Antonio Júnior
Carta a um viajante sem porto de
abrigo nem cais de chegada:
por Rui Lopo (*)
1.
Porque partes? Para regressar a onde nostalgia te não prende ou para
demandar a onde saudade te impele? A esse lugar já fora da terra e
do céu, a esse lugar de onde afinal já sempre escreves, o país das
metáforas soltas e das sempre vivas imagens sagradas que toda a tua
poesia procura, vislumbra e revela. Aí onde somos mais autênticos e
reais, no estado anterior a todos os estados e condições, no vale
fértil dos ribeiros que de água viva alagam o mundo, de frescura o
plaino e de ardor os corações desertos...
2.
Encontrei-te neste lugar, Utopia já chamado por um cartógrafo santo
e Atlântida também acusado por mareantes de outras eras. Outros e
insuspeitos nomes também já lhe ouvi como página-em-branco e pele
macia. Nunca daqui te vi sair. Lembro bem quando em silêncio te
quedaste e na branca parede inventaste os mundos onde nos recriamos.
Inventaste as literaturas e as pinturas, os cinemas e as biografias,
da branca parede extraíste museus e narrativas, florestas nunca
plantadas e searas maduras nunca colhidas. Ali te contemplo à
tardinha recolhido e absorto em devaneio. Da branca parede, à janela
de todas as coisas, eclodem gritos e risos, lágrimas e abraços.
Desfilam assim épocas e continentes, países e desencontros sem que a
branca parede branca deixe de ser.
3.
Estes textos são uma malha solta de uma tapeçaria imensa. O que
estão os poetas fazendo quando poesia não estão a escrever? O que é
a poesia que se não escreve e apenas vive? O poeta não pode apenas
escrever versos. O poeta tem de ser poeta. O poeta tentando
subsistir e dando-nos conta disso, o poeta-ser humano crivado de
dores e inquietas esperanças, alternando intimidade e comentário
político, o poeta correspondente de guerra e viandante à solta por
entre ventanias e palavras, entre o jornalismo e a tertúlia,
cozinheiro desprevenido, turista acidental ou desencontrado de
expectativas e pressupostos, espectador de geografias e cinema. Como
num manuscrito encontrado numa garrafa ou num diário de bordo,
leio-te por vezes incisivo e decisivo, como se não houvesse ontem,
nem amanhã. Mas sei que o espírito é viajante e em cada mundo que
atraca deixa sementes. Crónicas, cartas, poemas, drama, novela. Para
quê os géneros se não para dar conta da policromia do real,
irredutível a qualquer olhar parcial? Desencanto e estranheza o
expressam. Também folia e ligeireza. Também palavras soltas. Também.
4.
Em casa de pasto te vejo tertuliar atento, junto aos comensais de
sempre, em fraterna troca de rituais oferendas, poemas e abraços,
pontes e barcas. Onde estás tu agora?
5.
Na crónica: A morte de um Amor não é menos Triste que a Morte , o
Antonio diz que não é um peregrino. O cronista paradoxalmente
confessou-se. Afirmou tal coisa com a mesma certeza com que diria
não ser poeta, não ser cronista, não ser jornalista, não ser
viajante, não ser Antonio. Todavia, é este o momento, é este o lugar
de eu lhe falar e de eu lhe dizer: Antonio, tu és um peregrino.
Antonio, tu és exactamente um peregrino. Antonio, tu não és senão um
peregrino.
Sintra, Maio de 2005
(*) Aprendiz de filosofia e Tradutor.
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