Adelto Gonçalves
Além do lirismo
Com edição de luxo lançada no final de 2005, Gabriel Nascente
comemora 40 anos de poesia
Para comemorar os seus 40 anos de
poesia, Gabriel Nascente lançou Inventário Poético, pela Editora
Alternativa, de Goiânia, em bem-cuidada edição que reúne o melhor de
sua produção, de acordo com seleção feita por Aidenor Aires e Vera
Maria Tietzmann Silva, que também é responsável pela organização e
pelo texto introdutório.
Ao mesmo tempo lançou, com o apoio
cultural da Central dos Concursos de Goiânia, Um Poeta em Ação, que
contém sua biografia e fortuna crítica, livro com o qual chega a sua
40ª obra publicada, o que resulta na média impressionante de um
livro editado por ano de atividade literária. Não se sabe de outro
poeta que tenha alcançado tamanho volume de trabalho.
É verdade que quantidade não significa
qualidade, mas esta é uma observação injusta quando se trata do
fazer poético de Gabriel Nascente, marcado principalmente por uma
preocupação existencial extravasada por um lirismo não muito comum
na literatura brasileira.
Nascido em Goiânia em 1950, Nascente
estreou, ainda estudante, aos 16 anos, com o livro de poemas Os
Gatos (1966). Funcionário público e autodidata, atua no jornalismo e
na literatura, e com freqüência sua voz tem arrancado elogios de
poetas, romancistas e críticos consagrados como Ivan Junqueira,
Ferreira Gullar, Olga Savary, Affonso Romano de Sant’Anna, Moacyr
Scliar, Luciana Stegagno Picchio, Fábio Lucas, Nelly Novaes Coelho,
Ivo Barroso, Ronaldo Cagiano, Álvaro Alves de Faria, Alaor Barbosa,
Fernando Py, Alexei Bueno e Fausto Wolff. Também grandes nomes, já
falecidos, como Carlos Drummond de Andrade, Menotti del Picchia,
Jorge Amado, Nelson Werneck Sodré, Bernardo Élis e Otto Lara
Resende, pronunciaram-se com entusiasmo em relação aos seus versos,
como se pode constatar em Um Poeta em Ação.
A obra de Nascente é predominantemente
poética. Além dos 22 livros que serviram de fonte de consulta para
Vera Maria Tietzmann Silva organizar o seu Inventário Poético, o
poeta publicou outras obras em verso, crônicas em jornais e ainda
incursionou pela ficção, publicando a novela Um Dia Antes de Mim
(1986) e o romance A Cova dos Leões.
Organizou também antologias poéticas
de autores ligados a Goiás, e ele mesmo mereceu espaço em diversas
antologias, como na edição especial da revista Encontros com a
Civilização Brasileira (1982), o volume Sincretismo — Poesia da
Geração de 60 (1995), organizado por Pedro Lyra, e A Poesia Goiana
do Século XX (1997), de Assis Brasil. Como o poeta russo Maiakovski,
a quem confessadamente quis imitar, Nascente sempre teve a mania de
ir aos bares à noite não só para declamar os seus versos, como para
vendê-los, pois muitas das edições de seus 40 livros foram pagas à
gráfica com seus próprios recursos, o que exigiu esforços redobrados
para recuperar o capital investido.
O poeta, porém, não se limitou às
experiências em sua terra: passou uma longa temporada em São Paulo,
onde trabalhou na Editora Martins como redator de textos de orelhas
de livros de autores famosos; deu aulas em cursinhos de
pré-vestibular e trabalhou na redação da Folha de S. Paulo, na
Alameda Barão de Limeira. Quando deixava a redação, aproveitava para
vender exemplares de seus livros nas noites paulistanas.
No estudo introdutório que escreveu
para Inventário Poético, Vera Maria Tietzmann Silva diz, com
percuciência, que Gabriel Nascente, “intuitivo, cria seus poemas
movido pela emoção, que permeia toda a sua produção literária,
estendendo-se para além dos textos genuinamente líricos”. E observa
que, na visão lírica do autor, “as fronteiras entre a voz que fala e
a realidade circundante são tênues, quase inexistentes”.
