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Antônio Carlos Secchin




Aforismos


 

  • A poesia representa a fulguração da desordem, o mau caminho do bom-senso, o sangramento inestancável da linguagem, não prometendo nada além de rituais para deus nenhum.

  • A possibilidade de negociar com as palavras as frestas de perturbação e mudança de que elas e nós necessitamos para continuarmos vivos : a isso dá-se o nome de estilo.

  • A poesia não pretende ser espelho do caos, hipótese em que tudo, isto é, nada, seria poético.

  • Nossa liberdade passa não apenas pelas palavras em que nos reconhecemos, mas sobretudo pelas palavras com as quais aprendemos a nos transformar.

  • A poesia é igualmente um espaço de sombras, tentativa de perceber o escuro no escuro. Se a poesia é noturna, o poeta, para Emílio Moura, não deixa de ser um iluminado. Mesmo que, no seu caso, se possa dizer: um iluminado de sombras.

  • Há coisas que O rio de Cabral nem sabe se viu, mas de que se fez testemunha “por ouvir contar”; e o pior cego é o que não quer ouvir.

  • Atmosfera cheia de luz, espaço sempre diurno : Sertão é uma palavra cercada de sol por todos os lados.

  • Na paródia, numa relação algo incestuosa com a linguagem, o texto-matriz cintila sobre os escombros, pois, pretensamente aniquilado, transforma-se na grande força de legitimação do texto que o acusa.

  • Drummond carrega indelevelmente o peso e a frustração de seus mortos, pois herança não é apenas aquilo que recebemos, mas aquilo de que não conseguimos nos livrar.

  • A poesia de Cabral nunca desistiu de ser também a poesia do João.

  • Há poetas quase afônicos; de tanto espremerem para expressar alguma coisa, acabam exprimindo coisa alguma.

  • A antiordem foi moderna no modernismo; repeti-la ainda hoje, sob a capa da vanguarda, é iludir o leitor, ao dar-lhe o passado de presente.

  • Onde porém é hoje aceita a moeda do poeta? Uma resposta seria: no material barato da vida, nas grandes liquidações existenciais, nas pontas de estoque afetivo.

  • O poema como um objeto legível: sem adesão aos chavões melódicos do verso ou ao receituário fácil do emocionalismo prêt-à-pleurer.

  • Em Aboque/abaque destaca-se uma multifonia ébria a corroer a noção autoral – e estilo de bêbado não tem dono.

  • Como quase diz o ditado, promessas são dúvidas.

  • Em “Tecendo a manhã”, de João Cabral, há dois fios que se encontram, um de luz e um outro de sintaxe, no discurso de um poeta que constrói ao mesmo tempo a manhã e o texto.

  • Em Marília de Dirceu, a ovelha tem direito de balir e não é obrigada a se ajoelhar. A ovelha barroca reza, enquanto a neoclássica aproveita para comer a paisagem.

  • A poesia é diáfana, o poema é carnal.

  • O grande artista relativiza os dogmas do estilo em que se inscreve; cabe aos menores acreditar demais em tudo aquilo.

  • Na obra de Cruz e Sousa, o asilo no espírito foi incapaz de promover o exílio do corpo.

  • Cabral desbasta a superfície textual, por natureza impura, não para restituir-lhe a superfície sem mácula, mas, ao contrário, para limpá-la da limpeza excessiva com que muitos cultores da “poesia pura” tentaram esterilizá-la.

  • O prosaico não é o oposto do poético, e sim do poemático, ou seja, do conjunto de convenções retóricas sobre as quais se estabeleceu o consenso de como um poema deva ser.

  • No Romantismo, talvez a biografia de um poeta se componha da soma de seus versos e da multiplicação de seus sonhos.

  • Ao poeta romântico interessa mais enunciar que deseja do que desejar o que enuncia.

  • Pouco importa que o velho poeta já houvesse publicado o melhor de sua obra: frente à poesia, toda morte é prematura.

  • Discurso conseqüente é o que consegue criar um avesso não-simétrico. Então, o contrário de alto passa a ser amarelo, e o sinônimo de escada passa a ser helicóptero.

  • O antinormativo é o imprevisível com hora marcada.

  • Como traduzir no mundo verbal o mundo plástico-visual? O risco é que muitos poetas acabem mudos de tanto ver.

  • Negar o grandioso é insuficiente para impedir seu enviesado retorno através da monumentalização do mínimo.

  • Ser crítico do contemporâneo não implica o endosso da ordem que o antecedeu.

  • No que toca à circulação da poesia, as noites de autógrafo se transformam em rituais simultâneos de batismo e óbito de um livro, que, fora dali, não será mais visto em lugar nenhum.

  • Se eu já soubesse o que o poema diria, não precisaria escrevê-lo. Escrevo para desaprender o que eu achava que sabia sobre aquilo que me vai sendo ensinado enquanto escrevo.

  • Contrariando o axioma do velho São Tomé, cabe à arte ver para descrer, isto é, recusar os esquemas confortavelmente explicativos da realidade e injetar o vírus da desconfiança em meio a toda unanimidade eufórica.