Airton Monte
Duas doses de memória
Uma conversa franca e bem humorada com Airton Monte, cronista de
uma Fortaleza boêmia, solidária e fraterna que propõe o hedonismo e
o anarquismo educado como utopia para a humanidade
Claudio Ribeiro, Demitri Túlio, Felipe Araújo e Luiz Henrique Campos
da Redação
08/01/2007 01:53
O mundo é grande e cabe no breve
instante da crônica de Airton Monte. Espelho de si mesmo, o cronista
contempla sua própria persona e espreita a humanidade pelo prisma de
sua aldeia. Traduz para o espírito de Fortaleza as paixões, os
desejos e os abismos da alma humana. O fascínio pelo inconsciente
lhe levou à psiquiatria, onde o profissional austero toma a frente
do poeta galhofeiro, arrebatado e espirituoso que se deita no divã
da literatura. Pela cidade (real ou rememorada), Airton circula
desvendando o universal nos bares mais simples da Gentilândia e
fazendo explodir o particular de cada flagrante em arroubos
universais de inspiração poética.
Em uma manhã de conversa franca e bem
humorada com quatro repórteres do O POVO, regada a muita cerveja e a
uma dezena de cigarros, o cronista se revela. É o torcedor fiel, o
teórico da literatura, o marido apaixonado, o amigo saudoso e o
cidadão desolado com a cidade que “enselvageceu”. Sem amarras, sem
pautas específicas, a conversa segue fluida por mais de duas horas.
Do riso generoso aos dramas mais tocantes e deles à piada mais
escatológica. Literatura, Praia de Iracema, Clube do Bode, drogas,
anarquismo e gentileza. O mundo é grande e cabe no breve trago que
acende o fio da inspiração e da memória.
“O medo que eu tenho da palavra tempo
é o de me tornar obsoleto em relação ao tempo presente”, revela o
artista que, cronista, agarrado às amenidades e às urgências do
dia-a-dia, soube se inscrever na posteridade pelo talento da
palavra. O mundo é grande e cabe na breve (e encantadora) Fortaleza
de Airton Monte.
O POVO - Quando a gente ligou pra você para
convidá-lo para a entrevista, você ficou feliz mas brincou com a
história do tempo, brincou com o agouro ou o mau agouro de dar uma
entrevista como essa nessa altura da vida. Você tem medo do tempo?
Airton Monte - Se eu disser que não tenho medo do tempo eu estaria
mentindo. O meu medo do tempo não é o medo de morrer, não é o medo
de envelhecer. O medo da palavra tempo é o de me tornar obsoleto em
relação ao presente. A minha briga toda é essa. Não posso me
desligar das raízes do meu passado. Aquilo que eu aprendi está
aprendido. Mas tanto na medicina quanto na literatura, meu medo é o
de ficar obsoleto. De ficar um velho gagá. Aqueles antigões, parados
no tempo, sem diálogo com ninguém, que passam a vida num tempo
ilusório, um tempo passado.
OP - E como você tenta superar isso?
Airton Monte - Estudando, lendo. Tanto de um lado quanto de outro,
eu tenho de estar antenado. Na medicina, minha vantagem é que não
preciso gastar rios de dinheiro para ir aos congressos. Eu ligo o
computador e recebo os anais, entro nos sites da Sociedade Médica
Brasileira, da Associação de Psiquiatria. Estou o tempo todo
atualizado.
OP - Você tem livros que estão sendo
utilizados no vestibular. Quando você conversa com esse público do
vestibular, esse público mais novo, esse medo da obsolescência
aumenta?
Airton Monte - Eu nunca tive dificuldade de me relacionar com esse
público mais jovem do que eu. Nem muito mais jovem nem muito mais
velho. Eu tenho vários grupos de convivência. Eu tenho a turma da
Gentilândia, que é a turma da minha infância, da minha idade. Tenho
a turma do papai, que é uma turma mais velha, da idade do papai, de
80 anos, 90. Tem a turma do Clube do Bode. E nesse vestibular, a
partir de 2004, 2005, o que me deu mais surpresa foi que de repente
aquela garotada chegou e disse: “olha, a gente está te lendo porque
a gente está gostando”. E eu conseguia me comunicar com eles no
mesmo nível. Brincando, rindo. Não me sinto deslocado entre os
jovens. Eu sou como aquele velho jogador, o Romário, que ainda está
ali rondando a área, sobrou a bola pedindo para eu chutar, eu chuto.
