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Um esboço de Leonardo da Vinci, página do editor

 

 

   
 
Culpa

 

William Blake, Death on a Pale Horse

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Allan R. Banks (USA) - Hanna

Álvaro Cardoso Gomes

 

Lição de Casa e Poemas Anteriores, que reúne a totalidade da obra poética do autor, mostra que sua poesia se equilibra justamente por esses dois pólos. A balança que orienta sua poética libera o coração mas não permite excessos emotivos
 


 

Lição de Casa & Poemas Anteriores reúne a obra poética de Carlos Felipe Moisés – A Poliflauta, A Tarde e o Tempo, Carta de Marear, Urna Diurna, Círculo Imperfeito e Subsolo – mais o inédito Lição de Casa. Coisa rara em quem militou na área universitária, muitas vezes restrita ao academicismo estéril, o autor, além de crítico e ensaísta dos mais originais, é também um poeta como poucos, de voz absolutamente pessoal. A marca desse pessoalismo comparece principalmente no perfeito equilíbrio entre a emoção e a ironia. Em Carlos Felipe, a emoção está presente na palavra “coração”, repetida algumas vezes, ou mesmo na metáfora do “lençol amarfanhado” ou da “cama desarrumada”. A emoção é o impulso deflagrador, a fonte subterrânea, inconsciente que alimenta o poema, contudo, ao invés de se derramar, ela é – como em toda grande poesia – transformada em objeto estético e mediada pela ironia.

O par emoção/ironia comparece na metáfora que dá título ao melhor livro da coletânea, Subsolo. “Subsolo” é o espaço subterrâneo, das pulsões interiores, da “sombrespessa”, cofre das emoções. “Solo” remete a quatro sentidos: solidão, voz musical em “solo”, sol e chão. A solidão é fecunda, no sentido de possibilitar a busca das pulsões poéticas, que se manifestarão através da voz lírica em solo. Sol e chão dão a dimensão solar e terrestre que equilibra as paixões e explica (em parte) a tenacidade de existir, a crença na força da palavra que, da matéria do nada, constrói seu edifício. O título Subsolo, portanto, remete tanto à emoção quanto à ironia, aquela fundada nas trevas, na desordem, na paixão, na dor frente ao vazio, ao nada; esta fundada na luz, na ordem, na serenidade despida de autopiedade com que se contempla a própria dor.

E como se manifesta a ironia? Num primeiro caso, ela deve ser entendida da perspectiva mais simples, mais direta, como um elemento que provoca uma deliberada forma de humor. Esse tipo de ironia comparece, sobretudo, em alguns poemas como “Conjugação” e “Aula de Francês”. No primeiro, as ciências da morfologia e da geografia são convocadas e, na seqüência, subvertidas, para que o poeta comente ironicamente o desencontro humano. O título funciona como espécie de lítotes, pois o sentido do termo aponta para o oposto: conjugar é o mesmo que juntar, mas os seres se maravilham, se “istmam”, se eclipsam, etc, isolando-se. Em “Aula de Francês”, o poeta coloca-se ironicamente na pele de um aprendiz da língua, que se defronta com lugares comuns, como o clássico início de uma fábula de La Fontaine, “La cigale ayant chanté”, com imagens surrealistas, como “l’entrecôte flambé”, com os apelos sensuais de Clô e Gaia. Mas esse humor completa-se no final do poema com a fuga do coração ante o exercício da dúvida: “entre entre entre/entre sem bater: bah!/mon coeur s’en va.”

