Álvaro
Cardoso Gomes
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Uma poesia
de estatura clássica e sotaque regional
Pertencente
à linhagem dos poetas de inspiração helênica
e bíblica, Gerardo Mello Mourão explora, em , tensões
entre estruturas perenes e efêmeras
Por Álvaro
Cardoso Gomes
in Jornal da Tarde,
Sábado, 29.05.1999
Grosso modo, pode-se dizer que a poesia
brasileira se divide entre duas grandes linhas (não estanques, é
bom que se frise): a poesia do cotidiano, do humor, do coloquial, que encontra
em Bandeira e Drummond seus maiores expoentes, e a poesia universal, de
tom mais grave, cujos expoentes são Jorge de Lima e Murilo Mendes.
Gerardo Mello Mourão, com certeza, se enquadra nesta última
tendência: sua poesia, tendo por base temas e motivos clássicos,
se volta, de preferência, para o mundo helênico e bíblico.
Quando o referencial é outro, por exemplo, Copacabana, São
Paulo e o Nordeste (como acontece, por exemplo, em “Epitáfio 3”),
o poeta propositadamente funde o espaço regional com o mítico,
ou ainda, impregna o regional do mítico: “nasci em Tróia
– é falsa/a pública fé do registro civil no cartório
do coronel Né Guilhermino/pela qual o inocente seria nascido e datado/nas
Ipueiras do Siarah Grande.” Não bastasse esse olhar voltado para
um universo povoado de arquétipos, figuras exemplares do passado,
como Ulisses, Eva, Orfeu, Helena, Zeus, Clitemnestra, João Batista,
Jesus, etc, ainda o tom grave e a utilização de metros clássicos,
a referência implícita ou explícita a poetas e escritores
europeus e americanos (Homero, Camões, Villon, Verlaine, Elliot,
Pound, Faulkner), dão um caráter todo peculiar à poesia
de Mello Mourão, que reforça essa idéia inicial de
incluí-lo entre os poetas de uma tendência mais universal.
Contudo, não se pode esquecer que os traços de uma vivência
delimitada por um território de raiz nacional sejam perfeitamente
visíveis, sobretudo quando ele se refere à sua genealogia,
como em “A rede”: “E assim na sala da casa das Ipueiras,/no Tamboril, nos
Inhamuns/o pai de meu pai e o pai de teu pai/dormiram afagando o velho
bacamarte.”
Esse movimento contínuo, pendular,
entre os dois planos – o universal e o particular – corresponde evidentemente
ao desejo de o poeta equilibrar o efêmero de sua condição
humana àquilo que lhe outorgaria um simulacro de eternidade, só
alcançável no plano da arte. É talvez aí que
se explique, portanto, o título do livro Cânon & Fuga.
Fora sua dimensão musical, devidamente explicada no verbete que
lhe serve de abertura, o título remete também aos movimentos
que referi acima. “Cânon” pode ser entendido como “padrão,
modelo, regra” e, portanto, lembra o mundo clássico, repositório
absoluto de comportamentos eternos; “fuga”, por sua vez, implica as improvisações
e associações livres, sempre a partir dos modelos, a que
o poeta se entrega, para poder lançar a ponte entre o passado e
presente, ou ainda, para conseguir impregnar de eterno o efêmero
e de universal o regional.
A incursão pelo passado imemorial,
tendência mais ou menos comum em poesia, e algo inusitada em nossos
pagos, devido, em muitos casos, ao vezo do brasileiro de se ocupar, via
de regra, com uma cultura de raiz, fortemente impregnada de nacionalismo
e cor local, se deve, no caso de Mello Mourão, acima de tudo a um
mal ontológico. Esse mal ontológico se configura mais especificamente
como o da dor humana, causada pela não-permanência, pela transitoriedade.
Em “The Waste Brothels 1”, cujo subtítulo é bem sintomático,
“Demolição da casa onde foram Dora e as outras”, num clima
de desalento, melancolia, o poeta lamenta o trabalho nefasto do tempo que
deixou apenas vestígios da beleza passada: “os tempos apagaram/a
redonda noite de seus olhos” e “aqui jaz o adolescente em flor/jaz em sua
memória a memória/dos restos daquele aroma a cedro e cidra”.
A permanência dos vestígios no ar, perfumes, tons, é
o estímulo que o faz recuperar a aura do que já foi, mas
que também ativa a imaginação com a consciência
de uma espécie de morte absoluta, que elimina não só
os seres e seu espaço, como igualmente elimina o sagrado: “Diônisos
é morto e os bárbaros extinguiram seu culto.” Enfim, tudo
é transitório, tudo se evola no tempo: “passagem da beleza
pelo tempo/pelo espaço de onde para sempre/se ostenta e se ausenta
tua graça” (“Dezoito exercícios”).
A consciência dos malefícios
do tempo leva o poeta a assumir quatro posturas básicas, diretamente
ligadas entre si, para constatar a efemeridade da vida ou mesmo para superá-la.
