Jornal de Poesia

 

 

 

 

 

 

 

Alberto da Cruz



Análise estruturológica do livro
BOM-CRIOULO, de Adolfo Caminha

 

Resumo da obra por João Alves Bastos

 

 

Apresentação

 

Algumas explicações sobre o movimento naturalista

O escritor romântico, Camilo Castelo Branco, demonstra sua oposição ao movimento realista, julgando-o de forma imoral e criticando-o por retratar pessoas fúteis que premeditam crimes, que desorganizam famílias, padres que rompem o celibato, e – alterações sexuais. Assim dizia o ilustre escritor português ao movimento literário que surgia: "... Quero escrever romances para as pessoas lerem na sala, não nos quartos de banho. Quero escrever romances para que todas as pessoas da família possam ler: as moças mais jovens, as senhoras..." .

Os românticos afirmavam que as manifestações literárias eram fruto do sentimento, tanto na poesia quanto na prosa, valorizavam o conteúdo de suas obras, não davam valor à forma, à métrica e à rima de suas poesias, recheadas de sentimentalismo, pessimismo e subjetividade; seus romances, eram o fruto da imaginação dos autores, eram raras as vezes em que o romances não terminavam com a felicidade dos personagens que protagonizam a obra romântica. Tanto o Realismo quanto o Naturalismo repudiam o Romantismo, indo contra o pensamento romântico, mostrando de fato a realidade, em aspectos morais e filosóficos.

Podemos comparar o pensamento dos escritores românticos e dos escritores realistas / naturalistas com o que nos disse Adolfo Caminha, sobre o seu livro Bom-Crioulo: " Esta não é uma obra para se dar prêmios nas escolas. Escrever para educandas é uma coisa e escrever para espíritos emancipados é outra coisa." Reparamos que o pensamento de Caminha assemelha-se ao de Castelo Branco em termos de oposição entre o Romantismo e o Realismo / Naturalismo.

Ainda na questão do repúdio ao Romantismo, podemos destacar a definição de Eça de Queirós sobre o movimento Realista / Naturalista : " O Realismo é uma reação contra o Romantismo: o Romantismo era a apoteose do sentimento; – o Realismo é a anatomia do caráter. É a crítica do homem. É a arte que nos pinta a nossos próprios olhos – para condenar o que houver de mau na nossa sociedade." Eça de Queirós demonstra neste trecho uma das características Realista, que nada mais é do que a aversão ao Romantismo.

Antes de prosseguir com as demais explicações, devemos esclarecer que o Naturalismo foi posterior ao Realismo, e sendo assim, prolongou e exagerou o movimento realista. Freqüentemente confundidos, pois ambos possuem a mesma fundamentação nas bases científicas e filosóficas, baseiam-se na análise social e crítica, divergindo apenas na perspectiva em que se dá o enfoque.

Podemos dizer que ambos partem de um mesmo ponto e ambos chegam ao mesmo ponto, só que percorrendo caminhos diversos. Inclusive, podemos encontrar, numa mesma obra, determinadas posturas mais realistas convivendo com enfoques mais naturalistas.

Mas, para que possamos entender melhor o movimento Naturalista, é preciso conhecer alguns fatores: a Europa vive a segunda fase da Revolução Industrial, ao mesmo tempo que conhece o desenvolvimento do pensamento científico e das doutrinas filosóficas e sociais. Difundem-se o pensamento dialético de Hegel (tese – antítese – síntese), o positivismo de August Comte, o socialismo científico de Karl Marx e Friedrich Engels, o evolucionismo de Spencer e Charles Darwin e o determinismo de Hypolite Taine.

Em seqüência cronológica, temos o positivismo de Comte, preocupado com o real – sensível, com o fato, defendendo o cientificismo no pensamento filosófico; o socialismo científico de Marx e Engels, a partir da publicação do Manifesto Comunista, que define o materialismo histórico e a luta de classes ("O modo de produção da vida material condiciona o progresso da vida social, política e intelectual em geral" – Karl Marx); o evolucionismo com Darwin, a partir da publicação de A origem das espécies, livro em que são expostos os estudos sobre a evolução das espécies pelo processo de seleção natural, negando a origem divina defendida pelo Cristianismo.

O determinismo de Taine (raça – meio – momento), segundo os naturalistas expressa-se na forma em que: o homem é um animal cujo destino é determinado pela hereditariedade, pelo efeito de seu meio ambiente e pelas pressões do momento. Refletindo essa nova ordem, Émile Zola lança em 1867, Thérèse Raquin, inaugurando o romance naturalista. Introduzindo a ciência no plano da obra artística, o Naturalismo faz desta um meio de demonstração de teses científicas principalmente a psicopatologia (vícios, taras, manias, etc.). O naturalismo assume uma posição combativa na análise de problemas que a decadência social evidenciava e faz do romance uma verdadeira tese, com intenção científica. Reconhece-se atrás desse método, um desejo de mudar as condições de existência social.

No romance naturalista, o protagonista, está, mais à mercê das circunstâncias do que a si mesmo, parecendo não ter entidade própria, como se fosse uma marionete. Ele é objeto de estudo, de observação, e cabe ao narrador desenvolver uma tese em torno do fato que o cerca. O papel do narrador naturalista é de registrar a realidade e ser tão impessoal quanto um cientista, sendo assim o romance naturalista, transforma-se em um romance de tese sobre a realidade humana.

São características do Naturalismo:

  • Privilégio da visão científica;

  •  O naturalista não seleciona o que vai falar;

  • A causa dos problemas são fatores naturais (meio – raça – momento);

  • Enfoca a classe miserável;

  • Possui a intenção de analisar;

  • Visão científica, patológica e critica;

  • Narrativa lenta e minuciosa;

  • narrador é um intérprete de casos patológicos;

  • Tem a função de denunciar a degradação humana;

  • Analisar a patologia social;

  • Gira em torno da relação instintiva homem – mulher;

  • Linguagem vulgar, grotesca e repugnante, com valorização de expressões sensoriais;

  • Personagens anti-heróis, indivíduo cujo comportamento é dominado por forças incontroláveis;

  • Espaço e tempo, contemporâneos do autor;

  • Ponto de vista impessoal e objetivo;

  • Crítica ao Romantismo.
     

