Alfredo Fressia
Crônica de Buenos Aires: Viagem à cidade íntima
No inverno de 1944 Cecília Meireles
(1901-1964) realizou uma viagem pelas duas capitais vizinhas do Rio
da Prata: Montevidéu e Buenos Aires. Dessa temporada platina a poeta
deixou uma série de crônicas que foram publicadas nos jornais do Rio
de Janeiro A Manhã e Folha Carioca. Naqueles textos
(reeditados em 1998 pela editora Nova Fronteira do Rio sob o título
Crônicas de viagem, volume 1) fica patente que Cecília amou
Montevidéu: ela diz isso explicitamente, descreve a cidade com um
carinho profundo e, ao deixar a capital uruguaia para ir a Buenos
Aires, despede-se assim: “Quero dizer-te adeus, e não posso,
Montevidéu – pois até o olhar dos teus cavalos me está prendendo a
ti. Mas se eu ficar, talvez nunca mais os veja, porque o ofício
humano é triste, e facilmente se vicia: os olhos deixam de ver o que
estão vendo sempre, e o coração se acostuma –e esquece-o..- aquilo
que se faz maravilha constante... Assim, para te amar, é melhor que
te deixe.”
Já do outro lado do rio, Cecília
compara argentinos e uruguaios. Empresa audaz: é opinião geral
–aliás como montevideano, eu partilho dela- que só nós mesmos
conhecemos nossas diferenças, que seriam digamos pouco visíveis para
os não rio-platenses. Porque certamente, há uma unidade chamada “Rio
da Prata”. Cecília era poeta, isto é, sabia ler o mundo nas suas
entrelinhas, e estabelece esta comparação: “Direi rapidamente uma
diferença que me ocorre, entre argentinos e uruguaios: nos
primeiros, parece pesar o sangue espanhol; nos segundos, o
português. O sangue português é lírico; o espanhol, dramático. Nós,
brasileiros, não sentimos nenhuma estranheza entre a gente uruguaia;
entre os argentinos sentimos uma diferença de índole. O argentino
pode ser extremamente cortês; não consegue ser terno. Essa aspereza
é que nos surpreende, mesmo quando lhes estamos admirando outras
qualidades, que sem dúvida possuem. O argentino é facilmente
anedótico, irônico, muito propenso à gargalhada –apesar da sua
aparência, a primeira vista, imponente, solene, austera.” (...)
E continua: “Reunião num ateliê de pintura. Penso que, no
Uruguai, provavelmente não estaríamos tão bem vestidos, falaríamos
de arte, recordaríamos algum episódio afetuoso, acontecido há
tempos, com um amigo já morto, que teria sido bom e triste.
Ficaríamos comovidos, sentiríamos o nosso parentesco de espírito,
estaríamos por momentos em silêncio, como num sonho; a noite
passaria levando-nos todos juntos por lugares aéreos – e chamaríamos
a isto ser amigos e estar felizes.”
As citações são compridas, é verdade,
mas também interessantes. A intuição da nostálgica felicidade
montevideana deve resultar correta se nos lembrarmos da data da
visita de Cecília. É bem provável que os montevideanos de 1944
fossem assim, nostálgicos e felizes, além de prósperos. Por outro
lado, os portenhos de Cecília também devem ter mudado muito porque
decididamente não são os que eu conheci há décadas e que voltei a
ver em julho de 2004. Os dela são talvez os portenhos narcisistas do
estereótipo. Ou será que a poeta tinha amado por demais os
montevideanos e, deslumbrada pelo carinho dado e recebido, não foi
capaz de avaliar os portenhos com justiça?
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Tenho há trinta anos um amigo
portenho. O chamarei G., será melhor usar só sua inicial. A gente se
conheceu em São Paulo, onde G. morou vários anos, nos ´70, em tempos
e circunstâncias propícias para que nossa amizade fosse profunda e
duradoura. G. apareceu alguns meses depois de fundado o quase mítico
primeiro grupo de militância gay do Brasil, um grupo que eu também
freqüentei. Por coincidência também éramos vizinhos. Morávamos no
centro, ele perto do Bexiga, eu no Centro velho. Eu vivia sozinho,
ele com uma amiga também militante gay.
Sinto orgulho daqueles tempos, ou
saudade, não sei, ou não importa. Mas eu ficaria horas a falar
daqueles rapazes mais ou menos próximos do grupo de militância
“dura”. Era ditadura pesada e eles se encontravam clandestinamente.
