-se À beira de teu corpo
(1990), suíte de quarenta poemas, na dolorosa evocação de uma vida e
no clamor contra a morte, e que Antonio Carlos Vilaça julga o mais
belo livro de Afonso: “ao estreitar-te/ como se a ver-te/ num
sonho,/ o que eu abraço/ é o vazio”.
Finalmente, em 1994,
vêm a lume os Sonetos aos pés de Deus e outros poemas.
“Por tudo o que me dás louvado sejas,/ por tudo o que não dás sejas
louvado” é o dístico que encerra todos os vinte e nove sonetos
místicos do volume, reencenando a figura divina como pólo irradiador
do bem, mas igualmente da privação e da provação, gerando o misto de
amor e temor a que nos referimos. E esse encontro com Deus nos
remete, também, ao título que o autor escolheu para sua poesia
reunida: Chamados e escolhidos. Valemo-nos do preceito
bíblico para dizer que, também no reino dos poetas, muitos são os
chamados, e muito poucos são os eleitos. Entre esses, seguramente,
se encontra Afonso Félix de Sousa. Cronista, dramaturgo, impecável
tradutor de Villon, Donne e Garcia Lorca, mas sobretudo poeta - por
tudo o que nos deu louvado seja.
Leia Antônio Carlos Secchin
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