O Autor

 

Adolfo Caminha nasceu em Aracati, Ceará, em 29 de Maio de 1867. Com a morte da mãe, quando tinha apenas dez anos, vai morar com um tio materno no Rio de Janeiro, aos dezesseis se matricula na Escola de Marinha, terminando o curso antes de completar dezenove anos.

Em 1886, já como guarda-marinha, viaja, de fevereiro a dezembro, no Almirante Barroso, e vai enchendo um caderno de notas, onde se acumulam observações sobre as terras vistas, de gente original ou pitoresca; das notas sairia, mais tarde, um livro - No País dos Yankees.

Já quase no fim de 1887 é promovido a segundo-tenente, e no ano seguinte chega ao seu Ceará. Caminha se integra sem demora na vida pública do Estado e logo aparece como fundador do "Centro Republicano Cearense".

Adolfo Caminha se apaixona pela esposa de um oficial do Exército, escândalo grande em cidade pequena. Rivalidades de forças armadas; a moça, de dezenove anos, rompe com o marido, com a sociedade, com os preconceitos, e vai viver com o seu amado. A cidade ficou em brasa, como incêndio em estopa ou serragem. Uma que outra labareda, pequena; o mais, pura brasa, temperatura elevadíssima. Os alunos da Escola Militar querem "vingar a farda do Exército", as famílias puritanas exigem que seja transferido do Ceará o profanador dos bons costumes. Correm os dias, e o escândalo parece que vai terminar, quando o Ministro chama o oficial à Corte. Ele vem, conta a verdade, o Ministro acha que o assunto nada tem a ver com os regulamentos navais, e o casal continua em Fortaleza.

O novo ministro, Almirante Wandenkolk, manda chamá-lo urgentemente ao Rio. A intriga renascera. Caminha é transferido para um navio que está de saída para a Europa. Nem tempo terá de voltar a Fortaleza para as despedidas. Tenta explicar ao comandante a impossibilidade de viajar assim, de uma hora para outra, diz que pedirá uma licença para tratar da saúde. Inútil, É acusado de prática de rebeldia,

Calmo e contido como de seu feitio, pede demissão da Marinha. Amigos aconselharam; falaram, de certo, em loucura, precipitação, futuro esplêndido sacrificado por um rompante. Mas Adolfo Caminha não

era de rompante; era, sim, inabalável, agia segundo as normas da honra que considerava mais importante que os preconceitos e a prudência acomodada. Em fevereiro de 1890 obteve a demissão.

Em 1890 é nomeado amanuense do Tesouro, com exercício no Ceará. O Ministro que assinou a nomeação foi Rui Barbosa.

É desse tempo a redação final das notas do caderno de viagem, e No País dos Yankees sai em folhetim do Diário de Fortaleza. Em 1891 funda a Revista Moderna, escreve notas de críticas literárias e pensa num romance - A Normalista - com a descrição de um episódio escandaloso havido e sabido em Fortaleza, mas abafado em cochichos, e que escapara à sanção do meio, tão implacável com o seu caso de amor.

Retraído, não busca a vida e o convívio literário; aceita, porém, participar da Padaria Espiritual, passa a padeiro, freqüenta as sessões, a que chamavam fornos. O jornal da confraria era O Pão.

Em 1892, chega ao Rio de Janeiro, e traz dois originais prontos: "No País dos Yankees", já publicado na imprensa, como dissemos, e "A Normalista", inédito. Enquanto espera e procura editores (um lhe ofereceu trezentos mil-réis pelos direitos do livro) escreve em jornais. Dá opinião sobre literatura; não gosta, e disso não faz segredo, dos livros que mantém a glória de vários medalhões. Bons, para ele, são Aluísio Azevedo e Cruz e Sousa. Suas opiniões sobre escritores estão em Cartas Literárias. Criticou os Versos Diversos, de Antônio Sales, Fome, de Rodolfo Teófilo, e o grêmio literário Padaria Espiritual O grêmio o expulsou, embora tivesse sido um dos seus fundadores; Antônio Sales chamou-lhe "birrento, rancoroso", e Rodolfo Teófilo fez a demolição de A Normalista.

Em fins de 1896, uma doença romântica, a tuberculose, atacou de chôfre o crítico irônico, o escritor realista. Morreu com trinta anos incompletos.

 

 

Resumo da Obra: O Bom-Crioulo

 

A corveta em que se passa o início desta história é uma pequena e velha embarcação, oscilante sobre o mar, vez por outra algum contratempo nada grave, mas no fim a mesma pasmaceira de sempre.

Com a viagem já chegando ao final, ao final também chegavam os alimentos, restando, para desespero dos marinheiros, carne-seca e enlatados.

São onze horas. O tenente de plantão chamou pelo corneteiro, que após a segunda chamada apareceu e operou seu ofício. Apareceram marinheiros, oficiais e não oficiais, de todas as partes, perfilando-se. Perfilados, fez-se silêncio e via-se a curiosidade em cada marinheiro. O tenente mandou buscar os presos, que logo chegaram metidos em ferros e postos no meio do convés.

Costuma-se perguntar aos presos se sabem por que vão ser castigados; faz-se um pequeno discurso em que o tema é ordem e disciplina; passa-se à leitura do Código na parte pertinente aos castigos corporais.

Junto aos presos há um homem, cuja função, exercida com prazer, é a chibatada, a que creditava o título de fazedor de marinheiro de verdade.

