Nilto Maciel
João Clímaco
Bezerra e a arte da novela
Talvez não seja mais
tempo de se debater o que sejam conto, novela e romance. As
estruturas dos gêneros foram se modificando: o conto deixou de ser
narrativa linear, o espaço narrativo do romance se reduziu, etc.
Escritores e editores decidiram a questão com a ajuda da régua:
conto = peça ficcional curta; novela = história de tamanho médio,
cerca de 100 páginas; romance = ficção longa, com mais de 100
páginas. Longa é a noite, de João Clímaco Bezerra, é tida
como novela. A 3ª edição (Fortaleza: Edições Poetaria, 2007) tem
apenas 76 páginas. O volume todo chega a 88, incluídos o sumário, o
prefácio e as páginas iniciais comuns a qualquer livro. Poderia ter
diminuído ainda mais, se o editor tivesse emendado os “capítulos”,
sem deixar espaços em branco nas páginas. Há capítulos com uma
linha, cinco linhas. Assim, seria um conto longo. Mas o próprio
Clímaco o considerou novela, como se vê no título do livro em que a
obra apareceu pela segunda vez, em 1952: Duas novelas, de
parceria com José Stênio Lopes, autor da narrativa A chuva.
João Clímaco Bezerra
(Lavras da Mangabeira, Ceará, 1913-2006) publicou Não há estrelas
no céu (1948), Longa é a noite (1951), Sol posto
(1952), O homem e seu cachorro (1959), este de crônicas, O
semeador de ausências (1967), A vinha dos esquecidos
(1980) e deixou inédito Os órfãos de Deus.
Longa é a noite
tem a forma de diário: de 1º de janeiro a 7 de abril de ano
indeterminado. São 53 dias ou capítulos. Como o narrador se acha
numa casa de serra, nas proximidades de um vilarejo, longe dos
produtos da era industrial, torna-se impossível determinar a época
em que vivia. Não há referência a automóvel e telefone. A menção, no
primeiro dia, a uma vitrola que “moía o Danúbio azul” num
café (cafeteria) dá idéia da presença de energia elétrica na vila.
No entanto, mais adiante se refere “à luz do acetileno” para alumiar
uma roleta. Na casa em que está usa-se lamparina, porque a “energia
elétrica termina às onze horas” (p. 35). O transporte da capital
para a vila é o trem, como se pode observar no capítulo “2 de
fevereiro”: “Encontrei-a (Margarida) no trem no dia justo em que vim
para esta casa”.
O nome do narrador é
omitido ao longo da história. Talvez o autor tenha tido o propósito
de deixar de mencioná-lo. Ou terá sido descuido, desatenção, falha?
Qual o escritor que não sonha com a imortalidade de pelo menos um de
seus personagens? Os grandes protagonistas de romances, novelas e
contos ficaram na lembrança dos leitores também por seus nomes:
Quixote, Bovary, Iracema, Capitu. Ao leitor de Longa é a noite
resta “descobrir” a identidade de seu personagem principal em breves
informações. A primeira delas é de que se trata de um homem: “sou um
homem triste” (segundo parágrafo). E o complemento: um homem doente.
De uma “doença arrasadora”, “inoculada no meu sangue”. Se se
tratasse de novela do Século XXI, o leitor imaginaria um doente de
AIDS. No passado, as pessoas afetadas por doenças de pulmão
procuravam as serras como cura. O doutor “admirou-se de eu haver
abandonado os recursos médicos da capital para me valer
exclusivamente do clima”. (...) “O acertado seria ter permanecido na
capital, fazendo pneumotórax” (p. 26). O narrador, como quase todo
doente, evita falar da doença, do nome dela. Na p. 57, ao visitar o
barbeiro, ouve pela primeira vez o nome indesejado (“um termo
terrível e contundente”): “Desde quando está tísico?” Também no
primeiro dia há a informação de que sempre viveu só. Isto é, sem
mulher e filhos, sem família. No segundo dia, o complemento: vive
com uma “velha empregada, a preta Joana”. No 15º dia o homem doente
se revela poeta. O jornal, trazido pelo carteiro, estampa “alguns
versos meus”. E revela: “Chamavam-me de um dos mais altos valores da
moderna geração de intelectuais da minha cidade”. A partir daí, o
poeta não para de citar livros e escritores. O primeiro é José de
Alencar, em 31 de janeiro. Nos dias seguintes, Renan, Machado de
Assis, Eça, Rilke, Camilo, Jacques D’Arnoux, como para demonstrar
erudição.
