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Alcir Pécora


Um elogio do poder civilizador do Marquês de Pombal


Jornal da Tarde
5/6/99


Mecenato Pombalino e Poesia Neoclássica mostra como o
ideário do ministro português foi tomado como matéria
de retórica política pelos poetas árcades


 

Reelaborado a partir de tese de doutorado na área de Literatura Brasileira da USP, em 1997, o livro de Ivan Teixeira Mecenato Pombalino e Poesia NeoClássica (Edusp-Fapesp, 632 págs., R$ 65,00) investiga as relações de Sebastião José de Carvalho e Melo, o Marquês de Pombal, com a poesia de contemporâneos como Correia Garção, Reis Quita, Basílio da Gama e Silva Alvarenga entre outros, e também com poéticas do período, como as de Verney e de Francisco José Freire. No caso dos autores brasileiros, o trabalho demonstra que boa parte da crítica brasileira dos séculos 19 e 20, preocupada com a questão romântica da formação da nacionalidade, acentua alguns aspectos secundários de suas obras, interpretados como indianistas e nativistas, tendendo inversamente a apagar os vínculos essenciais com a Arcádia lusitana e com a política pombalina.

Ao buscar decifrar outra "formação", a do mecenato pombalino, Teixeira estuda a possível convergência entre o ideário do ministro e a Arte Poética, de Francisco Freire, que lhe é dedicada e propõe suas ações como assunto adequado à épica e à lírica dos novos tempos, com o que certamente concorda Basílio da Gama, cujo soneto de abertura d'O Uraguay faz manifesto louvor de Pombal. Ao analisar o soneto na perspectiva neoclássica de Freire, Teixeira nota que não deve ser lido apenas como bajulação pessoal, pois o encômio é forma importante da retórica política que estabelece as virtudes e princípios que balizam o modelo de excelência e justiça do governo. Assim, admite-se aqui como essencial uma função utilitária da poesia que a articula com a filosofia moral, disciplina que regula graus de conveniência das ações e idéias face à hierarquia político-social vigente. Nessa direção, Teixeira analisa a "Ode ao Conde da Cunha", dedicada ao irmão de Pombal, vice-rei do Brasil, numa versão publicada ainda em vida de Basílio, bastante diferente daquela que se conhecia até agora por meio da edição de Joaquim Norberto, de 1809, com duas estrofes a menos e outras adulterações. Relida em sua forma íntegra, torna-se patente tanto o interesse básico da ode em aplicar ao Conde os lugares do bem e do justo admitidos no interior da hierarquia monárquica, quanto a impropriedade de interpretá-la como fruto de uma eventual adesão "íntima" ou crença "sincera" do poeta, enquanto indivíduo psicológico, pois o que está em causa é sobretudo o domínio retórico capaz de persuadir de que os atos do Conde são um caso efetivo do modelo aceito de bom governo.

Da mesma maneira, a presença do pombalismo na poesia portuguesa árcade não deve ser lida como adesão psicológica, mas como efeito de um discurso que postula como função básica, inalienável de seu deleite, produzir regulamentação decorosa entre as pessoas e o poder. Em particular, ao examinar as odes pindáricas de Cruz e Silva, Teixeira mostra que "Pombal" é, antes de mais nada, matéria que se dá na confluência do encômio com a épica, forma mista na qual o louvor das virtudes exemplares tem como tópicas a eternidade da poesia e da justiça, o elogio da paz e, sobretudo, a "nobreza da alma", que ressalta a capacidade pessoal de cumprimento da justiça e posse de virtudes cívicas e administrativas, em detrimento do nascimento aristocrático. Também as epístolas de Correia Garção seguem o mesmo estereótipo literário da matéria sugerida pela Arte Poética de Freire, assim como as éclogas de Reis Quita, que elogiam a restauração das artes e ciências levada a cabo pelo Marquês e empregam tópicas clássicas de argumento sublime (como exemplarmente a do "terremoto", aplicável à catástrofe de 1755 que destruiu Lisboa e marcou a ascensão política de Pombal) como elogio da ação civilizatória do Estado.

A existência contudo de um publicismo pombalino não pode ser corretamente indicada sem que se leve em conta a produção de poetas brasileiros, e, em primeiro lugar, a de Basílio. Examinando o "Epitalâmio da Exma. Sra. D. Maria Amália", dedicado ao casamento da filha de Pombal, Teixeira evidencia que a longa digressão que há nele, que quase esquece a noiva para se dedicar ao pai, mescla o gênero epidítico, relativo ao elogio de alguém, com o deliberativo, em que se discutem os negócios civis, tendo como desfecho uma forma votiva, na qual se faz pedido a Deus ou a autoridade. Tais aspectos são em parte diluídos pela posterior edição romântica do poema, iniciada por Januário Barbosa, no Parnaso Brasileiro, que adultera-o segundo padrões expressivos da oralização, pontuando-o com exclamações e reticências sentimentais, e por Varnhagen, no Florilégio da Poesia Brasileira, que constrói um novo texto ao fundir duas de suas estrofes a outro poema de Basílio.