O primeiro a levar o castigo é Herculano. Vai apanhar de camisa, a contragosto de Agostinho, o aplicador da chibata. Serão vinte e cinco chibatadas. Agostinho batia com gosto, ou seja, sem dó. Para os demais, aquilo era como um dia após o outro.

O crime de Herculano, uma marinheiro tímido e pouca sociabilidade fora ser surpreendido, em seu isolamento, a mexer com o braço numa posição torpe, cometendo, contra si próprio, o mais vergonhoso dos atentados, ou seja, um crime de lesa-natureza: derramara inutilmente, ao convés seco e estéril, a seiva geradora do homem. Todavia, seu castigo foi por haver, após ter sido surpreendido, atracado-se com o Sant'Ana, quem o surpreendera, a quem foi aplicado o mesmo castigo.

O terceiro preso é um baita negão, Amaro, robusto, temido, de traiçoeiro cunho de flexibilidade e destreza felina. Homem manso até que vertesse em sua garganta o calor da aguardente.

Perguntado se sabia por que estava ali respondeu que sim. Amaro havia estraçalhado um marinheiro que, sem seu consentimento, ousara maltratar Aleixo, um grumete branco em cera, olhos azuis, que é querido por todos. Amaro reconhecia a justiça de seu castigo, todavia na certeza de que havia, mais uma vez, demonstrado que é homem. Apanhou sem camisa, deixando à mostra toda a escultura perfeita que era seu corpo.

Lá se iam mais de cinqüenta chibatadas e nem um só movimento, do corpo ou da voz, a indicar dor, apesar das marcas indeléveis que o instrumento deixava-lhe na carne, quando, de repente, um estremecimento causado por um açoite nos rins. Agostinho delirou. Enfim venceu a máquina de Amaro. Ao todo foram cento e cinqüenta chibatadas.

Amaro sabia que seu castigo era mais que justo e pretendia assim desarmar o espírito e o coração de Aleixo, seu protegido, para então conquistá-lo.

Amaro, por volta dos dezoito anos, veio não se sabe de onde fugido. Estava agora no Rio de Janeiro, lugar em que tornou-se marinheiro. Sentia-se logo livre, agora navegando. Mesmo livre sentia saudades dos tempos do cafezal, não da escravidão, mas dos amigos e de sua mãe. Sabia, contudo, que não valia, era bom esquecer que a liberdade era boa.

Ele era bom marinheiro, bom colega, bom inferior, admirado por todos, meigo, disciplinado. Por tudo isso, mereceu dos superiores a alcunha de Bom-Crioulo.

Ainda não havia participado de embarque definitivo, somente de exercícios, quando foi convocado a embarcar para o sul. Foi só felicidade.

Enfim partiu, deixando para trás os contornos da ilha e as saudações dos marujas. Nem dormiu na primeira noite.

No primeiro banho os demais marinheiros descobriram que Bom-Crioulo tinha, ao contrário de seu caráter manso, um corpo de respeitável conjuntura de músculos, que desde então impôs cautela no espírito dos demais. Via de conseqüência, passou a ser o homem certo para as tarefas viris.

Bom-Crioulo já passou dez anos no mar, por quase todo o mundo. Nesse meio tempo conheceu Aleixo, que embarcara no sul. A amizade deles surgiu do nada, inesperada. O amor de Bom-Crioulo pelo grumete veio ao primeiro olhar, escravizando-o, escravizando seu coração como nunca, nem homem nem mulher lhe houvera.

Já no primeiro contato, perguntou ao grumete seu nome e prometeu-lhe segurança contra quem quer que lhe incomodasse. Tímido, concordou com tudo que lhe era dito.

Aleixo contava quinze anos. Filho de família pobre, foi pelos pais posto na marinha. Com o tempo acostumou-se aos carinhos e investidas de Bom-Crioulo, e aceitou-os. Amaro, por sua vez, ao esmurrar o segunda-classe, quis mostrar ao grumete seu poder e até que ponto seu zelo para com ele ia. O que de fato impressionou o menino.

Amaro, a essa altura, já não é mais tão dócil, tão estimado e respeitado como marinheiro. Talvez o amor o tenho feito menos manso. Da saída de Amaro ao seu retorno, a única coisa que se lhe permaneceu foi a força física.

Por fim, a embarcação estava por chegar à Guanabara, para desgosto de Amaro, para quem a viagem deveria ser um sem-fim. Em sua mente, todavia, nada além de Aleixo, verdadeira tentação.

Bom-Crioulo queria-o por esposa, em todos os seus significados. Isso não lhe saía da cabeça. Afinal, não se havia dado bem com mulheres, de quem preferia distância de suas manias intrigueiras e fingidas, com as quais somente duas vezes havia se aventurado: a primeira, em Angra dos Reis, fora forçado a dormir com uma moça; na última, embriagado com uma francesa. Tinha motivos para não as querer: havia dado péssima amostra de si como macho.

Todavia, não se entendia com seu espírito esta vontade de possuir um outro homem, vontade incontrolável, jamais passada em sua mente. Afinal, tantas mulheres para satisfazer seus instintos.

Amaro, entretanto, não resistia. Presenteava e tratava o grumete como a uma moça, e este correspondia de igual modo. Ambos conversavam muito, trocavam idéias, Bom-Crioulo aconselhava, Aleixo ouvia, aquele fazia promessas, este sonhava com a vida na cidade do Rio de Janeiro de que tanto ouvira falar.

Numa noite anterior à chegada, Amaro estava decidido e resolver-se com o grumete, que ia se esgueirando às investidas. Foram dormir juntos na proa, bem aconchegante, bem aconchegados. Aleixo, sentindo seu corpo pulsar, delirando nos sonhos prometidos por Amaro, tentado já a ceder... Então, consumou-se o delito contra a natureza: a luxúria da primeira coabitação.