O leitor tem, pois,
a seguinte informação: o protagonista é um homem doente de tísica,
está numa serra, vindo da capital, em busca de cura, vive com uma
empregada e escreve um diário e publica versos nos jornais da
capital. Não se sabe sua idade (homem maduro, pelas recordações
dele), como se veste e calça, de que se alimenta, etc. Vez por outra
passeia pelo campo, vai à vila, frequenta o café, conversa com o
médico e o pároco e procura Margarida. E é esta personagem quase
imaginária que alimenta a curiosidade do leitor. E faz de Longa é
a noite obra literária de intrigante concepção. Quem é
Margarida? O narrador está apaixonado? Por que a garota nunca
aparece? Será a noiva do médico? Impossível o leitor obter
respostas, pelos silêncios do narrador, pelas sinuosidades da
narrativa. E isto é que dá à história uma aura singular, só vista em
composições menos realistas e mais intimistas, como as de Cornélio
Pena, Lúcio Cardoso, O. G. Rego de Carvalho e outros grandes
romancistas brasileiros.
Margarida “aparece”
logo na primeira página: “Afagava também a esperança de encontrar
Margarida. Conversar com ela, contagiando-me da sua tagarelice”. E
assim é durante todo o diário: ele se refere a ela, mas não a vê,
não a encontra, como se fosse invisível, impalpável, etérea. Talvez
a mulher ideal, dos sonhos, a musa. Em 23 de janeiro ele a vê,
furtivamente: “Acordei, sobressaltando. Alonguei a vista para a
estrada e estremeci. Margarida passava em direção à vila. Gritei por
ela, ergui-me num ímpeto e corri”. Não consegue, porém, alcançá-la e
desiste.
O protagonista da
novela conheceu Margarida no trem que o trouxe da capital para a
vila: “Não a avistei mais. Desapareceu. Recordo que tinha os cabelos
louros, e, à noite, cantou para os passageiros”. No capítulo “3 de
fevereiro” o personagem faz a seguinte revelação: “Joana disse-me,
pela manhã de hoje, que o Dr. Lima era noivo. (...) Há anos o médico
namora uma pequena bem mais moça que ele e muito linda”. Seria
Margarida? Em 21 de março, uma conversa do protagonista com o padre
alimenta mais a curiosidade do leitor: “Confessou-me que a pequena
não quer bem ao médico”. No último dia do diário (e da vida do
narrador) um trecho parece esclarecer tudo: “A agonia exaure-me as
forças. Mal ouço as conversas do Dr. Lima na sala de visita. Trouxe
a mãe e a noiva para me visitarem. Vi apenas a velha; a noiva não
quis entrar no meu quarto”. Além de tudo, em nenhum momento do livro
o nome da noiva do médico é relevado. E, mesmo se o fosse (Margarida
ou outro nome), ainda assim persistiria a dúvida do leitor, pois a
moça do trem poderia muito bem ter se apresentado com nome falso,
por ser noiva do médico.
Longa é a noite
não é novela de costumes, realista, razão pela qual não há
nela nenhuma manifestação explícita de sexo, sem que isto
signifique lirismo exagerado ou romantismo açucarado.
O personagem não
vive, porém, só de presente. O diário não é pura narração de fatos
ocorridos nos dias na serra. A todo o momento, ele se volta para o
passado anterior à sua viagem de trem ao vilarejo. No 5º dia surgem
as primeiras lembranças: “Recordo os amigos que deixei longe. (...)
Eles devem frequentar o mesmo café”. Além dos amigos, também lembra
a irmã Lucimar e sua filha Mariazinha. E o marido que a maltratava,
bebia muito. A separação, a ida dela e da menina para a casa do
irmão. “Depois aquela história confusa: um ônibus, abalroamento,
testemunhas. E a mesa branca da assistência”. (...) “Mana Lucimar e
Mariazinha partiram. Deixaram-me terrivelmente só”. Recorda também o
pai e a mãe, com carinho: “Quando ela morreu, tinha eu apenas 11
anos. Meu pai não se tornou a casar e eu me liguei ao seu carinho,
como visgo. Éramos inseparáveis, nos longos passeios pela praia, nos
divertimentos, nas alegrias”.
A linguagem de João
Clímaco Bezerra é concisa. As frases são curtas, sem floreios.
Diretas, objetivas, desde a primeira: “Desci ontem ao vilarejo que
dormita lá embaixo, ao pé da serra”. Diálogos são raros e de poucas
falas. Descrições contidas: regatos, veredas, árvores, casas da
vila. Vocabulário simples, um ou outro verbo menos usado hoje, como
“engazopar” (p. 73). Sua linguagem não chega a ser castiça, embora
não seja desleixada. O leitor pode ver uso exagerado de adjetivos,
talvez em voga nos anos 1940, quando o livro foi escrito. Mas nem
isso macula a boa novela Longa é a noite.
Fortaleza, abril de
2009.
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