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artista Maninha Cavalcante reside em São Paulo, tendo ali realizado
a quase totalidade de suas exposições. Ilustrou a primeira
edição brasileira de livros como Uma temporada no inferno
(Rimbaud), Os cantos de Maldoror (Lautréamont) e Confissões
de um comedor de ópio (Thomas de Quincey), todos editados nos
anos 70. Na década seguinte publicaria um expressivo catálogo
em que se mostra uma retrospectiva de sua obra. Já nos anos 90,
participa da mostra coletiva Lateinamerika und der Surrealismus,
no Museu Bochum, na Alemanha. Artista ligada ao Surrealismo, esteve presente
em vários momentos de manifestação do movimento no
Brasil. Maninha Cavalcante é a artista convidada desta edição
de Agulha que, além de uma mostra bastante abrangente
de sua obra, percorrendo quatro décadas de criação,
apresenta textos críticos assinados por Cláudio Willer, Mário
Schemberg e José Roberto Teixeira Leite, permitindo assim uma visão
bem considerável da obra dessa notável artista. (F.M.)
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Cláudio Willer
Grande parte da obra de Maninha consiste na representação de figuras humanas, principalmente mulheres. São rostos que parecem máscaras em sua fixidez, ou então sorriem quando não riem cinicamente, com um esgar agressivo. A protagonista do quadro freqüentemente está acompanhada por outra imagem feminina que pode ser um duplo, ou então um outro que pode ser algoz ou perseguidor. Um componente de crueldade das expressões, dos olhares e ritos faciais, e também a crueldade do gesto da própria artista, deixando figuras inacabadas, sublinhando seus contornos com traços mais fortes na linha do grotesco ou então descontinuando o traçado, fazendo um corte com uma pincelada ou risco abrupto. Recusa-se aos personagens do quadro – e a seus espectadores – o direito à tranqüilidade, à plenitude do bem-acabado, do fechamento formal, do equilíbrio. Muita coisa, nestes quadros, remete ao teatral, ao jogo cênico: roupagens que parecem figurinos, gestos hieráticos e posturas rígidas contra um fundo maneirista que é um cenário de planos superpostos. Os retratos dos mitos, personagens célebres, também são puras máscaras, as personae teatrais. Em algumas obras há sugestões eróticas, porém de um erotismo perverso que lembra o teatro sadiano. Aqui ingressamos na metalinguagem, na visão da arte como espetáculo e jogo, como erotismo ritualizado. Há uma constante nos quadros de Maninha: quer representem eles rostos humanos, cenas ou colagens, se faz presente a tematização da transgressão, seja a transgressão da forma pela recusa do acabamento, ou a transgressão do comportamento, dos valores e ideologias pela sugestão da arte como prática perversa. Há um infinito sígnico apenas entrevisto ou insinuado, presente como obsessão ou fantasmagoria expressa na tensão destes rostos insones e estáticos, destas paisagens cujos fundos se dissolvem ou multiplicam. Cada quadro dobra-se sobre si mesmo, nega-se, furta-se à mera representação e aponta para um mais além, propondo, nos traços abruptos e descontínuos, aquilo que ele não é, querendo-se como alteridade, outra coisa. Em nenhuma das telas deixa de haver uma negação, um questionamento do fácil, em que as figuras explodem e seus fragmentos ocupam o espaço, a recusa do linear é expressa sob forma de labirinto. A dialética do eu e do outro, da personagem
e seu duplo ou negativo. No plano da estética, como arte que se
quer outra coisa, aquilo que ela não é, ou seja, vida. Ou
então, como representação da contradição
básica entre o artista e a sociedade. E também, por extensão,
entre o artista plástico e seu mercado, aqueles que se apropriam
do seu trabalho, mercantilizando-o e fetichizando-o. Por vezes me pergunto
se não há, por parte dos integrantes do nosso assim chamado
mercado
de arte, uma intuição deste potencial crítico,
e se algum crítico, galerista ou colecionador, já não
se sentiu retratado na figurinha sinistra do canto do quadro, daí
advindo um leve sobressalto ou um susto mal disfarçado, uma reação
vagamente fóbica. Talvez por isso este mercado, que às vezes
tão apressadamente saúda como vanguardista ou inovadora alguma
mera repetição ritualizada do gesto dadaísta ou futurista,
ainda não tenha assimilado plenamente, ainda não tenha engolido,
por assim dizer, uma produção artística que nasce
primordialmente de um gesto de recusa do senso-comum, do bem-acabado, do
bom-tom em arte e fora dela. Em Maninha, a pintura é, acima de tudo,
um ato de coerência, jamais instrumentalizado ou submisso a algum
outro tipo de discurso, elaboração cerebral, norma ou cânone.