Chegavam finalmente. Aleixo ia deslumbrando-se com a nova vista; Amaro, em lhe apresentá-la. Todavia, Bom-Crioulo não apreciava a chegada. As conveniências do serviço poderiam pôr em cheque sua felicidade com o grumete. Qualquer deles poderia ser transferido.

Bom-Crioulo pensava agora em sua libido dirigida ao Bonitinho, como costumava chamar Aleixo; descobria num outro homem o que debalde procurara nas mulheres. Refletia sobre sua condição, de que nunca se apercebera.

A corveta atracou, mas não se pôde desembarcar, o que viria a acontecer somente no dia seguinte, após uma noite de sono pesado para Bom-Crioulo, que acordou furioso ao perceber que, sem nenhum proveito, havia perdido durante o sono quase um rio de goma prolífica.

Ambos iam à terra, depois que o grumete havia conseguido licença para tanto; afinal, que bom ser bonito até aos olhos dos superiores, coisa que muito desagradou a Bom-Crioulo, deixando transparecer claramente em seus olhos sua desaprovação, seu ciúme. Desceram e rumaram à Rua da Misericórdia, onde haveriam de ter seu ninho, como prometido e sonhado. Chegaram.

Foram recebidos por D. Carolina, portuguesa dona de uma pensão na Rua da Misericórdia, onde Bom-Crioulo tinha pouso certo. Ela fora uma prostituta e era solteira, com seus quase quarenta anos.

Depois de muito ganhar com a antiga profissão, caiu doente e nunca mais voltaria às glórias da luz vermelha. Amigou-se algumas vezes, mas nada. Agora tinha seu homem – casado –, que pouco lhe rendia: uns tocados para o aluguel e carne diária, era açougueiro.

Conhecera Bom-Crioulo quando chegava em casa certa noite e foi surpreendida por ladrões que já lhe iam levando as únicas jóias restantes dos tempos de vacas gordas, havendo ele aparecido do nada e a salvado. História que foi contada, mais uma vez, a Aleixo, a quem conhecia naquele momento.

D. Carolina arranjou um quarto para ambos. Sabia que Bom-Crioulo não era dado a mulheres. Ele tratou de enfeitá-lo e arrumá-lo. Sem luxo, tanto que pela manhã costumava estender um cobertor grosso para ocultar os vestígios de amor.

Passaram-se seis meses. Ambos, a bordo, viviam bem, trabalhando exemplarmente. Duas folgas por semana. Em casa, felicidade. Apenas Aleixo desgostava dos caprichos libertinos do outro. Já na primeira noite quis vê-lo nu em pêlo. Amaro quase enlouqueceu com a visão do grumete nu; delirou libidinosamente. Tinha o pequeno como a uma mulher, não o via como macho.

D. Carolina o tinha em estima, chamava-o de bonitinho; fez-se amizade entre ambos. Aleixo sentia-se em casa, como a que deixara em Santa Catarina.

O romance ia transcorrendo; passara mais seis meses, o calor da paixão abrandara-se, o respeito mútuo crescia. D. Carolina nunca havia visto amor tão grande entre dois homens, alimentado principalmente pela certeza da fidelidade de Aleixo e pelo temor a Bom-Crioulo. Todavia, como nada é eterno, o negro foi mal surpreendido pela notícia de que serviria noutro navio. Restou ao bonitinho consolá-lo e a ouvir-lhe os conselhos ciumentos.

Amaro passaria agora a vir menos à terra; já na primeira folga de Aleixo o amante não vinha. Ficou em casa. Conversou um pouco com D. Carolina, a quem deu a notícia da transferência. Ela lamentou, mas o bonitinho confessou seu desagrado com a situação.

Essa situação confessada era prato cheio para ela, que já vinha com a idéia, amadurecendo, de conquistar o marinheirozinho, afinal, tinha em mente que queria mudar de vida amorosa, ter alguém por companhia e amante, e ele lhe caía bem. Não se importava com Amaro; fazia-o em segredo. D. Carolina deu-se a agradá-lo como que desinteressadamente, a mostrar-se-lhe mulher. Até certa vez ele a viu em poucas roupas, assim "por acaso", e gostou.

Na oportunidade, ela, sem rodeios, declarou sua paixão pelo pequeno. À primeira vista Aleixo não acreditou, mas diante da investida da mulher e dos carinhos afrodisíacos não resistiu e caiu em luxúria com a portuguesa. Gozaram aquela noite.

Acordaram em se encontrarem na ausência de Bom-Crioulo, a quem Aleixo já não queria ver nunca mais.

Amaro amargurava seu novo local de trabalho. As folgas eram espaçadas, e por conta de uma recomendação negativa a seu respeito, por causa de seu estado após a embriaguez, tinha-se por melhor deixá-lo ir pouco à terra, mais precisamente, apenas uma vez ao mês.

Já na primeira semana, como não conseguisse folga, ofereceu-se um dia, como quem nada quer, a ir na embarcação das compras. Chegando ao cais, a pretexto de ir ao banheiro, pulou à terra. E sumiu.

Ele foi direto à Rua da Misericórdia; aí chegando dirigiu-se ao quarto, e o vasculhou atrás de "pistas". Ato seguinte, dormiu. Ao acordar foi saber pela portuguesa do Aleixo. Pressentia que, pelos desencontros, aquilo não iria bem; cogitou até de largá-lo para amigar-se com uma rapariga.

Foi dar uma passeio, parou num bar e deu-se a beber uns goles. Ficou naquele estado que todos temiam e foi direto ao cais para tomar uma embarcação e retornar a seu trabalho. Lá chegando foi dizendo coisas insanas aos que encontrou. Em uma meia volta que deu esbarrou em um português que estava ali quieto e risonho. Bom-Crioulo logo foi-lhe ofendendo e o português não se intimidou e rápido estavam em luta corporal.

