Álvaro Cardoso Gomes
Lição de
Casa e Poemas Anteriores, que reúne a totalidade da obra
poética do autor, mostra que sua poesia se equilibra
justamente por esses dois pólos. A balança que orienta sua
poética libera o coração mas não permite excessos emotivos
Lição de Casa & Poemas Anteriores
reúne a obra poética de Carlos Felipe Moisés – A Poliflauta,
A Tarde e o Tempo, Carta de Marear, Urna Diurna,
Círculo Imperfeito e Subsolo – mais o inédito Lição
de Casa. Coisa rara em quem militou na área universitária,
muitas vezes restrita ao academicismo estéril, o autor, além de
crítico e ensaísta dos mais originais, é também um poeta como
poucos, de voz absolutamente pessoal. A marca desse pessoalismo
comparece principalmente no perfeito equilíbrio entre a emoção e a
ironia. Em Carlos Felipe, a emoção está presente na palavra
“coração”, repetida algumas vezes, ou mesmo na metáfora do “lençol
amarfanhado” ou da “cama desarrumada”. A emoção é o impulso
deflagrador, a fonte subterrânea, inconsciente que alimenta o poema,
contudo, ao invés de se derramar, ela é – como em toda grande poesia
– transformada em objeto estético e mediada pela ironia.
O par emoção/ironia comparece na
metáfora que dá título ao melhor livro da coletânea, Subsolo.
“Subsolo” é o espaço subterrâneo, das pulsões interiores, da “sombrespessa”,
cofre das emoções. “Solo” remete a quatro sentidos: solidão, voz
musical em “solo”, sol e chão. A solidão é fecunda, no sentido de
possibilitar a busca das pulsões poéticas, que se manifestarão
através da voz lírica em solo. Sol e chão dão a dimensão solar e
terrestre que equilibra as paixões e explica (em parte) a tenacidade
de existir, a crença na força da palavra que, da matéria do nada,
constrói seu edifício. O título Subsolo, portanto, remete
tanto à emoção quanto à ironia, aquela fundada nas trevas, na
desordem, na paixão, na dor frente ao vazio, ao nada; esta fundada
na luz, na ordem, na serenidade despida de autopiedade com que se
contempla a própria dor.
E como se manifesta a ironia? Num
primeiro caso, ela deve ser entendida da perspectiva mais simples,
mais direta, como um elemento que provoca uma deliberada forma de
humor. Esse tipo de ironia comparece, sobretudo, em alguns poemas
como “Conjugação” e “Aula de Francês”. No primeiro, as ciências da
morfologia e da geografia são convocadas e, na seqüência,
subvertidas, para que o poeta comente ironicamente o desencontro
humano. O título funciona como espécie de lítotes, pois o sentido do
termo aponta para o oposto: conjugar é o mesmo que juntar, mas os
seres se maravilham, se “istmam”, se eclipsam, etc, isolando-se. Em
“Aula de Francês”, o poeta coloca-se ironicamente na pele de um
aprendiz da língua, que se defronta com lugares comuns, como o
clássico início de uma fábula de La Fontaine, “La cigale ayant
chanté”, com imagens surrealistas, como “l’entrecôte flambé”, com os
apelos sensuais de Clô e Gaia. Mas esse humor completa-se no final
do poema com a fuga do coração ante o exercício da dúvida: “entre
entre entre/entre sem bater: bah!/mon coeur s’en va.”
Essa ironia, que nasce do humor,
observa-se também em “Ortografia”, “Sintaxe”, “Pergunta”, “Marca
Registrada” e no soneto “Ars Poética” e torna-se mais contundente
quando subverte a noção de ensino. O poeta é o não-aplicado aluno
que, por isso mesmo, mancha de poético algumas noções gramaticais. A
morfologia, ciência das formas da linguagem, revela,
antifrasicamente, a impotência do “eu-poético” frente às palavras,
que se tomam “nacos de sombra”, ao serem mastigadas. E como sombras
assombram, na ausência de som, de melodia. Daí que a memória se
transforme num deserto de cinzas, tábula rasa. A etimologia, por sua
vez, perde o ranço passadista e se toma prospectiva, traduzindo-se
como “cada anseio/ que a língua/ recolhe”, ou seja, é ciência viva,
que recupera nas palavras sua pulsação orgânica. Em “Linguagem
figurada”, a retórica, apriorística ciência, ganha, com a anarquia
dos tropos/trapos, nova iluminação: linguagem figurada é a desordem,
é a indisciplina, é a emoção, a folha branca desarrumada pelas
“sílabas rebeldes”.