A primeira delas registra a presença da morte, por meio da composição
da série de epitáfios, como em “Epitáfio na estela
de Cecília”: “Dorme o sono de mármore o rosto/degolada a
cabeça a mulher virgem.” O tom elegíaco, nesse poema, parece
contrastar com o tom irônico, meio de subverter a morte, que o poeta
adota ao compor o próprio epitáfio, em “Epitáfio 3”:
“Esta é a certidão de nascimento do que em vida/se chamou
Gerardo/e ele mesmo lavrou/em sua primeira e última pessoa.” A segunda
postura implica um determinado tom utilizado pelo “eu-poético”,
quando confrontado com o problema existencial da passagem do tempo. À
Villon (do “Balada das damas de outrora”), ele recupera o topos do ubi
sunt, ao indagar com melancolia “onde andam onde dormem as meninas
de então?” (“The Waste Breothels 2”). Esse enunciado que percorre
grande parte do livro, espécie de fórmula encantatória,
tem o condão mágico de evocar as imagens delidas, extintas
e como que recuperá-las para a consciência do poeta: “Esta
foi açafata, poeta, esta foi baronesa, esta foi do convento/de Soror
Mariana – uma foi dançarina e aquela/foi amante de meu tio.” A terceira
postura – e daí a importância da helenidade na poesia de Mello
Mourão – está diretamente ligada ao forte erotismo que impregna
grande parte de sua poesia, principalmente nos poemas da série dos
“Breothels” (corruptela para brothel, “bordel”), em poemas como “Nascimento
de Afrodite” e, sobretudo, em “Epigrama 4”, no qual o poeta descreve a
imagem ideal de um homem, Emanuel, “dependente de mulher”, que “era belo
e macho e forte e bravo e bom e dependente/do heroísmo do amor”.
A quarta postura, nascendo da constatação de que a existência,
na passagem do tempo, só deixa vestígios quase imperceptíveis
– “Que resta no ar do salto da pantera/senão risco?/Duras o que
dura um salto – duras/a duração da rosa aquela – a duração/do
coleio da serpente sobre a pedra” (“Dezoito exercícios”), o levará
a tentar proustianamente recuperar, por meio de estímulos que lhe
ativam a todo momento os sentidos, o que passou, na maioria dos casos metaforicamente
representado pela figura de mulheres míticas ou não: Catarina,
Marina, Joana, Madalena, Melpômene, Afrodite, Dolores, etc.
Em realidade, o sentimento doloroso
da passagem do tempo está diretamente ligado à consciência
de que nada tem existência real, de que as coisas sem consistência
dissolvem-se, deixando apenas traços quase imperceptíveis
no ar. Por isso mesmo, ao se conceber como um “tabelião das eras”,
“piloto do naufrágio” (“Um poeta”), “senhor de senhorio/e usufruto
do tempo/mora na cabana da sílaba/onde anoitece o verso” (“Endereço”),
o poeta adota um procedimento que é o de encontrar a forma mais
adequada para captar o inefável, aquilo que restou da passagem das
coisas pelo tempo e que, por isso mesmo, não pode encontrar acolhida
no seio da linguagem convencional. A saída parece estar na recorrência
à musicalidade. Como se sabe, desde o Romantismo os poetas procuraram
reativar a aliança entre a poesia e a música, como forma
de superar a esterilidade imposta pelo racionalismo iluminista, que impregnou
a poesia de pragmatismo. Sobretudo no Simbolismo, essa aliança se
tornou bastante explícita na ânsia dos simbolistas de eliminarem
da expressão poética tudo que negasse o mistério,
tudo que não fosse alusão, sugestão. Em suma, a busca
do inefável, daquilo que constituísse a essência do
real e não a sua aparência, levou os adeptos desse movimento
a buscar o auxílio da música (“De la musique avant toute
chose”, diz Verlaine), como se sabe, a mais imponderável e subjetiva
das artes, capaz de sugerir sem revelar.
A aliança entre poesia e música,
forma de se preservar as auras, em si mesmas imortais, inapreensíveis
por si mesmas, paradoxalmente representantes de uma eternidade relativa,
está presente na poesia de Gerardo Mello Mourão de uma maneira
mais explícita ou de uma maneira mais implícita. No primeiro
caso, ela fica evidente no título da obra e, sobretudo, no virtuosismo
formal de determinados versos e expressões, em que a linguagem se
torna musical graças ao recurso das aliterações, do
eco, das assonâncias, como nos casos de “navega a noite nave a vela”,
“ceifa afiada foice o favo arfante”, “guardaria o musgo, Musa, a música”,
etc. No segundo caso, a musicalidade se oferece, como essência da
poesia, na capacidade sugestiva que tem a linguagem, capaz de encontrar
a “sombra” da “voz”. Vem daí que o poeta, a exemplo do Verlaine
de “Art poétique”, procure evitar o prosaísmo das situações
muito claras, do simples registro de fatos, acontecimentos. Em “Intermezzo
ou exercício de Apolo”, essa opção se oferece na assunção
de uma postura em que o “eu-poético” despreza aquilo tudo que poderia
implicar uma visão mais objetiva do real: “Não quero a cor/quero
o matiz/não quero Vênus,/só Beatriz//Não quero
a aurora/do dia etrusco/quero a incerteza/do lusco-fusco.” Em “Concerto
para a rua São Luís e a Praça da República”,
a rememoração dos espaços paulistanos, mais do que
simples referência geográfica, é forma de se recuperar
a imagem dos que já foram: “As ruas sobrevivem: nelas com elas e
por elas nós, talvez,/graças à graça delas
um pouco vivos nos olhamos”.
Universalismo e regionalismo perfeitamente
conjugados, domínio absoluto dos meios de expressão poética,
são, portanto, as qualidades que marcam o livro de Mourão.
Poeta dos mais cultos, ele se torna uma das vozes peculiares da atual poesia
brasileira. Sobretudo por enveredar por um caminho que se vai tornando
cada vez mais raro: o dos apelos universais, o da tendência em unificar
a cultura brasileira e tradição clássica.
CÂNON
& FUGA, de Gerardo Mello Mourão. Record, 142 págs., R$
17,00.
Álvaro
Cardoso Gomes é romancista e crítico literário
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