Num momento Bom-Crioulo desvencilhou-se do português e puxou sua lâmina. Todo o povo que se reunira em volta para ver o embate ficou atônito. O português não perdeu tempo e deu sua carreira; nisso vinha vindo a polícia, mas ninguém tinha coragem de embater o negro, que a todos intimidava, inclusive a um oficial que acabara de chegar. Tensão... os polícias dividiram-se em grupos e, conjuntamente, atacaram o negro e o dominaram para ser levado preso.

Na manhã seguinte, no navio, foi castigado. Ao final da última chibatada caiu. Veio então um médico que o examinou, e Bom-Crioulo foi levado a um hospital.

Aleixo e Carola – era assim que ela lhe pedira para ser tratada – iam vivendo bem, amando-se mais e mais a cada encontro. Temiam por Bom-Crioulo, que ele descobrisse. Por Aleixo, tudo estava acabado entre eles; queria viver somente para ela, e ela para ele. Não sabiam do atual paradeiro de Amaro: o hospital.

Nesse lugar ele amargurava os dias, que mais pareciam eternidades. Vivia ainda pelas lembranças de Aleixo. Desconfiou que ele não soubesse de seu paradeiro e resolveu escrever-lhe uma carta, pedindo que lhe fosse visitar; queria menos a visita que testar o amante. Mal podia esperar a hora de encontrá-lo.

Chegado o dia seguinte, Bom-Crioulo ficou esperando a chegada dele. Abriu-se o horário de visitação... terminou e nada. O negro ficara furioso, imaginando coisas, ouvindo a voz do amante em cada som que passava por seu ouvido. Os dias continuaram passando e a vontade de ter o grumete de volta só fazia aumentar, como o desejo, feito plano, de fuga.

Enquanto isso, Aleixo e sua Carola iam vivendo bem: já dormiam juntos; não se preocupavam tanto com o negro, talvez já tivesse se esquecido do bonitinho; a afeição por D. Carolina aumentara tanto que já a queria somente para si, exigindo dela fidelidade. Ela prometera-lhe não mais se encontrar com o açougueiro... mas foi apenas promessa, pois não poderia ficar sem o fornecimento de carne nem o dinheiro do aluguel. Aleixo não precisava saber.

A carta de Bom-Crioulo chegou à Rua da Misericórdia, sendo recebida por D. Carolina que a leu, indignou-se e a rasgou. Por sorte Aleixo não estava em casa. Passou o dia inquieta, afinal pensava que já havia esquecido o grumete.

No dia seguinte, Aleixo chegou em casa e, pela primeira vez, encontrou a porta cerrada. D. Carolina, cheia de temores, assim procedeu. Isso, porém, levantou suspeitas no coração do grumete, que passava os olhos pela casa, pelos cantos em busca de uma "pista" que lhe indicasse a mudança no comportamento de sua Carola.

O clima entre eles ficou estranho. D. Carolina mais atenciosa; Aleixo mais sisudo. Tiveram um pequeno desentendimento e ela resolveu contar-lhe a verdade. Ele até cogitou de ir visitar o antigo amante, o que foi prontamente reprovado por ela. Desfeito o mal entendido, prepararam-se para dar um passeio, o dia estava muito quente...

Enquanto isso, Bom-Crioulo ia amargurando seus dias no hospital, sem receber a visita de Aleixo, a que creditava estar amigado com outro. Um dia encontrou em visita a outro marinheiro um ex-companheiro da corveta, de quem se aproximou para ter notícias de Aleixo, foi quando, então, ficou sabendo que o grumete estava amigado com uma rapariga, conforme supunham os demais marinheiros.

A idéia de Aleixo havê-lo traído, ainda mais com uma mulher, corroía-lhe a alma, e os planos de fuga amadureciam mais e mais em sua mente. Resoluto, Bom-Crioulo decidiu-se, enfim, a fugir. E fugiu. Tomou o caminho para chegar à Rua da Misericórdia, foi pensando em vingança, na traição do pequeno, na portuguesa (nesse momento um raio de dúvida atravessou seu pensamento: seria D. Carolina a rapariga?).

Já amanhecera o dia e enfim Bom-Crioulo avistava o sobradinho. Vinham-lhe lembranças de amor, e, agora, uma vontade de matar. Nessa hora a pensão ainda estava fechada.

Dirigiu-se até uma padaria em frente ao sobrado e aí foi saber de D. Carolina e Aleixo. O empregado da padaria não economizou informações: contou das saídas noturnas dos dois e do boato de estarem amigados. Bom-Crioulo não tentava não acreditar, mas diante do que disse o empregado não havia mais dúvida.

Mal acabara Amaro de saber da verdade avistou Aleixo saindo do sobrado, indo num ímpeto em sua direção. Estava desesperado. Agarrou Aleixo pelo braço; tremia; apertava violentamente o outro; gagejava. Discutiam em voz baixa. Os transeuntes olhava-os pelas laterais. Começou a formar-se uma multidão de curiosos. No meio dessa confusão gritos, correria. De repente a multidão recuou; a polícia chegou.

Com o reboliço, D. Carolina correu à janela e viu, lá embaixo, Aleixo ser carregado, sujo de sangue. Desesperou. Os olhares eram todos para ela.

Amaro foi preso. Aleixo queria ser visto pelos curiosos que gostam de ver cadáveres.

Passados alguns momentos, tudo voltou à salmodia de sempre.

 

Tema:

O Homossexualismo dos homens do mar.

 

Enredo:

Bom-Crioulo é o apelido de Amaro, escravo fugido que se torna marinheiro. Ele desenvolve um relacionamento homossexual com Aleixo, jovem grumete. Eles arranjam um sobradinho para seus encontros na casa de Carolina, amiga de Amaro. Quando este é transferido, passam a se desencontrar e Carolina seduz Aleixo.

Amaro, que estava hospitalizado, doente e fraco quando antes era forte, descobre que Aleixo havia se tornado amante de Carolina e mata-o.