Mas essa ironia que se alia ao humor,
mais direto ou mais indireto, pode ganhar em outros momentos uma
dimensão mais ampla, quando comparece através da forma do
distanciamento. Distanciamento em relação à emoção que se contente
desse modo, o sentimento ganha a dimensão de objeto estético que
comove, no sentido mesmo etimológico de “levar junto”, de provocar
aquele tipo de empatia superior, sinônimo de universalização. Em
conseqüência, a dor, ao passar pelo crivo da ironia/distanciamento,
atenua-se e não se transforma em constrangedora autopiedade.
Essa consciência serena, estóica,
simulacro do sol/solo e que se equilibra sobre as pulsações do
subsolo, ao ter consciência de que há um abismo entre o sonho e a
realidade, erige sua poética como uma estética da ou como a estética
do vazio. O coração, que se vai entre uma coisa e outra, é também o
responsável por preencher de poesia as lacunas do real, os
interstícios da memória. Assim, se a verdade se perde, como “sonho
breve”, como “branco escondido no branco” (“As formas do branco”), é
porque, filosoficamente, o absoluto se nega porque absoluto, ou
seja, a revelação, como toda revelação, ofusca e cega. Ou, como dá a
entender o poeta, poeticamente: onde melhor esconder o branco senão
dentro do próprio branco? Mas o desalento com a perda da verdade, da
revelação é superada, quando, meditando sobre o vazio (o branco?), o
poeta faz que o poema nasça do espaço desse vazio.
Em suma, alguns dos grandes projetos
da suposta consciência vivente ou do “eu-emotivo” anulam-se ou são
mediatizados pela consciência poética do “eu-irônico”, que, ao
intervir, faz com que a linguagem recupere sua missão essencial: a
da revelação, não de uma verdade, mas daquilo que constitui mesmo o
imponderável ou as “margens do real”. Nesse sentido, a poesia de
Carlos Felipe nega-se a um vulgar essencialismo ou a uma
discursividade filosófica, negadores da poesia. A poesia, para ele,
configura-se como o autêntico real, exatamente porque procura
apreender o espaço oco entre as coisas, aquilo que passa
desapercebido a um olhar distraído. Em “Modelagem”, Carlos Felipe,
ao invés de modelar a matéria (como o faria um poeta parnasiano,
amante da deusa Forma), propõe “cavar em torno/o oco sobrante/ ao
quase nada/ de dentro”, poetizando o paradoxo: “o já-não-mais/do
ainda-não”.
O que emerge, enfim, dessa semeadura
de subsolo? A subversão das formas, a consciência da impossibilidade
de se atingir a plenitude, a consciência do vazio, do nada, mas não
numa discursividade estéril. Tais conteúdos atingem abrangência
maior no próprio corpo do poema ou são a instigação metaforizada do
próprio poema. Como em “Lagartixa”, cuja “pele/ de tão fina/ já não
é:/ limita/ semovente/ o nada de fora/ e o quase nada/ de dentro”. O
poema nasce dessa articulação entre um fora, a fina pele, e um
dentro, o ventre, “quase nada/pura transparência”. A lagartixa,
animal rastejante, é anatomicamente retalhada pelo poeta. Seu
bisturi caótico revela-nos, aparentemente sem método, as partes
constitutivas do todo: peito, olhos, língua, patas, ventre,
entranhas, pele, coração e rabo, cada uma delas remetendo a uma
imagem: vidro, porcelana, néctar, estanho, transparência, andaime,
pétalas, nuvem, alga. Em suma, o poeta instaura os nexos entre as
coisas do reino animal, mineral, etc, fundindo isto e aquilo e
eliminando a distância entre as coisas. Realiza uma antianatomia: o
retalhamento do animal é ilusório, porquanto, ao invés de reduzi-lo
a partes sem um todo, aponta o caminho para um absoluto de
relatividades ou para o “céu aberto”, virtualidade da imaginação,
superando nossa condição nadificante e condenada ao desalento.
|