OP - E fisicamente, você se cuida?
Airton Monte - Decididamente, eu nunca fui exemplo para ninguém. Não
vou a médico, não sei a quantas vai meu colesterol, minha glicemia.
A única coisa que me incomoda, fisicamente, de vez em quando, é a
asma, que o cigarrinho corrige, não tem problema. Eu bebo do mesmo
jeito que bebia quando era jovem. Como as mesmas coisas que comia.
Eu quero ficar velho. Se puder até ver meus netos crescerem eu
queria. Agora, do meu jeito. Não me interessa viver uma vida sem
poder sair, sem poder fazer as coisas de que gosto. De clínico geral
eu tenho pavor porque você entra lá saudável e sai doente (risos).
Tenho muitos amigos médicos, sou da máfia, mas reconheço que não sou
exemplo pra ninguém. Se alguém quer viver muito, não siga meu
exemplo. Comigo está dando certo. Estou praticamente com 58 anos,
com corpo de bailarino espanhol e um fígado de 20 que nunca me deu
problema.
OP - A Fortaleza que você começou a descrever
em tuas crônicas era uma cidade bem menor, mais pacata. Nossa cidade
hoje é um monstrengo que cresce desordenadamente, sem respeito pelo
passado e sem respeito pelo próprio fortalezense. Como você se
relaciona com essa Fortaleza mais jovem?
Airton Monte - Eu cresci em Fortaleza. Nasci aqui. Tenho 57 anos,
nunca saí daqui. Nasci na Rua Dom Jerônimo, de parto normal, filho
do primeiro amor, do primeiro “descuido”, como dizia a minha mãe. E
fui criado naquele território mágico ali da Gentilândia, do Benfica,
do Jardim América. Mas Fortaleza foi mudando de uma maneira que me
fez ter que mudar também. E a mudança foi brutal. Hoje eu caminho em
alguns lugares - com exceção da Gentilândia, por exemplo, que
permanece mais ou menos como era antes -, e perco as referências que
tinha. A Praia de Iracema morreu. Eu tive de aprender a conviver com
essa Fortaleza. Uma cidade em que vivo com medo, medo por mim, por
meus filhos; uma cidade em que não posso me arriscar muito e ir numa
esquina, a caminhar pela cidade, coisa que adorava fazer. De dez
anos pra cá, passei a viver nessa Fortaleza que ensandeceu,
enselvageceu, onde nós perdemos aquilo que era a democracia da
gentileza, a democracia do lirismo. Hoje não somos mais próximos,
nós somos ilhas. Ilhas de solidão, de desconfiança.
OP - E o que a nossa cidade ainda tem de
positivo? O que ainda te inspira na Cidade?
Airton Monte - As coisas boas de Fortaleza. O subúrbio. Alguns
subúrbios. O domingo no subúrbio, ainda tem isso. Eu vejo na rua do
meu pai, na Dom Jerônimo; vejo na Gentilândia também. Ano Novo e
Natal as pessoas entram nas casas umas das outras e uma leva uma
torta, outra leva não sei o quê.
OP - Mas você ainda circula?
Airton Monte - Circulo na Gentilândia, nos bairros do Benfica. Na
Praia de Iracema jamais. Todos os sábados vou ao Clube do Bode, que
é a livraria do Sérgio Braga. E nós bebemos no Florida Bar, que é o
braço armado do Clube do Bode (risos). É o Hezbollah do Clube do
Bode, tem aquele tira-gosto letal, só come quem está acostumado.
Depois de 25 anos de tira-gosto de botequim você fica imunizado
contra qualquer vírus. O Clube do Bode é esculhambação, é uma
instituição anárquica, lírica, etílica, musical. Lá, o Nonato Luis
dá um show num violão velho daquele do Falcão. Lá só quem não pode
cantar é o Falcão. Apesar de ser o cantor oficial do grupo. Mas ele
é proibido de cantar, por uma questão de higiene pública (risos).