O relacionamento dos dois é retratado como outro qualquer e Aleixo é sempre descrito como "feminino" tornando-se masculino somente após algum tempo como amante de Carolina.

 

Complicação:

A complicação ocorre quando Amaro descobre que Aleixo passa a ter uma relação amorosa com uma mulher.

 

Clímax:

O clímax da obra ocorre quando Aleixo é assassinado por Amaro.

 

Tempo:

O tempo do romance é cronológico.

 

Espaço:

A ação se desenrola em alto mar e na Rua da Misericórdia, Rio de Janeiro

 

Foco Narrativo:

Terceira pessoa, onisciente (externo)

 

Tipo de Narrativa

O tempo da narrativa é linear, mas com a utilização de Flashback no segundo capítulo da obra.

 

Personagens:

Amaro (Bom-Crioulo) – escravo fugido, é alistado na marinha, forte e viril fisicamente contrastando com sua mente, fraca.

Apaixona-se por Aleixo, mantendo com ele um romance.

Depois de ser brutalmente castigado no "couraçado", o novo navio em que serve, pois envolvera-se numa briga, vai para o hospital, onde fica um longo tempo internado e descobre por meio de um colega da antiga caravela em que servia, que Aleixo estava de caso com uma rapariga.

Tomado por um ciúme animal, Amaro resolve fugir e vingar-se da traição.

Protagonista – tipo – plano.

Aleixo – jovem e ingênuo grumete, envolve-se com Amaro. Delicado e com jeito feminino é constantemente apresentado no romance como uma mulher.

Vai morar com Amaro na Rua da Misericórdia, onde conhece Dona Carolina.

Como Bom-Crioulo não podia ir à terra, é seduzido por D. Carolina e adota uma postura mais masculina, desinteressa-se por Bom-Crioulo, apaixonado-se por D. Carolina, que fora a primeira mulher da sua vida.

É morto por Bom-Crioulo, quando este o surpreende saindo da casa de D. Carolina.

Contraste – tipo – plano.

Dona Carolina (Carola Bunda) – quando nova era uma prostituta e recebeu das ruas o apelido de Carola Bunda.

Amiga de Bom-Crioulo desde que ele a salvara de um assalto e dona do sobradinho que Bom-Crioulo e Aleixo alugaram, sabe da relação amorosa entre o s dois.

Seduz Aleixo enquanto o "negro" estava distante e se apaixona por ele, mantendo um sentimento de amor e carinho. Suprindo o seu desejo de ser amada e também de ser mãe.

Mantém um caso com o senhor Brás, um açougueiro.

Antagonista – tipo – plana.

Secundários:

Herculano (pinga) – grumete que foi castigado por cometer um crime fora dos códigos, a masturbação. Foi ele quem disse para Bom-Crioulo sobre Aleixo e D.Carolina.

Sant’Ana - o guardião do quarto, foi quem surpreendeu Herculano enquanto este masturbava-se, brigando com ele em seguida, também sendo castigado.

Agostinho – especialista em aplicar a chibata, dizia: "Navio de guerra sem chibata é pior que escuna mercante...". Sentia prazer em aplicar os castigos nos marinheiros.

Comandante da caravela – homem robusto e de presença nobre, muito respeitado e temido, adepto da disciplina. Apaixonado pelo mar.

Comandante do "couraçado" - proibiu Amaro de ir à terra, pois, ouvira dizer que quando Bom-Crioulo bebia, tornava-se um animal.

Senhor Brás – Homem casado que tinha D. Carolina como amante, possuía um açougue e dava carne para ela.

Os demais personagens são irrelevantes.

 

 

Características naturalistas encontradas no livro:

 

A causa dos problemas são fatores naturais (meio – raça – momento);

O determinismo expressa-se no romance de forma clara e evidente, conduzindo seus personagens ao destino que lhes pertence.

Analisando os personagens centrais da história, vemos que:

Amaro – De raça negra, era escravo em uma fazenda, e nesta época, o momento não o ajudava, pois, o Brasil ainda era um país adepto da escravatura.

Sendo negro, não tinha chances de obter uma promoção na marinha, além é claro, de cargos em que a força física é superior.

Condenado por sua raça, Amaro via-se em um meio miserável, primeiro a caravela onde servia, com pessoas também na miséria, baixa qualidade de vida...

Em terra o que sobrava para Amaro, eram lugares baixos, vis e nojentos, povoados por pessoas sem escrúpulos, prostitutas e mendigos.

No mar esses fatores, principalmente o meio, levaram-no a caminhar em direção ao homossexualismo. E que para ele, um caminho sem volta.

Aleixo – De raça branca, não o impediu de conviver num meio deprimente. Sendo ingênuo, e a isso seu momento não era favorável, pois ainda moço, desconhecia as maldades da vida.

Influenciado pela "esperteza" de Bom-Crioulo, foi levado para o Homossexualismo. Nota-se que o assunto era tratado com naturalidade pelas pessoas que conviviam naquele meio.

Por ser o oposto de Bom-Crioulo, Aleixo, distante dele, consegue livrar-se do homossexualismo, e mantêm uma relação amorosa com uma mulher, assim que muda, um pouco de meio. Então, suas atitudes eram decorrentes do meio, tratado como um deslize, e longe do meio em que estava, mudara.

Conclui-se que, o determinismo, era favorável para Aleixo e completamente desfavorável para Amaro.

 

Visão cientificista do Homem:

Homem ligado ao animal, guiado por instintos, comparando-o com animais, dando-lhes qualidades dos mesmos.

Sempre comparando o homem com um animal, o romance segue a risca este pensamento.

Amaro domina Aleixo em todo o livro, associando que: o mais forte domina o mais fraco. E assim é e, toda obra.

Outro fator, é que, os personagens são movidos por instintos incontroláveis, que regem suas vidas, como animais que agem por instintos, quando encurralados, atacados, etc.

O homem é comparado ao animal em suas ações, prevalecendo o instinto à razão.

