Não é fácil nascer em Alagoas e ainda ser poeta. Até
porque a comparação instantânea que se faz é com Jorge de Lima
(1893-1953), autor de “Invenção de Orfeu”, longo poema épico que
está para a literatura brasileira assim como “Os Lusíadas”, de
Camões, está para a portuguesa, ou a “A Divina Comédia”, de Dante,
para a italiana.
Para se ter uma idéia da importância de Jorge de
Lima, basta lembrar que, ao final de novembro, quando participava de
um jantar promovido pela comissão organizadora do Colóquio
Internacional Leituras de Bocage nos séculos XVIII-XXI, realizado na
Universidade do Porto, o ator português Armindo Cerqueira,
contratado para ler algumas peças bocagianas, dizia-me, ao final,
que um dos poemas de que mais gostava de declamar em público era
“Essa Negra Fulô”, de Jorge de Lima.
Apesar da comparação com força tão desproporcional, a
verdade é que a poesia do alagoano José Inácio Vieira de Melo, 37
anos, nascido em Olho d´Água do Pai Mané, povoado do município de
Dois Riachos, não sai desfavorecida. É claro que José Inácio é ainda
um poeta em formação, que chega agora ao seu quarto livro, A
Terceira Romaria, constituído por muitas peças que já faziam parte
de obras anteriores, mas não há dúvida de que mantém bem alto o
estandarte da tradição da poesia alagoana. Jorge
de Lima, por certo, não haveria de se incomodar com a comparação.
Com observa no prefácio o professor Hildeberto
Barbosa Filho, doutor em Literatura Brasileira pela Universidade
Federal da Paraíba, em “Olho d´Água”, “Ribeira do Traipu”, “Maturi”
e “Cerca de Pedro”, partes em que se subdivide A Terceira Romaria,
“as fontes naturais do metabolismo estético e criador tendem a
preponderar sobre os dados livrescos e eminentemente literários”.
Isso significa que o poeta permanece fiel à terra onde nasceu e foi
criado, arrancando de suas lembranças a matéria-prima de sua poesia,
que mesmo o aprendizado e a vivência em ambientes cultos foram
incapazes de superar ou soterrar.
Ainda bem, pois, com isso, ganha a poesia brasileira
que passa a contar com mais um poeta genuinamente atrelado às raízes
populares, como mostra o seu início de carreira, que se deu com a
poesia de cordel, com certeza, influenciado pela infância em que viu
e se deslumbrou com as cantigas dos repentistas das feiras
nordestinas, como se deduz do poema “Ciço Cerqueiro”:
O meu é fazer cerca:
cavar buraco, aprumar mourão,
esticar arame com pé de cabra,
apregar grampo nas estacas.
Em troca peço pouco
basta me dar leite azedo
rapadura, farinha e uma hora
de sombra de pé de pau.
Precisa mais nada não!
Me dê coalhada todo dia
que eu cerco o mundo
pros bichos não se perderem.
Quem ler apenas este poema pode se deixar levar pela
impressão de que se trata de um poeta intuitivo, primitivo. Mas é um
engano que a simplicidade dos versos favorece porque, em outros
poemas, o leitor perceberá claramente o uso da intertextualidade,
processo que é deflagrado pela memória inconsciente das leituras que
José Inácio fez de outros grandes poetas, inclusive do conterrâneo
Jorge de Lima.
Curiosa também é a ligação da poesia nordestina com a
poesia andaluza que José Inácio retoma, repetindo o que fez, no
começo da década de 80, o cantor e compositor cearense Raymundo
Fagner, que musicou versos de vários poetas gitanos, e, em época
anterior, João Cabral de Melo Neto (1920-1999), que deixou explícita
a sua paixão pela Andaluzia em versos dedicados às cidades de
Sevilha, Carmona e outras paragens. A admiração de José Inácio por
João Cabral de Melo Neto e Fagner, inclusive, está clara em poemas
que lhes são dedicados. E a paixão pela cultura andaluza também é
visível em “Bailador gitano”, poema reconhecidamente inspirado no
bailarino espanhol Antonio Gades (1936-2004):
“(...) Ele é de uma nobre delicadeza
mas de fortaleza maior.
De seus dedos estalam os tempos
e nascem todos os ritmos
e, senhor dos gestos, inventor de passos,
adivinha a beleza.
(...) Ele é o início e o fim
— o touro e o toureiro —
o bailador gitano.
A poesia de José Inácio faz-se também de espectros,
sombras, fantasmas, que vêm de um mundo de imagens e lembranças
herdadas não só de vivências, mas também da leitura de muitos
poetas, como Cecília Meirelles (1901-1964) e Gerardo Mello Mourão.
Essa intertextualidade pode-se perceber não só no poema “Irresidência”,
em que paga um tributo ao romance Valete de Espadas, de Gerardo
Mello Mourão, como em “Bodas de Sangue” em que dialoga com Federico
García Lorca, que também traz ecos de Pablo Neruda (1904-1973),
especialmente do poema “Alberto Rojas Jiménez viene volando” e de
“Oda a Federico García Lorca”, de Residencia en la Tierra: (...) Ah
Cristina Hoyos, deusa de Espanha, vem bailando em nuvens e em versos
de García Lorca, vem com teus punhais para a minha peixeira de 12
polegadas,pois as nossas bodas só podem ser de sangue.
Na maioria dos poemas deste livro, é marcante a
intimidade do autor com o mundo rural, não o mundo rural visto pelo
homem da cidade, mas por quem lá nasceu e conhece cada pedaço de
terra e sabe como o dia nasce e se estende por todo o sertão. Em
“Rural”, por exemplo, louva-se o cotidiano de uma vida na roça sob o
sol inclemente. Nesse poema, em que o ritmo livre o aproxima da
prosa, fica claro o amadurecimento da lírica de José Inácio:
Eu vou para roça, ajudar o dia a amanhecer
chamar os bezerros pelos nomes de suas mães
e ver a vacaria apojar
e sentir a chuva de leite em meus olhos.
(...) Eu vou para a roça, começar o dia com um sorriso.
Meu cavalo e eu — Centauro do Sertão —
sairemos campo afora
apascentando a boiada, o milharal, o açude.
E os cajus haverão de destravar as fronteiras
e ouvirei o canto das patativas se estender até Assaré
e me entenderei com as beldroegas
e compreenderei a labuta das formigas (...).
José Inácio Vieira de Melo publicou também os livros
Códigos do Silêncio (2000), Decifração de Abismos (2002) e o livrete
Luzeiro (2003). Organizou Concerto lírico a quinze vozes — uma
coletânea de novos poetas da Bahia (2004). É jornalista e co-editor
da revista de arte, crítica e literatura Iararana, editada em
Salvador, com o apoio da Petrobras, e que já chegou ao seu décimo
número, o que não é pouco, se levarmos em conta a vida efêmera que
marca publicações desse tipo. Iararana é, hoje, um das melhores
revistas de literatura do Brasil graças ao talento de José Inácio,
Aleilton Ribeiro e Carlos Ribeiro, seus editores.