Ainda mais do que o Epitalâmio, a epopéia O Uraguay, obra-prima de Basílio, sofre uma sistemática leitura romântica que a torna exemplo de poesia de "fuga para a natureza", fundada na idealização da paisagem e na caracterização pitoresca do indígena. Lida, contudo, segundo as referências críticas que lhe são contemporâneas, constitui-se como alegoria encomiástica do Estado pombalino, na qual o lugar do índio vincula-se à função clássica de antagonista do poder civilizatório e participa de um grande painel universalista em louvor das ações reformadoras de Pombal. Ademais, Teixeira propõe que a estrutura paralela das ações indígenas na epopéia atende ao esforço de Basílio para encontrar um potencial maravilhoso em substituição àquele disponível tradicionalmente na "máquina" dos deuses greco-romanos, condenada pelas poéticas do período.

Paralelamente à construção deste novo modelo interpretativo, Teixeira historiza alguns marcos da apropriação romântica d'O Uraguay, a começar pela pouca apreciação do primeiro canto, dominado pela figura de Pombal, e pela crítica de inverossímil ao episódio do terceiro, em que a feiticeira Tanajura faz o ministro surgir em visão à índia Lyndóia. Há também deformações editoriais, como a de Santiago Nunes Ribeiro, na Biblioteca Brasílica, que exclui do poema tanto o soneto da dedicatória quanto os dois finais de Seixas Brandão e Alvarenga Peixoto, todos pombalinos, substituindo-os por uma introdução contra o materialismo do 18 e um outro soneto de Basílio de tema americano, além de deslocar as notas, que reforçam o encômio, para o final do texto. Adulteração semelhante ocorre nas sucessivas edições da epopéia por Varnhagen, Paula Brito e Artur Montenegro, nas quais o esforço por aproximá-la do cânone romântico gera não apenas o deslocamento das notas, como o crescente aumento de enternecidos pontos de exclamação em sua composição. A apropriação romântica também opera a desqualificação do canto quinto, ocupado pela descrição do teto da Igreja de S. Miguel nas já vencidas missões jesuíticas, que representa, como mostra Teixeira, uma paródia do teto pintado por Andrea Pozzo para a Igreja do Gesù em Roma, passagem essencial ao antijesuitismo tópico no louvor do ministro. Não se trata, porém, de condenar tal leitura americana e nacionalista, iniciada, de resto, pelo português Garrett, que via na paisagem e no índio a matéria para uma literatura original do Brasil, mas de entender que o seu anacronismo forneceu uma dimensão interpretativa atuante na produção dos românticos - o que significa entender igualmente que esta leitura já não tem interesse senão como etapa cumprida da história da recepção do poema no Brasil. Ao fim deste belo caminho, Teixeira devolve-nos o poema com um viço que há muito perdera. Não sabemos que melhor coisa caiba à crítica.

Para não encerrar sem algum reparo, que a própria qualidade da investigação exige, apenas observaria que o texto repete demasiado a lição genérica de que o período pombalino identifica-se com os processos da Ilustração; e não basta reconhecer, como acaba tendo de fazê-lo Teixeira, que se trata de um entre os vários iluminismos, ou mesmo de um "iluminismo paradoxal". O caso é que a noção, no que tem de mais distintiva, vale dizer, democracia política, autonomia dos poderes, liberdade econômica, comunidade contratual, ciência experimental - disto tudo, Portugal nem passa perto, o que não significa que não se torne interessante, em seus parâmetros. No 18, aprofunda-se o enorme fosso aberto no século anterior entre os países ibéricos e o bloco dos países que aderem definitivamente à roda do capital. Por fim, confesso que não me agrada a prosa didatizante que adota o autor, talvez estrategicamente para contornar o potencial polêmico da investigação. O risco é que parte de sua grande originalidade, e mesmo ousadia, acabe passando despercebida em meio ao tom humilde do texto.


Alcir Pécora é professor de Literatura na Unicamp, autor de Teatro do Sacramento (Edusp)

 

 

John William Godward (British, 1861-1922), Belleza Pompeiana

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Luciano Maia