Alvaro Costa e Silva
O estilo na crônica
05 de Março de 2005
Já virou tradição sair por aí dizendo
que brasileiro é bom de crônica. Entre as tantas explicações para
nosso talento em relatar, em prosa digestiva, os tempos e as modas,
tem aquela de Ivan Lessa (que é, acima de tudo, um cronista de
humor): é porque trabalhamos bem com poucas armas, temos fôlego
literário curto. E não há demérito nisso: basta citar os craques na
arte de ser pessoal e charmoso: Rubem Braga (sempre posto em
primeiro lugar), Nelson Rodrigues, Paulo Mendes Campos, Fernando
Sabino, Antonio Maria, Sérgio Porto, Carlinhos Oliveira, passando
pelos poetas Drummond, Bandeira e Vinicius, até chegarmos aos que
mantém a chama acesa, Verissimo, João Ubaldo e Cony. E as mulheres,
como ficam?
Muito bem na parada. Formam um time de
elite, cuja linha de ataque é Cecília Mereiles, Rachel de Queiroz e
Clarice Lispector. Há as injustamente esquecidas Eneida, Elsie Lessa
e Maluh de Ouro Preto. Nos anos 30, um nome como Madame Chrysanthème
(influência do romance homônimo do escritor francês Pierre Loti)
escondia a escritora Cecília Bandeira de Melo Rebelo. Hoje, Heloisa
Seixas assina os Contos mínimos da última página da revista Domingo.
O curioso é que, se os homens, quase
sem exceção, começaram imitando Rubem Braga, a relação das mulheres
com o Sabiá da Crônica era outra: às vezes ele atuava como
conselheiro, dando dicas da própria atividade de cronista; outras,
mais freqüentes, como personagem. Este é o caso da crônica saborosa
de Raquel de Queiroz, “Rubem Braga explicava Portugal...”, reunida
na coletânea Falso mar, falso mundo (ARX), em que ele, a sua maneira
casmurra, justificava o título e ainda ensinava à linda rapariga que
não lhe dava bola, que é impossível recitar Os lusíadas ao ritmo do
atual falar português, pois Camões metrificou o poema ao ritmo do
falar de então, que veio a ser o nosso, brasileiro e, sobretudo,
carioca.
Raquel de Queiroz é a mais longeva das
cronistas – ao todo, foram 77 anos de janela em inúmeros periódicos
(O Ceará, Última Hora, O Estado de S. Paulo, O Cruzeiro). As
crônicas da romancista de O quinze, vistas em conjunto, denunciam um
espaço experimental: são perfis de tipos regionais e mesmo contos de
estrutura perfeita, além de diálogos abertos com o leitor. “Em
todas, a romancista e a cronista, a escritora e a jornalista, se dão
as mãos de forma surpreendentemente harmoniosa”, escreve Heloisa
Buarque de Hollanda no prefácio das Crônicas Reunidas (Global).
Moça da alta sociedade, colecionadora
de arte, Maria Luísa (Maluh) de Ouro Preto nasceu no Rio em 1922 e
deixou apenas dois livros, Crônicas de Paris e Siri na noite sem
lua. Neste, está a “História triste de um cachorro”, em que Rubem
Braga, outra vez, aparece como personagem: “Que soubéssemos, o
cachorro não tinha nome, e aparentemente não tinha dono, pois uma
manhã cedinho, encontrando Rubem Braga na Praia dos Ossos,
acompanhou-o até minha casa na Praia do Canto. (...) Evidentemente
era um cachorrinho que gostava de cronistas, pois além de ter
seguido Rubem Braga até minha casa, quando apareci para o café da
manhã ele se levantou e, encostando a cara no vidro da janela,
começou a ganir insistentemente, com o jeito mais implorativo desse
mundo”.
Ao iniciar em 1967 sua colaboração de
todos os sábados no Jornal do Brasil, a qual se estenderia por sete
anos e que está reunida nos livros A descoberta do mundo e
Aprendendo a viver, ambos da Rocco, Clarice Lispector – que, como a
maioria de seus pares, aceitou a tarefa porque precisava de dinheiro
– conversou com Rubem Braga, pois temia ser muito pessoal nos
textos. Ouviu dele que, em crônica, não havia como evitar isso. Ela,
sabiamente, aproveitou o espaço para fazer quase um diário íntimo,
falando dos filhos, da casa, das empregadas, do Rio, do seu passado,
dos lugares por onde andou e andava, dos amigos, dos bichos, de arte
em geral, respondendo (às vezes de forma desaforada) aos leitores
que lhe mandavam cartas. Na busca eterna para arrumar assunto,
resolveu inserir trechos do romance que produzia na época, Água
viva, agradando em cheio. E, numa atitude bem Clarice, cunhou uma
frase maravilhosa que punha em dúvida tudo o que estava fazendo:
“Vamos falar a verdade: isto aqui não é crônica coisa nenhuma. Isto
é apenas”.
Elsie Lessa até citou Rubem Braga em
crônica, mas o encontro dos dois é mais insólito. Em 1932, encantado
com a beleza da moça com quem cruzara no Viaduto do Chá, em São
Paulo (“olhos quase verdes, vestido claro e andar elástico”), Rubem,
também jovem à época, resolveu segui-la. Mas a perdeu de vista, e só
voltaram a se encontrar anos depois, no Rio, ambos já cronistas que
liam um ao outro com prazer. Elsie escreveu no Globo (no início todo
dia, depois semanal e quizenalmente) de 1952 até sua morte em 2000.
Ela é grande e precisa ser com urgência redescoberta, até porque só
uma parte mínima de sua obra saiu em livros (A dama da noite, Ponte
Rio-Londres, Crônicas de amor e desamor, todos esgotados). Ah, Elsie
era mãe de Ivan Lessa e alimentou toda a vida o sonho de ser uma
pastora de Ataulfo Alves.
Autora da História do carnaval
carioca, livro de 1958 que ganhou uma versão atualizada por Haroldo
Costa, a paraense Eneida Costa de Moraes era uma boêmia de estirpe e
deixou diversos livros que infelizmente estão fora de catálogo
(Terra verde, Cão da madrugada, Aruanda, Banho de cheiro), fruto de
sua intensa atuação na imprensa. Sua crônica tinha uma
característica: o estilo epistolar. Eneida teve uma face de
militante política da qual pouco se fala: filiou-se ao Partido
Comunista Brasileiro em 1932 e esteve presa durante o Estado Novo de
Getúlio Vargas, sendo citada nas Memórias do cárcere, de Graciliano
Ramos.
A poeta Cecília Meirelles também nos
legou uma ampla obra em prosa, da qual a editora Nova Fronteira
preparou seis volumes. Três deles são dedicados às Crônicas de
viagem, um ponto alto pelo que apresentam de sensibilidade e
inteligência, ao percorrer países tão díspares como Portugal,
Estados Unidos, Itália, França, Bélgica, Holanda, Israel, Grécia.
Com a palavra o crítico José Lino Grünewald: “A leitura desta prosa,
muitas vezes aparentemente despretensiosa, representa alentos para o
espírito, uma acréscimo de vivência aberta ou sutilmente
transmitidas e onde navega o leitor à vontade no que há de
escorreito e espontâneo num estilo. O estilo e a mulher. É Cecília”.
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