Havia entre eles poetas e ensaístas, largamente conhecidos hoje, e
até um americano que é há tempo um importante brazilianist na
academia dos EEUU. Um dos jovens era médico e poucos anos depois
seria coordenador da campanha contra a Aids, até se tornar uma
autoridade mundial, na ONU, na luta contra a doença. E também estava
meu amigo G., filho de um cantor de tangos (era sina), frei de uma
Ordem importante da Igreja Católica. Creio que ele não tinha chegado
a fazer os votos definitivos. Suas longas confissões giravam arredor
do sexo, esse tema impossível para a Igreja. –Padre, sou
homossexual, preciso realizar meu desejo, o que eu faço? –Reza, meu
filho, reza. O padre confessor devia saber o que dizia. Quanto a G.
não sei se parou de rezar (acredito que não), mais em compensação
foi embora da Ordem. Tão simples: G. queria viver. Na Argentina
daqueles anos, ser homossexual não constituía só um pecado, como
prática, era um delito juridicamente punível. Ao igual que seu amigo
o poeta Néstor Perlongher, que também viria morar em São Paulo
alguns anos depois, G. teve, digamos, um problema com a polícia de
costumes, providencialmente solucionado por um deputado amigo. E G.
foi-se, iniciou a aventura da liberdade sob o signo do exílio.
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Cheguei à noite na estação Retiro
devidamente doutrinado durante a viagem por minha vizinha de
poltrona, mulher magra, dedos finos como os de uma parca, para eu
nunca tomar um táxi naquela estação: “São todos ladrões. Um deles
tirou tudo que eu trazia. Agora só tomo remise quando volto
de Montevidéu onde meu filho mora”. Obedeci ao conselho da parca.
Gosto de ouvir falar os portenhos. Se há uma arte que quase todos
dominam -e dominam várias- essa arte é a da conversa. Pedi ao
motorista do remise –esse tipo de táxi mais sofisticado- que
não aproveitasse o fato de eu ser forasteiro para me passear
inutilmente pela cidade só para cobrar mais, que minhas economias
eram poucas. “Há os integrados e há os desesperados”, respondeu,
enigmático, enquanto guiava apressadamente. “Os apocalípticos?”,
perguntei para ver o que acontecia. “Sim, ou você se integra ou não
é ninguém”. “Bem, eu não sou ninguém”. “Eu também não”, ele disse,
acho que por solidariedade. A viagem resultou curta demais para as
reflexões que o motorista entabulou e as que certamente
desenvolveria –e motoristas assim só existem em Buenos Aires, ao
menos eu nunca tive essa sorte em Montevidéu ou em São Paulo, nem em
nenhum outro lugar. Finalmente deixou-me no hotel combinado da
avenida Corrientes -a rua dos cinemas e os teatros “de boulevard”. E
foi quando começou a barulheira.
É preciso dizê-lo: todas as grandes
cidades latino-americanas são barulhentas. São Paulo é barulhenta.
México também é. Mesmo Montevidéu, que não parece uma cidade imensa
(mas grande, sim), é barulhenta. O silêncio, ou talvez a impressão
de silêncio encontra-se mais na Europa. Várias vezes saí do Rio de
Janeiro para desembarcar em Paris, e sempre tive a impressão de um
contrabando de Infernos e de Paraísos. Ás vezes deixava o Paraíso
tropical e chegava no Inferno frio. Ou então chegava no Paraíso da
ordem urbana, de história reconhecível, e deixava o Inferno verde,
ou sua versão cinza, a Selva de pedra. Mesmo quando meu coração
ficava no Brasil, e a Europa era o Inferno, aferrava-me no parco
consolo do silêncio, uma esperança que em Paris só é possível para
quem vier de qualquer uma das urbes latino-americanas, belas e
estrondosas.
Naturalmente, a feiúra da avenida
Corrientes não reside tanto nas fachadas de neon, que atordoam,
porque a isso se destinam, nem na visível e geral deterioração
urbana, nem no empobrecimento das classes médias que a freqüentam –e
os turistas, e os ladrões, e a prostituição inevitável. (Vi que no
teatro Nacional apresentavam uma comédia com a atriz Claudia Lapaccó,
de quem não ouvia falar desde o tempo em que tive de ir embora de
Montevidéu. Meu Deus, eu pensava, ela ainda existe? Mas, e eu?