Essa ironia, que nasce do humor, observa-se também em “Ortografia”, “Sintaxe”, “Pergunta”, “Marca Registrada” e no soneto “Ars Poética” e torna-se mais contundente quando subverte a noção de ensino. O poeta é o não-aplicado aluno que, por isso mesmo, mancha de poético algumas noções gramaticais. A morfologia, ciência das formas da linguagem, revela, antifrasicamente, a impotência do “eu-poético” frente às palavras, que se tomam “nacos de sombra”, ao serem mastigadas. E como sombras assombram, na ausência de som, de melodia. Daí que a memória se transforme num deserto de cinzas, tábula rasa. A etimologia, por sua vez, perde o ranço passadista e se toma prospectiva, traduzindo-se como “cada anseio/ que a língua/ recolhe”, ou seja, é ciência viva, que recupera nas palavras sua pulsação orgânica. Em “Linguagem figurada”, a retórica, apriorística ciência, ganha, com a anarquia dos tropos/trapos, nova iluminação: linguagem figurada é a desordem, é a indisciplina, é a emoção, a folha branca desarrumada pelas “sílabas rebeldes”.

Mas essa ironia que se alia ao humor, mais direto ou mais indireto, pode ganhar em outros momentos uma dimensão mais ampla, quando comparece através da forma do distanciamento. Distanciamento em relação à emoção que se contente desse modo, o sentimento ganha a dimensão de objeto estético que comove, no sentido mesmo etimológico de “levar junto”, de provocar aquele tipo de empatia superior, sinônimo de universalização. Em conseqüência, a dor, ao passar pelo crivo da ironia/distanciamento, atenua-se e não se transforma em constrangedora autopiedade. 

Essa consciência serena, estóica, simulacro do sol/solo e que se equilibra sobre as pulsações do subsolo, ao ter consciência de que há um abismo entre o sonho e a realidade, erige sua poética como uma estética da ou como a estética do vazio. O coração, que se vai entre uma coisa e outra, é também o responsável por preencher de poesia as lacunas do real, os interstícios da memória. Assim, se a verdade se perde, como “sonho breve”, como “branco escondido no branco” (“As formas do branco”), é porque, filosoficamente, o absoluto se nega porque absoluto, ou seja, a revelação, como toda revelação, ofusca e cega. Ou, como dá a entender o poeta, poeticamente: onde melhor esconder o branco senão dentro do próprio branco? Mas o desalento com a perda da verdade, da revelação é superada, quando, meditando sobre o vazio (o branco?), o poeta faz que o poema nasça do espaço desse vazio.

Em suma, alguns dos grandes projetos da suposta consciência vivente ou do “eu-emotivo” anulam-se ou são mediatizados pela consciência poética do “eu-irônico”, que, ao intervir, faz com que a linguagem recupere sua missão essencial: a da revelação, não de uma verdade, mas daquilo que constitui mesmo o imponderável ou as “margens do real”. Nesse sentido, a poesia de Carlos Felipe nega-se a um vulgar essencialismo ou a uma discursividade filosófica, negadores da poesia. A poesia, para ele, configura-se como o autêntico real, exatamente porque procura apreender o espaço oco entre as coisas, aquilo que passa desapercebido a um olhar distraído. Em “Modelagem”, Carlos Felipe, ao invés de modelar a matéria (como o faria um poeta parnasiano, amante da deusa Forma), propõe “cavar em torno/o oco sobrante/ ao quase nada/ de dentro”, poetizando o paradoxo: “o já-não-mais/do ainda-não”.

O que emerge, enfim, dessa semeadura de subsolo? A subversão das formas, a consciência da impossibilidade de se atingir a plenitude, a consciência do vazio, do nada, mas não numa discursividade estéril. Tais conteúdos atingem abrangência maior no próprio corpo do poema ou são a instigação metaforizada do próprio poema. Como em “Lagartixa”, cuja “pele/ de tão fina/ já não é:/ limita/ semovente/ o nada de fora/ e o quase nada/ de dentro”. O poema nasce dessa articulação entre um fora, a fina pele, e um dentro, o ventre, “quase nada/pura transparência”. A lagartixa, animal rastejante, é anatomicamente retalhada pelo poeta. Seu bisturi caótico revela-nos, aparentemente sem método, as partes constitutivas do todo: peito, olhos, língua, patas, ventre, entranhas, pele, coração e rabo, cada uma delas remetendo a uma imagem: vidro, porcelana, néctar, estanho, transparência, andaime, pétalas, nuvem, alga. Em suma, o poeta instaura os nexos entre as coisas do reino animal, mineral, etc, fundindo isto e aquilo e eliminando a distância entre as coisas. Realiza uma antianatomia: o retalhamento do animal é ilusório, porquanto, ao invés de reduzi-lo a partes sem um todo, aponta o caminho para um absoluto de relatividades ou para o “céu aberto”, virtualidade da imaginação, superando nossa condição nadificante e condenada ao desalento.