OP - Há assuntos que você considera proibidos
nessas rodas? Assuntos que, quando vêm à tona, você se retira?
Airton Monte - A única coisa que eu me retiro é quando começam a
falar mal de amigo meu. Porque dos meus amigos só quem pode falar
mal sou eu. E em tom de galhofa. Então, nós temos essa certa
fidelidade. Quando está todo mundo junto, a gente fala mal mesmo.
Mas não há coisas proibidas. Onde ando, há católicos, crentes,
ateus, políticos de esquerda, de direita. Eu não sei mais nem se
existe isso de esquerda ou de direita. Eu mesmo, esse ser anárquico,
sou ateu e está aqui (pegando no escapulário pendurado no pescoço) o
escapulário do meu beque central contra os maus olhados que é São
Francisco, o “Chiquinho”. Ele é o sujeito que eu mais admiro, que
foi revolucionário e mais cristão do que Cristo. Um sujeito que ia
dar muito trabalho para a Igreja Católica hoje se fosse vivo.
OP - Que histórias engraçadas ou curiosas você
recorda do convívio com essas turmas do Clube do Bode, da
Gentilândia, etc?
Airton Monte - São várias. Eu andava muito com o Rogaciano (Leite
Filho, jornalista) e o Paulo Mamede (jornalista). Tem uma história
que é uma sacanagem que não se deve fazer com ninguém. Estávamos os
três no Cais Bar. Uma noite, entra um mulherão daqueles de arrasar.
Todo mundo dando em cima. A mulher acha de se engraçar do Paulo
Mamede, um sujeito altamente periculoso (risos). E a gente só com
inveja, aquela inveja mortal. Aí o Paulo Mamede começou bem com a
menina, já começou com os beijos, etc. Lá pelas tantas, ele teve uma
espécie de incômodo intestinal (risos) e teve de ir ao banheiro. E
lá demorou-se. Quando ele demorou a gente inventou a seguinte
história, de improviso. O Rogaciano se apresentou, eu disse quem era
e a moça disse: “ai, você é psiquiatra?”. Eu disse: “sou’.
“Inclusive, ele é primo do Paulo Mamede, esse rapaz aqui”, eu
apontando para o Rogaciano. “E eu sou médico do Paulo Mamede”. “Ai,
o senhor é médico dele?”. “Sou, sou psiquiatra, mas ele está bem”
(risos). “Ele sai aos fins de semana e eu estou aqui acompanhando
ele. Minha única preocupação é que ele está tomando um remédio forte
e está misturando com bebida como você está vendo. As reações
ninguém pode prever. Geralmente, ele fica muito violento” (risos). O
Paulo Mamede chega feliz da vida do banheiro e ela já estava meio
esquisita. O Paulo Mamede não entendia nada. Eu disse: “rapaz, tu
não tem papo pra segurar a mulher”. Nós só fomos confessar isso pra
ele, lá pelas quatro da manhã, no Estoril. E ele em vez de ficar com
raiva começou foi a rir. E assim tem várias. O Augusto Pontes, tem
umas frases que são terríveis. Ele diz assim: “Eu tenho uma boa e
uma má notícia pra vocês. Qual vocês querem ouvir primeiro?”. “A
notícia boa”. E ele: “O Fausto Nilo vem pra cá”. “E a notícia
ruim?”. E o Augusto: “Ele vai cantar” (risos).
OP - O João Cabral de Melo Neto costumava
dizer que não acreditava em inspiração, que o ofício de poeta era um
ofício que exigia muito trabalho. Você acredita em inspiração?
Airton Monte - Aí tem uma diferença. O texto de ficção eu não tenho
nenhum prazo para entregar. Então, é uma coisa que eu vou maturando,
posso passar três anos refazendo, cortando. Já a crônica é diária. E
é um gênero literário - apesar de alguns babacas dizerem que não é,
eu digo que depende do cronista. Uma crônica do Rubem Braga é um
texto literário, já um texto do Paulo Coelho não é nada, é uma
mágica (risos). É um feitiço. Ele faz até chover e levita (risos).