Porventura eu não existia também trinta anos atrás? Por que tanta
perplexidade? Não é novidade que, à distância, o tempo é outro). O
que de fato é feio e angustiante na avenida Corrientes é a falta de
esperança. Eu sabia, no quinto andar do hotel onde me mandaram, que
o inferno do estrépito naquela Selva de pedra não cessaria, que
amanheceria e, como nos pesadelos, tudo continuaria igualmente
intolerável.
A solução, óbvia, foi mudar de hotel
na manhã seguinte, e reencontrar a calma já na minha segunda noite
portenha, a que reina, relativa, no resto do chamado “micro-centro”.
Porque com algumas exceções, o resto do centro parece ficar de
costas à exacerbada Corrientes. Acabei num hotel da Avenida de Maio,
avenida de noites vazias como o centro todo -casais bebendo cerveja
sentados no meio-fio, turmas (barra pesada talvez) fumando maconha,
trabalhadores noturnos, ou ao contrário, gente chegando na madrugada
para trabalhar. Era o silêncio, modesto Paraíso.
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G. é padre numa paróquia pobre da mais
pobre periferia sul de Buenos Aires. Depois que voltou para sua
cidade ele me manda alguns e.mails, poucos, é verdade, com
novidades, muitas. Retomou a vida religiosa ativa, teve de lutar
para ser aceito, na sua idade, e com seu passado, ele diz. G.
explica-se, mas não diz tudo. Escreve um documento destinado à
comunidade –enviou-me há uns quatro anos-, mas ele cala sobre sua
sexualidade. A vocação o levou de novo ao seio da Igreja. A angústia
econômica também, ele tem um pai nonagenário e que depende dele.
Voltou a Buenos Aires quando a mãe morreu, e então descobriu que é
portador de hepatite C. Depois de seus anos paulistas, G. morou uma
década no Recife. Ele diz que foram os anos mais felizes de sua
vida, e é verdade, pelo menos em alguns carnavais eu fui testemunha
dessa felicidade. Voltou. Também para fugir da sensualidade
pernambucana, insiste. Seu destino era Buenos Aires, e a Igreja.
Desde Montevidéu, venho guardando com cuidado o papel onde anotei as
senhas dele. Quero chamá-lo e dar a ele a surpresa. G. não me
espera. Ligo na mesma noite da minha chegada. Sou o homem exultante
do locutório da avenida Nueve de Julio.
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Cecília querida, comigo os portenhos
não foram irônicos nem incapazes de ternura nem ásperos e o aspecto
deles não foi imponente nem solene nem totalmente austero. Talvez
porque alguns deles conheciam minha poesia e eu fui justamente para
ler poesia e falar dela. Mas é verdade que tu também foste para ler
tua poesia e de poesia falar. Devem ser os tempos. Tu foste em
tempos de vacas gordas, amada Cecília, e eu não sei se a opulência
nos anestesia, mas sei que ela pode ser má conselheira. Ou talvez
sentiste que ao sair de Montevidéu deixavas atrás uma província, um
lugar lindo e periférico, e quando o navio tocou o cais portenho tu
intuíste que chegavas num centro hegemônico para valer, fosse lá
qual fosse seu valor. E a gente sempre simpatiza com os pequenos. Te
lembro: o Conde de Lautréamont –tão Montévidéen- já sabia
qual era a “Rainha do Prata” –segundo a alcunha que um tango daria a
Buenos Aires. Ele diz lá perto do fim do Canto I de Les Chants de
Maldoror: “Buenos-Ayres, la reine du Sud, et Montevideo, la
coquette, se tendent une main amie, à travers les eaux argentines du
grand estuaire”. A Montevidéu correspondeu ser “coquette”,
te lembras?
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Fui recebido com generosidade por
muitos poetas. Horacio Fiebelkorn, o poeta da cidade de La Plata (e
que insiste em ser “de província”, ainda que more em Buenos Aires)
-eu o conheci anos atrás durante umas leituras de poesia no Palácio
Santos de Montevidéu- foi de uma generosidade infinita. Ofereceu-me
a sua companhia quase em tempo inteiro, e a companhia de Fiebelkorn
é um privilégio. Passeamos pelo Centro, mostrou-me (parte de)
“todos os lugares que devem ser conhecidos por aqueles que visitam
Buenos Aires” –a frase eu vi escrita na vitrine de uma agência
de viagens da rua Córdoba. E houve jantares promovidos por Soledad,
a mulher dele, no belo apartamento do bairro de Recoleta onde
moraram até poucos meses depois de eu ir embora. Por aqueles dias
estava saindo um livro dele, Zona muerta, com contracapa
redigida por mim. Esperamos juntos o nascimento do livro (em vão,
nasceu poucos dias depois de eu partir). Juntos, Fiebelkorn e eu
lemos na Casa de la Poesía, a instituição municipal dirigida
pelo poeta Daniel García Helder, homem sério e bom como a sua
poesia. A Casa de la Poesía situa-se na antiga residência do
poeta popular Evaristo Carriego (1883-1912), “allá por el barrio
gris que cantó el pobre Carriego”, segundo dizia Borges, que
tanto admirou a este poeta do subúrbio. O corajoso mas melancólico
Carriego vivia numa casa pequeno-burguesa relativamente modesta de
Palermo, bairro hoje elegante. Conservam-se objetos do poeta, são
afrancesados, de gosto convencional, duvidoso.
