Jornal de Poesia

 

 

 

 

 

 

Alcindo Alves Gonçalves


 

Os sobreviventes

 

O concreto escaldante, o calor insuportável, o sol lá no alto, sombra em lugar algum, e o odor ácido, nauseante de suor, excrescências, merda e medo, pior que tudo, e ainda outro, mais sutil, porém perceptível, quase palpável, o cheiro doce da morte, pairando no ar carregado do meio-dia, invadindo narinas, aguçando instintos, e a fome, a sede, o cansaço, a cabeça tonta girando, girando, rodando, o sono e a febre, queimando, e a multidão compacta, intransponível, estática, ali aguardando o sinal que não vinha, irmãos, dizia a voz, monótona, monologa, que era ouvida, aproximem-se irmãos, repetia incansável, hipnótica, a voz era tudo que se ouvia no silencio denso, nebuloso, aqui esta, dizia, infatigável, e o murmúrio incontido, balbuciante, crescente, das mil, cem mil bocas famintas, aguardando, aguardando, com os olhos fixos no céu sem cor, opaco, translúcido, o gosto salgado do suor, escorrendo, deslizando pelas peles queimadas, escamosas, o dia é hoje, dizia a voz, e do alto das altas torres jorrava uma música, reverberando, nenhuma brisa, nenhum sopro de ar fresco, só o calor, o mormaço, a garganta seca, a sede não ignorada, fé, dizia ele, o reino virá e quem tiver fé será salvo, o tempo passando, estático, elástico, passando, o povo de Deus, eleito por Deus, dizia o orador do alto de seu púlpito, cuspindo palavras, mantendo todos ali, atentos ao menor sinal do céu indiferente, e o estômago vazio, vácuo-evacuado, roncando a dor da fome, de ontem, de antes, de quase sempre, eis que é vindo a se cumprirá, dizia, este é o dia de que vos tenho falado, quem tiver fome, não terá mais, quem tiver sede, não terá mais, dizia o orador, alimentando esperanças, sua voz viril vociferava no ar denso, carregado de tensão, elétrico, etéreo, e a vertigem do medo surdo, da morte cega, pior que tudo, e atrás da voz do orador, atrás da música incessante, um zumbido crescente, balbuciante, de mil, cem mil vozes, orando, aguardando o sinal que não vinha nunca, amém, amém, alguém dizia, a multidão impaciente, e o calor no concreto, no asfalto, no cimento cinza-cimento das torres cinzentas, queimando tudo, céu e terra, terra e céu, e o horizonte em chamas, vermelho, laranja, vermelho, vermelho, e a noite veio mansa, calma, serena, quando caiu à tarde e com ela caiam também velhos, fracos, doentes, um a um eles caiam como moscas, e choros e gritos foram ouvidos, seus corpos frágeis e frouxos, sem vida, carcaças vazias que eram pisoteadas pelos fortes, pelos sadios, pelos jovens, por aqueles que ainda sobreviviam em meio ao caos daquelas horas sombrias, e então não havia corpos e sim postas de carne sangrenta, sangrando, fedendo um miasma mefítico, acre, ocre, ocre, ácido, que atiçou a fome daqueles que ainda viviam, pior que tudo, e o orador continuava com sua ladainha interminável, escutai, filhos de Adão, dizia, atentai ó homens, que o dia já é chegado e a hora já é vinda, dizia, mas ninguém o ouvia, ninguém acreditava mais em seu discurso, e suas palavras caiam mortas ao chão, pois a ira do povo caia sobre ele, e o orador sentiu o ódio queimando no coração do povo, e sentiu as mãos ossudas que o agarravam e o derrubavam, e deixou-se linchar piedosamente, e os perdoou, quando o orador foi finalmente silenciado, súbito, calou-se a música que jorrava do alto das torres, e emudeceram aqueles que blasfemavam contra ti, e um silêncio veio sobre aquelas pobres almas, e nada se ouviu e era como se o próprio tempo houvesse parado, e lá no alto, no céu, algo aconteceu, e foi como a explosão de uma estrela, uma supernova, um clarão de luz pura, branca, que preencheu todo o espaço em uma fração de segundos, e o povo, aqueles que ainda restavam, os sobreviventes, olhavam temerosos, amedrontados, expectantes, para aquele céu que não era mais céu, vermelho, preto, vermelho, vermelho, e daquele novo silêncio nasceu um ruído ritmado, um farfalhar constante, que crescia, se aproximava, flutuava no ar e aqueles que olhavam podiam ver as asas enormes, as penas brancas como neve, daqueles que desciam do céu que não era mais céu, cada vez mais próximos, e houve uma agitação entre o povo sobrevivente, um murmúrio excitado, balbuciante, que saia das bocas famintas, vorazes, vociferantes, de vozes que assentiam e concordavam e compreendiam o que devia ser feito, e os mais ágeis já escalavam as torres cinza-cimento, e os outros já escavavam o concreto rachado pelo calor do meio dia, e houve olhares cobiçosos, e houve sorrisos maliciosos, quando o primeiro dos seres alados caiu, abatido pela chuva de pedras lançadas pelos filhos de Adão, e com o primeiro caiu o segundo e o terceiro e vários outros também caíram numa nuvem de penas flutuantes, e os demais fugiram como pombos assustados, e sumiram dentro das trevas daquela noite que jamais teria fim, e sobre a superfície da terra devastada houve fogueiras acesas e espetos improvisados com vigas de construção, e junto com a fumaça que subia aos céus, também subia o cheiro adocicado de carne chamuscada, e durante muito tempo só se ouviu o ruído de maxilares trabalhando, de dentes mastigando, de ossos triturados, e a fome dos últimos homens foi finalmente saciada.
 

 

 

 

 

12.07.2005