LIÇÃO DE CASA & POEMAS ANTERIORES, de Carlos Felipe Moisés. Nankin, 231 págs., R$ 22,00. (in Jornal da Tarde, Sábado, 23.01.1999)


Link para a página de Carlos Felipe Moisés
 

Allan R. Banks (USA) - Hanna

 

 

 

 

     
 
Wilson Martins

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Herodias by Paul Delaroche (French, 1797 - 1856)
 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Jornal do Conto

 

 

 

 

 

Álvaro Cardoso Gomes


Dois haicas

 

 
 

Palácio iluminado,

o olho do sapo

brilhando na escuridão.

 

 

 

Êxtase de luz!

Pela janela aberta,

entram mariposas.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Franz Xaver Winterhalter. Portrait of Mme. Rimsky-Korsakova, detail

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

John William Godward (British, 1861-1922), Belleza Pompeiana, detail

 

 

 

 

Álvaro Cardoso Gomes

 

Uma poesia de estatura clássica e sotaque regional 

Pertencente à linhagem dos poetas de inspiração helênica e bíblica, Gerardo Mello Mourão explora, em , tensões entre estruturas perenes e efêmeras 

 

 


Grosso modo, pode-se dizer que a poesia brasileira se divide entre duas grandes linhas (não estanques, é bom que se frise): a poesia do cotidiano, do humor, do coloquial, que encontra em Bandeira e Drummond seus maiores expoentes, e a poesia universal, de tom mais grave, cujos expoentes são Jorge de Lima e Murilo Mendes. Gerardo Mello Mourão, com certeza, se enquadra nesta última tendência: sua poesia, tendo por base temas e motivos clássicos, se volta, de preferência, para o mundo helênico e bíblico. Quando o referencial é outro, por exemplo, Copacabana, São Paulo e o Nordeste (como acontece, por exemplo, em “Epitáfio 3”), o poeta propositadamente funde o espaço regional com o mítico, ou ainda, impregna o regional do mítico: “nasci em Tróia – é falsa/a pública fé do registro civil no cartório do coronel Né Guilhermino/pela qual o inocente seria nascido e datado/nas Ipueiras do Siarah Grande.” Não bastasse esse olhar voltado para um universo povoado de arquétipos, figuras exemplares do passado, como Ulisses, Eva, Orfeu, Helena, Zeus, Clitemnestra, João Batista, Jesus, etc, ainda o tom grave e a utilização de metros clássicos, a referência implícita ou explícita a poetas e escritores europeus e americanos (Homero, Camões, Villon, Verlaine, Elliot, Pound, Faulkner), dão um caráter todo peculiar à poesia de Mello Mourão, que reforça essa idéia inicial de incluí-lo entre os poetas de uma tendência mais universal. Contudo, não se pode esquecer que os traços de uma vivência delimitada por um território de raiz nacional sejam perfeitamente visíveis, sobretudo quando ele se refere à sua genealogia, como em “A rede”: “E assim na sala da casa das Ipueiras,/no Tamboril, nos Inhamuns/o pai de meu pai e o pai de teu pai/dormiram afagando o velho bacamarte.”  

Esse movimento contínuo, pendular, entre os dois planos – o universal e o particular – corresponde evidentemente ao desejo de o poeta equilibrar o efêmero de sua condição humana àquilo que lhe outorgaria um simulacro de eternidade, só alcançável no plano da arte. É talvez aí que se explique, portanto, o título do livro Cânon & Fuga. Fora sua dimensão musical, devidamente explicada no verbete que lhe serve de abertura, o título remete também aos movimentos que referi acima. “Cânon” pode ser entendido como “padrão, modelo, regra” e, portanto, lembra o mundo clássico, repositório absoluto de comportamentos eternos; “fuga”, por sua vez, implica as improvisações e associações livres, sempre a partir dos modelos, a que o poeta se entrega, para poder lançar a ponte entre o passado e presente, ou ainda, para conseguir impregnar de eterno o efêmero e de universal o regional.  