Entre o público estava Daniel
Samoilovich, sabidamente um poeta brilhante, mas –eu ao menos- não
sabia que ele é também um homem entusiasta nem conhecia esse olhar
tão doce e tão penetrante. Toda a inteligência do mundo se refugiou
em seus olhos, essa “marca Samoilo” de identificação (e ele estava
criando então uma ópera bufa chamada El despertar de Samoilo).
Eu intuía em compensação a erudição de Samoilovich, que verifiquei
no boteco depois da leitura (um conhecimento assombroso de
literatura brasileira, por exemplo), nesses papos de café que
antigamente eram uma tradição montevideana também, mas que em
Montevidéu desapareceu porque os lugares públicos se degradaram
perante a perfeita indiferença da Prefeitura.
Fiebelkorn também me acompanhou até o
Centro Cultural Quinta Trabucco, em Vicente López., onde eu devia
dar uma palestra. O lugar é um palacete de estilo neo-renascentista
que pertenceu a uma família chamada Trabucco e surge imponente em
meio de um jardim, de fato quase uma “quinta”, com árvores da flora
nativa, orgulho de seu diretor, outro poeta, Rodolfo Alonso. Sem
dúvida, Buenos Aires é a cidade dos psicanalistas, e vários deles
estiveram presentes nas minhas leituras (são os que mais levantam a
mão para perguntar –com pertinência, diga-se- e se apresentam: “Sou
psicanalista”). Em Buenos Aires parece haver mais analistas que
analisados, é verdade. Mas também há muitos poetas. E os que eu
conheci são excelentes. Alonso é também tradutor do português, entre
outras línguas. Foi o primeiro tradutor para o espanhol dos quatro
heterônimos mais famosos de Fernando Pessoa, em 1960, quando Octavio
Paz ainda não o(s) tinha publicado no México. Alonso vem criando uma
obra poética original, de poemas breves e luminosos. E, como era de
se esperar, mais uma vez acabamos a jornada papeando num café, este
no elegante subúrbio de Vicente López.
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G. está alegre e desconcertado com a
minha presença em Buenos Aires. Infelizmente não dá para ele
encontrar-se comigo. Vir à cidade é impossível, se eu soubesse os
problemas da comunidade, a pobreza, já não sabe como manter a
paróquia. Como está da hepatite? Vai levando, mas se recusa a tomar
medicamentos das multinacionais farmacêuticas, ele optou pela
medicina alternativa. Eu? Eu continuo com meus problemas
respiratórios, mesmo depois da operação. “Tivemos sorte apesar de
tudo”, diz G. Mas não dá tempo para eu responder: “Tenho um passado
de hedonismo”, acrescenta, em primeira pessoa. Está legal, G., meu
querido G. Me ouvir falar de poesia? Não, não tem tempo nem para
ler. A propósito, também não tem vida sexual, diz, tantos problemas,
e além disso ele não quer, é um voto. Hoje à tarde ele teve um
casamento, acha que deu bons conselhos aos noivos. Notícias do
Recife? Sim, por e.mail, às vezes. Eu ligo de novo para você. Me
liga, Alfredo, quero te ouvir. A gente se ver não, não, é muito
difícil.
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Estou na estação Retiro, para voltar a
Montevidéu e seguir depois para São Paulo. Minha vida não é
estranha, Cecília? E que vida não é? Despeço-me de Buenos Aires como
tu de Montevidéu. E também digo: “Quero dizer-te adeus e não
posso, o ofício humano é triste, o coração se acostuma e esquece
aquilo que se faz maravilha constante”. O Inferno e o Paraíso
convivem tantas vezes, não é mesmo, Cecília? Para mim, Buenos Aires
também era íntima, feita de destinos como o meu, bordado das parcas.
Quase coquette.
Leia Cecília Meireles
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