"Era incrível aquilo!

A mulher só faltava urrar!" (pág. 47)

"Trabalhara brutalmente; não havia resistir à fadiga. Momentos há em que os próprios animais caem extenuados ..." (pág. 33)

Não faz seleção do que vai falar:

O narrador não seleciona um assunto determinado, nem segue uma rota para sua narrativa, vai descrevendo e narrando os fatos, contando fatos sem muita importância.

 

Enfoca a classe miserável:

Os personagens, a linguagem, o local, a cultura, tudo gira em torno de um meio miserável.

"As unhas metiam náusea, muito quilotadas de alcatrão, desleixadas mesmo. Triste figura essa, cujo aspecto deixava uma impressão desagradável e persistente. (pág.12)

 

Intenção de analisar a patologia social:

Estudos dos vícios da sociedade.

"Junto aos presos equilibrava-se um homem de grande estatura, largo e reforçado, tipo de caboclo nascido no Amazonas, trajando fardeta e boné e segurando com ambas as mãos, sobre o joelho em, descanso, o instrumento de castigo: era o guardião Agostinho o célebre guardião Agostinho, especialista consumado no ofício de aplicar a chibata, o mais robusto e valente de todos os guardiães, e cujo zelo em cousas de "patescaria" tornara-se proverbial." (pág. 12)

 

Psicopatologia:

Trata-se do estudo das doenças psicológicas humanas (taras, vícios, etc. ). Expressada no livro de várias formas, destacando:

A tara em que o carrasco tinha em chicotear aqueles que sofriam a punição.

O principal exemplo, ocorre com os personagens centrais da história, o homossexualismo, onde Amaro é impulsionado pelo seu instinto e por forças incontroláveis quando estava diante de Aleixo.

 

O narrador interessa-se por fatores patológicos:

Tenta provar e analisar a patologia humana.

"D. Carolina era uma portuguesa que alugava quartos na Rua da Misericórdia somente a pessoas de "certa ordem", gente que não se fizesse de muito honrada e de muito boa, isso mesmo rapazes de confiança, bons inquilinos, patrícios, amigos velhos... Não fazia questão de cor e tampouco se importava com a classe ou profissão do sujeito. Marinheiro, soldado, embarcadiço, caixeiro de venda, tudo era a mesmíssima cousa: o tratamento que lhe fosse possível dar a um inquilino, dava-o do mesmo modo aos outros.

Vivia de sua casa, de seus cômodos, do aluguelzinho por mês, ou por hora. Tinha o seu homem, lá isso pra que negar? Mas, independente dele e de outros arranjos que pudesse fazer, precisava ir ganhando a vida com um emprego certo, um emprego mais ou menos rendoso para garantia do futuro. Isso de homens não há que fiar: hoje com Deus, amanhã com o diabo

Quando moça, tinha seus vinte anos, abrira casa na Rua da Lampadosa. Bom tempo! O dinheiro entrava-lhe pela porta em jorros como a luz do dia, sem ela se incomodar. Uma fortuna de ouro e brilhante! Já era gorducha, então: chamavam-na Carola Bunda, um apelido de mau gosto, invenção da rua..

Depois esteve muito doente, saíram-lhe feridas pelo corpo, julgou não escapar. E, como tudo passa, ela nunca mais pôde reerguer-se, chegando, por desgraça, ao ponto de empenhar jóias e tudo, porque ninguém a procurava, porque ninguém a queria - pobre cadela sem dono... Passou misérias! até quis entrar para um teatro como qualquer cousa, como criada mesmo. Foi nessa época, num dia de carnaval (lembrava-se bem!), que começou a melhorar de sorte. Um clubezinho pagou-lhe alguns mil-réis para ela fazer de Vênus, no alto de um carro triunfal. Foi um escândalo, um "sucesso": atiraram-lhe flores, deram-lhe vivas, muita palma, presentes - o diabo!

Durante quase um ano só se falou na Carola, nas pernas da Carola, na portuguesa da Rua do Núncio." (pág35)

"Ele ali se achava também, no seu posto, à espera de um sinal para descarregar a chibata, implacavelmente, sobre a vítima. Sentia um prazer especial naquilo, que diabo! cada qual tem a sua mania ..." (pág. 13)

Denunciar a degradação humana:

Mostra a queda moral e social humana.

"Por vezes tinha querido sondar o ânimo do grumete, procurando convencê-lo, estimulando-lhe o organismo; mas o pequeno fazia-se esquerdo, repelindo brandamente, com jeitos de namorada, certos carinhos do negro. Deixe disso, Bom-Crioulo, porte-se sério!

Nesse dia Priapo jurou chegar ao cabo da luta. Ou vencer ou morrer! - Ou o pequeno se resolvia ou estavam desfeitas as relações.

...

As nove horas, quando Bom-Crioulo viu Aleixo descer, agarrou a maca e precipitou-se no encalço do pequeno. Foi justamente quando o viram passar com a trouxa debaixo do braço, esgueirando-se

felinamente. . .

Uma vez lado a lado com o grumete, sentindo-lhe o calor do, corpo roliço, a branda tepidez daquela carne desejada e virgem de contatos impuros, um apetite selvagem cortou a palavra ao negro. Claridade não chegava sequer á meia distância do esconderijo onde eles tinham se refugiado. Não se viam um ao outro: sentiam-se, adivinhavam-se por baixo dos cobertores.

Depois de um silêncio cauteloso e rápido, Bom-Crioulo, conchegando-se ao grumete, disse-lhe qualquer cousa no ouvido. Aleixo conservou-se imóvel, sem respirar. Encolhido, as pálpebras cerrando-se instintivamente de sono, ouvindo, com o ouvido pegado ao convés, o marulhar das ondas na proa, não teve ânimo de murmurar uma palavra.

...