Mas a crônica, eu tenho que entregar o texto. O POVO já me paga
pouco, se eu não entregar... (risos). Apesar de toda essa anarquia,
eu sou muito profissional nas coisas. Então, eu tenho que chegar e
escrever. Em termos de inspiração, os textos que você escreve ou
saem de parto natural, quando você escreve um conto em dois minutos,
ou saem de parto a fórceps, quando você tem que dar uma forçada. E
tem dia que só sai na porrada, só vai na cesariana (risos).
OP - Você sempre escreve seus textos à mão?
Airton Monte - Porque à mão eu escrevo mais rápido. Mesmo se eu
tivesse um notebook, eu não levaria um notebook, que custa uma
fortuna, para a beira da praia, para o pessoal entupir de farofa...
(risos). Se você leva para o bar ou para a praia, vão derramar
cerveja em cima. O cabra vai dar palpite, outro quer mexer.
Escrever, então, é um ato muito solitário. Não é como o cinema, que
é uma arte coletiva.
OP - Algumas vezes, você coloca algumas coisas
bem pessoais em suas crônicas. Você chega a se arrepender de alguma
maneira das coisas que você expôs ao público?
Airton Monte - Nunca me arrependi. Não dá para me arrepender porque
tudo foi consciente. Eu não sou aquele sujeito que escreve com
raiva. O texto que me deu mais polêmica foi o Tratado Geral da
Maconha, que quase vou em cana porque o Moroni (Bing Torgan) me
acusou de incentivo e apologia ao uso e ao tráfico de drogas. Mas se
você vai ler, você vai ver que era um tratado geral da maconha
mesmo, baseado em toda a literatura que eu tinha sobre drogas, toda
a minha experiência pessoal e clínica. Isso foi publicado no
tablóide de literatura do jornal O POVO. Nos anos 80. O Moroni era
diretor ou era delegado da Polícia Federal. Eu tive que ir depor,
dei um depoimento farmacológico e o pobre do escrivão quase fica
louco lá (risos). Mas o Moroni deu azar porque uma semana depois eu
peguei ele num debate na UFC sobre drogas. Acho que, só de
sacanagem, me botaram lá. E o Moroni disse: “meu sonho é viver num
país que não precisasse de polícia”. Eu disse: “comunista, o senhor
é um comunista radical” (risos). Aí ele ficou maluco. E eu disse: “O
senhor é um comunista radical. O senhor é mais comunista que o Karl
Marx e o Engels juntos. O senhor é um revolucionário maior que o Che
Guevara. O senhor quer a guerrilha”. E ele não entendeu e eu fui
explicar. “O senhor quer viver numa sociedade sem crime. Isto é, só
há crime porque há a propriedade privada. Então, para não haver mais
crime tem que abolir a propriedade privada. O senhor está pregando a
abolição da propriedade privada, isso é comunismo do brabo”. Rapaz,
esse homem ficou louco, engasgou-se, foi se embora. Acho que ele não
me prendeu de novo porque não podia. Então, essa coisa de você
escrever com raiva eu aprendi. Quando eu tenho alguma raiva, eu
espero uma semana a coisa amornar para me tornar racional porque
depois desse tempo todo de jornal a gente começa a ter noção da
responsabilidade que a gente tem diante do leitor.
OP - Há um texto seu que foi muito marcante
que foi publicado na época em que sua mãe faleceu...
Airton Monte - Não foi só um texto, foram uns três textos. Eu
acompanhei a agonia da minha mãe na UTI, me envolvi muito. Minha mãe
estava na UTI pela vigésima vez, não era mais gente. E aquilo me
dava uma dor imensa. Eu ia lá desligar os aparelhos na marra, não
queria saber o que é que ia acontecer. Médico sabe fazer isso. Eu
até já tenho meus planos traçados com dois ou três amigos que é para
ter uma margem de segurança. Se um de nós cair nessa situação de
vegetal, o outro vai lá e dá um jeito. O ser humano tem direito. Já
que ele não pode escolher como nascer, ele tem o direito de escolher
como morrer. Na hora em que souber que estou com uma pereba dessas
grandes, e que não puder mais fazer o que faço e que vou ficar numa
cama feito abestado e tal, ou na cadeira de roda naquela base de
bota o velho no sol, tira o velho do sol pro velho não mofar...