Desta coerência deriva seu vigor – e também a lentidão
que muitos têm para assimilá-la.
2
Mário Schemberg
Maninha é uma das poucas personalidades surrealistas autênticas que encontrei, pela sua capacidade de integrar Vida e Arte em uma superação criativa; capaz de submergir a realidade pessoal e histórica em uma super-realidade tangível. Para Maninha, Arte e Vida são um todo inseparável mergulhado em um contínuo super-temporal, em que passado e presente não se separam. Bem e Mal não se distinguem. Maninha criou um Surrealismo brasileiro amazônico de horizontes mais amplos que o do Surrealismo francês, remontando ao magma labiríntico do Maneirismo, e talvez até aos Simbolistas da renascença. A criação de Maninha poderia se relacionar com percepções paranormais da chamada memória distante, pelo fato das imagens de suas obras estarem relacionadas com épocas diferentes. O papel extremamente destacado das
mulheres nas artes plásticas brasileiras, desde a Primeira Guerra
Mundial, foi talvez único em todo o mundo, e constitui indiscutivelmente
um dos seus aspectos mais fascinantes. Desde a década de 20 vêm
surgindo continuamente grandes personalidades artísticas femininas,
sem dever prioridade às masculinas. Maninha é indiscutivelmente
uma das grandes figuras artísticas brasileiras de sua geração,
podendo ainda atingir pontos mais elevados e inesperados em sua obra, pela
contínua transformação criativa de sua arte, que atualmente
tende para um tipo notável de realismo mágico.
3
José Roberto
Teixeira Leite
Em obras como essa, corpos flutuam, espaços se interpenetram, limites fundem-se e se transpõem, para que não haja dúvidas de que estamos lidando com um mundo irracional e absurdo, no qual a lei da gravidade e mesmo nossos sentidos nada mais significam. Aquarelas, técnicas mistas e desenhos, Maninha se revela desde logo uma colorista de bons recursos, pintando seus personagens não com os matizes que na realidade apresentam, mas com a cor de sua própria imaginação. Dá-lhes, assim, uma expressividade profunda, alguma coisa de transcendental, como se quisesse por-lhes a nu, não tanto as formas externas, quanto o âmago mais recôndito, mais intraduzível. O desenho de Maninha é mais vigoroso do que propriamente sensível: a mão escorre por sobre o suporte de tela ou papel com desenvoltura, deixando sobre ele o sulco de uma personalidade forte e ainda assim dar alguma coisa pessoal a todas essas formas e cores. Podemos ver a marca de uma artista que sabe compor seus quadros, imprimindo-lhes uma tectônica, aprofundando planos, situando seus personagens em meio a uma atmosfera, envelopando-os em um estranho clima a meio caminho entre o primevo e a science-fiction. Perturbadora ao extremo, vazada cruamente em uma cor e em um desenho peculiares, obediente a uma temática à primeira vista corriqueira, mas na verdade evocadora de universos absconsos e de visões conturbadas, a arte de Maninha aqui se apresenta se não renovada, certamente aprofundada, mais e mais pessoal a cada novo quadro. |
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