A incursão pelo passado imemorial, tendência mais ou menos comum em poesia, e algo inusitada em nossos pagos, devido, em muitos casos, ao vezo do brasileiro de se ocupar, via de regra, com uma cultura de raiz, fortemente impregnada de nacionalismo e cor local, se deve, no caso de Mello Mourão, acima de tudo a um mal ontológico. Esse mal ontológico se configura mais especificamente como o da dor humana, causada pela não-permanência, pela transitoriedade. Em “The Waste Brothels 1”, cujo subtítulo é bem sintomático, “Demolição da casa onde foram Dora e as outras”, num clima de desalento, melancolia, o poeta lamenta o trabalho nefasto do tempo que deixou apenas vestígios da beleza passada: “os tempos apagaram/a redonda noite de seus olhos” e “aqui jaz o adolescente em flor/jaz em sua memória a memória/dos restos daquele aroma a cedro e cidra”. A permanência dos vestígios no ar, perfumes, tons, é o estímulo que o faz recuperar a aura do que já foi, mas que também ativa a imaginação com a consciência de uma espécie de morte absoluta, que elimina não só os seres e seu espaço, como igualmente elimina o sagrado: “Diônisos é morto e os bárbaros extinguiram seu culto.” Enfim, tudo é transitório, tudo se evola no tempo: “passagem da beleza pelo tempo/pelo espaço de onde para sempre/se ostenta e se ausenta tua graça” (“Dezoito exercícios”).  

A consciência dos malefícios do tempo leva o poeta a assumir quatro posturas básicas, diretamente ligadas entre si, para constatar a efemeridade da vida ou mesmo para superá-la. A primeira delas registra a presença da morte, por meio da composição da série de epitáfios, como em “Epitáfio na estela de Cecília”: “Dorme o sono de mármore o rosto/degolada a cabeça a mulher virgem.” O tom elegíaco, nesse poema, parece contrastar com o tom irônico, meio de subverter a morte, que o poeta adota ao compor o próprio epitáfio, em “Epitáfio 3”: “Esta é a certidão de nascimento do que em vida/se chamou Gerardo/e ele mesmo lavrou/em sua primeira e última pessoa.” A segunda postura implica um determinado tom utilizado pelo “eu-poético”, quando confrontado com o problema existencial da passagem do tempo. À Villon (do “Balada das damas de outrora”), ele recupera o topos do ubi sunt, ao indagar com melancolia “onde andam onde dormem as meninas de então?” (“The Waste Breothels 2”). Esse enunciado que percorre grande parte do livro, espécie de fórmula encantatória, tem o condão mágico de evocar as imagens delidas, extintas e como que recuperá-las para a consciência do poeta: “Esta foi açafata, poeta, esta foi baronesa, esta foi do convento/de Soror Mariana – uma foi dançarina e aquela/foi amante de meu tio.” A terceira postura – e daí a importância da helenidade na poesia de Mello Mourão – está diretamente ligada ao forte erotismo que impregna grande parte de sua poesia, principalmente nos poemas da série dos “Breothels” (corruptela para brothel, “bordel”), em poemas como “Nascimento de Afrodite” e, sobretudo, em “Epigrama 4”, no qual o poeta descreve a imagem ideal de um homem, Emanuel, “dependente de mulher”, que “era belo e macho e forte e bravo e bom e dependente/do heroísmo do amor”. A quarta postura, nascendo da constatação de que a existência, na passagem do tempo, só deixa vestígios quase imperceptíveis – “Que resta no ar do salto da pantera/senão risco?/Duras o que dura um salto – duras/a duração da rosa aquela – a duração/do coleio da serpente sobre a pedra” (“Dezoito exercícios”), o levará a tentar proustianamente recuperar, por meio de estímulos que lhe ativam a todo momento os sentidos, o que passou, na maioria dos casos metaforicamente representado pela figura de mulheres míticas ou não: Catarina, Marina, Joana, Madalena, Melpômene, Afrodite, Dolores, etc.  