(risos). Ah, a boca do véi tem mosca entrando (risos). É de lascar,
bicho. Então, escrevi na emoção. Eu tava no consultório, ela (dona
Sônia) me telefonou dizendo “tua mãe morreu”. Atendi todos os
pacientes com a mesma calma que podia aparentar e fui para o
velório. Fiquei lá até meia noite, pedi para me deixarem em casa,
escrevi a crônica numa máquina de escrever, avisei para a empregada
que de manhã o motoqueiro vinha pegar. Nem dormi. Enchi a cara de
uísque, fui para o funeral e fiquei lá até minha mãe se enterrar. Só
não assisti à missa. E voltei para escrever, escrevi umas três
vezes. Então, esses textos mais pessoais, escritos, como dizem os
advogados de bandido, sob forte emoção, esses saem. Mas mesmo assim
eu tenho que ter cuidado.
OP - Você falou que não anda mais em estádio,
mas é um torcedor apaixonado do Fortaleza. Como é a tua relação com
o futebol hoje?
Airton Monte - Eu sou essencialmente torcedor de três times.
Fortaleza, Seleção Brasileira e o Botafogo, que é minha paixão
realmente. Eu fui torcedor que nunca fui de brigar, eu sou de
chorar, de assistir aos jogos da seleção de camisa amarela, de ter o
time do Botafogo na minha parede, de ser fã do Garrincha mais do que
do Pelé. Eu amo o futebol, então gosto do futebol bem jogado. Torcia
Botafogo, mas vibrava com o time do Santos, com o time do Palmeiras.
Eu vibrava com o Fortaleza que tinha Mozarzinho, Croinha. Como é que
não ia vibrar? Ou com o Ceará que tinha Gildo, Lucena, Zé Eduardo.
Então, o futebol para mim é expressão artística. O futebol continua
sendo uma das paixões da minha vida. Não consigo viver sem futebol,
eu gosto da bola bem jogada. Eu não quero ver malabarismo, o cara
colocar a bola no ombro e sair fazendo que nem o Ronaldo. Eu quero
ver é jogar que nem o Zidane, dar um passe de 40 metros, isso é o
futebol que estou acostumado a ver.
OP - O Estoril foi um lugar importante para
tua geração. Como é para você ter se afastado da Praia de Iracema?
Como você entende o fato de Fortaleza ter perdido o Estoril, a Praia
de Iracema?
Airton Monte - Praticamente o Estoril caiu na minha cabeça. A gente
sabia que mais cedo ou mais tarde ia cair porque toda vida que
chovia havia um problema. Eu estava em casa, com uma ressaca
lascada, mas a rapaziada ligou dizendo que o Estoril tinha caído.
Quando cheguei lá, eu vi o Estoril demolido e aquela mesa fúnebre ao
lado, umas cinco ou seis pessoas. E aquilo foi terrível pra gente.
Todo mundo ficou revoltado, triste. Ali, eu comecei a perceber que a
Praia de Iracema começava a morrer, definitivamente. A Praia de
Iracema perdeu a alma dela, deixou de ser um território lírico,
poético e engraçado. Na nossa geração, não era de bom tom, diziam os
colunistas sociais, ir a Praia de Iracema porque eram onde os maus
moços das boas famílias se encontravam com as meninas boas das más
famílias. O Estoril era um valhacouto de comunistas, maconheiros e
desocupados. Ser poeta naquele tempo era meio complicado. Ninguém
queria ser poeta, nem os médicos. Era meio complicado, ser músico,
ser poeta, se dizer boêmio. Eu sofri muito na minha carreira, eu e
outros colegas. A gente era malhado, “porra o cara é médico e vive
no Estoril, bebendo cerveja”. De vez em quando a polícia federal
batia lá atrás da maconha. Cansei de ficar em pé na parede, todos
nós, sendo revistados, a polícia atrás da maconha, só que a maconha
a negada já tinha escondido há muito tempo que ninguém era besta
(risos). Outras vezes, eles fechavam a Ponte Metálica. A gente ia
para ver o pôr do sol e de repente nos avisavam que tinham uns
policiais lá embaixo para cheirar as mãos de quem descia pra ver se
tinha maresia. Eu disse: “não tem problema, todo mundo mete a mão no
fundo, remexe um pouquinho”. E a negada sentia o nosso fiofó
(risos). Nunca mais ficaram lá.