De fato, em muitos dos poemas de
Nascente a natureza assume reações humanas. Vale-se o autor de uma
figura de linguagem, a prosopopéia ou personificação, que só grandes
mestres da literatura sabem como utilizar em seu maior grau de
transcendência, atribuindo qualidades humanas a personagens
não-humanos ao transferir para árvores seus próprios traços
psicológicos, como se vê nos versos de A Palmeira de Morrinhos, que
faz parte do livro Os Passageiros (1979):
(...) A palmeira de Morrinhos
tem silêncio de que dormiu
com as águas
O rosto sempre virado
para os lábios da brisa. (...)
Ou ainda nos versos de As Bananeiras,
poema que faz parte do livro Ventania:
(...) As bananeiras estão fartas e amarelas de fadiga.
Mas quando nas madrugadas as ventanias
são impiedosas a ponto de maltratá-las,
elas ficam a chorar de inveja dos telhados
porque abaixo dos telhados há corações,
relógios e cobertores.
E por baixo das bananeiras, não. (...).
Outra característica da poesia de
Gabriel Nascente é a sua ligação à terra goiana, o que lhe valeu
epítetos como “o maior poeta de Goiás” ou, ainda, o de “Castro Alves
da poesia goiana”, que lhe foi atribuído por Cora Coralina. É o que
se pode ver no poema “O Bié da 75” (auto-retrato), que abre A Valsa
dos Ratos (1992):
(...) Eu, Gabriel Nascente, vim da serragem
e José também me chamo.
Nasci pouco antes da primeira estrela.
Sou filho do crepúsculo. Sou de 50.
Sou de janeiro. Sou das ruas de chão
do Bairro Popular, cúpula dos gorjeios
da minha infância.
Sou dos brejos do Botafogo.
Sou de Goiânia. (...).
Nesse mesmo poema longo de cinco
cantos, recorda os seus tempos de São Paulo:
(...) Li Rimbaud e Castro Alves. Bebi Martini doce.
Fumei cigarros Califórnia, cigarrilhas de executivo.
Fui morar no 25º andar de um espigão de cimento,
defronte à torre da Igreja da Consolação, de São Paulo.
Vendi poema na Praça da República.
Bebi café com os operários do Ipiranga,
longe da chuva das risadas da província.
Como bem assinala Vera Maria Tietzmann
Silva, outro ponto marcante da poesia de Gabriel Nascente é o seu
permanente diálogo com poetas, brasileiros e estrangeiros, de várias
épocas, em que não deixa de registrar as influências literárias e
filosóficas que sofreu, como observa, por sua vez, Aidenor Aires na
apresentação que fez para Inventário Poético. Não só a cultura
clássica é reverenciada, com a citação de Homero e Virgílio, mas
também ícones da poesia íbero-americana do século XX como Pablo
Neruda, Fernando Pessoa e Carlos Drummond de Andrade, ou ainda nomes
lendários como Charles Baudelaire, Dylan Thomas e Arthur Rimbaud.
Sem esquecer de Brecht e Albert Camus, nomes que lembrou em Um dois
um, poema de A Lira da Vida (1997):
Brecht e Camus,
que drama se trama
na efígie deste nomes?
Filhos do palco,
depadores do apetite
do mundo, do jogo do mundo?
De lunáticas-lunetas
se salvaram do sonho
de uma só pergunta?
Reivindicaram justiça
embriagados de urgência?
Anfitriões
da alma e do pão:
um, chaminé
de névoas, o outro
libertino utópico. (....)
Reverenciado e com talento reconhecido
por tantos grandes poetas e homens de letras do Brasil e do
exterior, como se pode comprovar em Um Poeta de Ação Gabriel
Nascente é, hoje, um poeta amadurecido, que conhece o valor emotivo
das palavras e que, portanto, merece a edição que Vera Maria
Tietzmann Silva e Aidenor Aires prepararam para comemorar os 40 anos
de sua poesia. São poucos os que merecem tanto.
ADELTO GONÇALVES, doutor em
literatura portuguesa pela Universidade de São Paulo, é autor de
Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (Nova Fronteira), Barcelona
Brasileira (Publisher Brasil) e Bocage — o Perfil Perdido (Caminho).
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