Em realidade, o sentimento doloroso da passagem do tempo está diretamente ligado à consciência de que nada tem existência real, de que as coisas sem consistência dissolvem-se, deixando apenas traços quase imperceptíveis no ar. Por isso mesmo, ao se conceber como um “tabelião das eras”, “piloto do naufrágio” (“Um poeta”), “senhor de senhorio/e usufruto do tempo/mora na cabana da sílaba/onde anoitece o verso” (“Endereço”), o poeta adota um procedimento que é o de encontrar a forma mais adequada para captar o inefável, aquilo que restou da passagem das coisas pelo tempo e que, por isso mesmo, não pode encontrar acolhida no seio da linguagem convencional. A saída parece estar na recorrência à musicalidade. Como se sabe, desde o Romantismo os poetas procuraram reativar a aliança entre a poesia e a música, como forma de superar a esterilidade imposta pelo racionalismo iluminista, que impregnou a poesia de pragmatismo. Sobretudo no Simbolismo, essa aliança se tornou bastante explícita na ânsia dos simbolistas de eliminarem da expressão poética tudo que negasse o mistério, tudo que não fosse alusão, sugestão. Em suma, a busca do inefável, daquilo que constituísse a essência do real e não a sua aparência, levou os adeptos desse movimento a buscar o auxílio da música (“De la musique avant toute chose”, diz Verlaine), como se sabe, a mais imponderável e subjetiva das artes, capaz de sugerir sem revelar.  

A aliança entre poesia e música, forma de se preservar as auras, em si mesmas imortais, inapreensíveis por si mesmas, paradoxalmente representantes de uma eternidade relativa, está presente na poesia de Gerardo Mello Mourão de uma maneira mais explícita ou de uma maneira mais implícita. No primeiro caso, ela fica evidente no título da obra e, sobretudo, no virtuosismo formal de determinados versos e expressões, em que a linguagem se torna musical graças ao recurso das aliterações, do eco, das assonâncias, como nos casos de “navega a noite nave a vela”, “ceifa afiada foice o favo arfante”, “guardaria o musgo, Musa, a música”, etc. No segundo caso, a musicalidade se oferece, como essência da poesia, na capacidade sugestiva que tem a linguagem, capaz de encontrar a “sombra” da “voz”. Vem daí que o poeta, a exemplo do Verlaine de “Art poétique”, procure evitar o prosaísmo das situações muito claras, do simples registro de fatos, acontecimentos. Em “Intermezzo ou exercício de Apolo”, essa opção se oferece na assunção de uma postura em que o “eu-poético” despreza aquilo tudo que poderia implicar uma visão mais objetiva do real: “Não quero a cor/quero o matiz/não quero Vênus,/só Beatriz//Não quero a aurora/do dia etrusco/quero a incerteza/do lusco-fusco.” Em “Concerto para a rua São Luís e a Praça da República”, a rememoração dos espaços paulistanos, mais do que simples referência geográfica, é forma de se recuperar a imagem dos que já foram: “As ruas sobrevivem: nelas com elas e por elas nós, talvez,/graças à graça delas um pouco vivos nos olhamos”.  

Universalismo e regionalismo perfeitamente conjugados, domínio absoluto dos meios de expressão poética, são, portanto, as qualidades que marcam o livro de Mourão. Poeta dos mais cultos, ele se torna uma das vozes peculiares da atual poesia brasileira. Sobretudo por enveredar por um caminho que se vai tornando cada vez mais raro: o dos apelos universais, o da tendência em unificar a cultura brasileira e tradição clássica.  


CÂNON & FUGA, de Gerardo Mello Mourão. Record, 142 págs., R$ 17,00.  

Álvaro Cardoso Gomes é romancista e crítico literário. in Jornal da Tarde, 29.5.1999


 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

13.12.2008