Uma sensação de ventura infinita espalhava-se-lhe em todo o corpo. Começava a sentir no próprio sangue impulsos nunca experimentados, uma como vontade ingênita de ceder aos caprichos do negro, de abandonar-se-lhe para o que ele quisesse - uma vaga distensão dos nervos, um prurido de passividade. . .

- Ande logo! murmurou apressadamente, voltando-se.

E consumou-se o delito contra a natureza." (pág. 30)

 

O romance gira em torna da relação instintiva homem – mulher:

No livro, Aleixo é visto por Amaro como uma mulher, inclusive o narrador, refere-se a ele como uma mulher que desperta atração em Amaro.

"Gabando-se de conhecer "o mundo", Bom-Crioulo cuidou primeiro em lisonjear a vaidade de Aleixo, dando-lhe um espelhinho barato que comprara no Rio de Janeiro – "para que ele visse quanto era bonito". pequeno mirou-se e... sorriu, baixando o olhar.

– Que bonito o quê!... Uma cara de carneiro mocho! - Mas não abandonou o trastezinho, guardando-o com zelo no fundo da trincheira, como quem guarda um objeto querido, uma preciosidade rara, e todas as manhãs ia ver-se, deitando a língua fora, examinando-se cuidadosamente, depois de ter lavado o rosto.

...

... E a camisa! - Oh, a camisa devia ser um bocadinho aberta para mostrar a debaixo, a de meia. O hábito faz o monge. O grumete aceitava tudo com um ar filial, sem procurar a razão

de todo esse esmero. Via marinheiros imundos, mal vestidos, cheirando a suor, mas eram poucos. Havia os que até usavam essências no lenço e óleo no cabelo.

No fim de alguns dias Aleixo estava outro e Bom-Crioulo contemplava-o com esse orgulho de mestre que assiste ao desenvolvimento do discípulo.

Um belo domingo, em que todos deviam se apresentar com uniforme branco, segundo a tabela, o grumete foi o último a subir para a mostra. Vinha irrepreensível na sua toilette de sol, a gola azul

dura de goma, calças boca-de-sino, boné de um lado, coturnos lustrosos.

Bom-Crioulo, que já estava em cima, na tolda, assim que o viu naquela pompa, ficou deslumbrado e por um triz esteve fazendo uma asneira. Seu desejo era abraçar o pequeno, ali na presença da guarnição, devorá-lo de beijos, esmagá-lo de carícias debaixo do seu corpo.

- Sim senhor! Parecia uma menina com aquele traje. Estava mesmo apto! Então o espelhinho sempre servira, hein?

E com um gesto rápido, nervoso, disfarçando a concupiscência:

- Bonitmho!

O pequeno, longe de se amuar com o gracejo, mirou-se d'alto a baixo, risonho, deu um muxoxo e seguiu para a forma sem dizer palavra." (pág. 24)

Aspectos formais, linguagem vulgar, grotesca e repugnante:

" ... que os pariu!"

 

Personagem anti-herói, indivíduo cujo comportamento é dominado por forças incontroláveis.

Amaro, força física em contraste com sua fraqueza moral, seu comportamento dominado por forças incontroláveis. Ele faz suas vontades utilizando suas impressões físicas que causam intimidação.

"Bom-Crioulo começou a freqüentar o sobradinho, onde iam outros marinheiros, e daí a grande amizade da portuguesa por ele, não que houvesse outra intenção: ela sabia que o negro não era homem para mulheres ..." (pág. 36)

"Muita cautela com Amaro (Bom-Crioulo). É um praça irrepreensível quando não bebe, mas em chupando seu copito, guarda debaixo! Faz um salseiro dos diabos."(pág. 48)

 

Descrição minuciosa:

Os naturalistas gostam de fotografar a cena como se a mesma fosse um quadro, descrevendo minuciosamente.

"A velha e gloriosa corveta - que pena! - já nem sequer lembrava o mesmo navio d'outrora, sugestivamente pitoresco, idealmente festivo, como uma galera de lenda, branca e leve no mar alto, grimpando serena o corcovo das ondas!...

Estava outra, muito outra com o seu casco negro, com as suas velas encardidas de mofo, sem aquele esplêndido aspecto guerreiro Que entusiasmava a gente nos bons tempos de "patescaria". Vista ao longe, na infinita extensão azul, dir-se-ia, agora, a sombra fantástica de um barco aventureiro. Toda ela mudada, a velha carcaça flutuante, desde a brancura límpida e triunfal das velas té à primitiva pintura do bojo." (pág. 11)

 

Impressão sensorial

"A luz intensa do sol caía do alto, pondo brilhos de malacacheta no cristal imenso do mar calmo. Um calor forte e asfixiante penetrava a carne, acelerando a circulação, congestionando, irritando o sistema nervoso atrozmente, implacavelmente.

Toda a atmosfera parecia vibrar num incêndio universal.

E o pano, largo e frouxo, a bater, a bater como uma cousa desesperada ..." (pág.11)

Ponto de vista impessoal e objetivo:

O narrador não interfere na ordem direta dos acontecimentos, apenas conta a história, conduzindo-a a seu desfecho, sendo impessoal como um cientista, fazendo com que seu romance seja uma tese da realidade que enfoca.

 

BIBLIOGRAFIA:

1 – BOSI, Alfredo. História concisa de Literatura Brasileira. 38ª edição, Cultrix.

2 – BRANCO, Camilo Castelo. Amor de Perdição. São Paulo, Klick Editora, 1997.

3 – CAMINHA, Adolfo. Bom-Crioulo. São Paulo, Ática, 1983.

4 – CAMINHA, Adolfo. Bom-Crioulo. Rio de Janeiro, Ediouro.

5 – NICOLA, José de. Literatura Brasileira, das origens aos nossos dias; 15ª edição, São Paulo: Ed. Scipione, 1998.

 

 

Aldolfo Caminha

Leia Adolfo Caminha

 

 

 

 

 

27.09.2005