OP - Você falou que já não sabe dizer o que é
esquerda ou direita em nossos dias. Ainda há alguma utopia, algum
horizonte político que você persegue, que você imagina que a gente
possa alcançar?
Airton Monte - Eu fui católico fiel até os 15 anos, depois me tornei
ateu, fui comunista, com todos os defeitos que a gente teve. Mas a
gente fez uma coisa legal em nossa geração. Hoje, posso me definir
como um anarquista utópico. Anarquismo no sentido filosófico da
palavra. O homem bem educado ou suficientemente bem educado,
conhecendo seus limites, não precisa de leis para dizer o que se
pode ou não fazer. Sabendo muito bem onde termina minha liberdade e
onde começa a do outro, não precisa de nenhuma lei do silêncio para
me dizer que não posso levantar o som alto depois das onze para não
incomodar meu vizinho. O importante, o caminho para o Brasil e para
o mundo seria primeiro a educação. É formando inteligência que a
gente vive. Democracia é você dar oportunidades iguais. Tanto faz
ser um filho de carroceiro ou de um milionário. O importante é você
dar oportunidades iguais, o mesmo nível de estudo, os mesmos
professores. Eu sei que isso nunca vai acontecer. Mas o estudo
público já foi bom no tempo do Liceu do Ceará. Educação é
fundamental.
OP - A tua geração sempre lutou por muitas
dessas bandeiras. Em que você acha que a tua geração errou para que
nós chegássemos aos problemas que estamos vivendo hoje?
Airton Monte - Nós erramos pelo simples fato de querer fazer a
revolução sem o povo. Nós não vimos que o segredo da revolução não
estava no campo, nós não éramos uma ilha. Depois de tanto tempo
pensando, eu vejo que nosso caminho tinha de ser diferente. Não era
o interior, eram as favelas. E achávamos que o povo era burro. Ou
infantilizamos o povo, sendo o pai dele, ou imbecilizamos ou
glorificamos. Essa entidade mágica que eu não sei quem é, o povo.
Porque eu também sou o povo. O povo também é sem vergonha. É vilão e
vítima.
Saiba mais
Dona Sônia, esposa de Airton
Monte, diz que o marido nunca sabe cobrar pelos textos que lhe são
encomendados. “Até mesmo os laudos periciais da psiquiatria, ele vem
perguntar para mim quanto é que tem que cobrar”. “Você é minha
ministra da Fazenda”,
brinca Airton.
Falando do amigo Jorge Pieiro, que Airton considera um dos
principais nomes da nova geração de escritores cearenses, Airton diz
que Pieiro é o moderno da turma, o “cara que faz cabelo, coisa e
tal”, é o “metrossexual”. “Mas como ele é muito baixinho, a gente
chama ele de ‘meio metro sexual’”.
Já o escritor Pedro Salgueiro, Airton chama de Pedro Sangreiro,
“porque ele mata tudo que é personagem”. “Enganchou num conto, ele
mata os personagens todos”.
Bárbara, filha de Airton Monte, é quem coordena a página dedicada ao
pai no orkut, site de relacionamentos da internet. “Uma vez ela
ficou furiosa porque perguntaram a ela se ele batia em mim”, conta
dona Sônia. “Minha filha não fique assim, diga que eu bato nela,
bato em você, bato no Pablo (filho de Airton), bato no cachorro, em
todo mundo”, conta Airton às gargalhadas.
Airton diz que tem três ou quatro livros de poesia prontos, além de
um romance, uma novela sobre futebol, uma peça de teatro e um livro
de contos “Os bailarinos”. “Há tanta coisa aí guardada”, conta. “Eu
não publico porque desde que publiquei meu primeiro livro pela
editora Moderna que decidi não publicar mais nenhum livro com o meu
dinheiro. Afinal, o escritor já é o camelô de si mesmo, tem que
escrever e sair vendendo o bicho de mão em mão, indo nos programas
de rádio, etc”.
Segundo dona Sônia, quando está num restaurante, Airton repara se há
algum casal conversando e fica imaginando o assunto para poder se
inspirar em suas crônicas. “Ele me manda ao toalete para eu passar
perto do casal e ouvir o que eles estão dizendo", revela.
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