Miguel Sanches Neto
Autobiografia de Aleijadinho
(crônica turística)
1.
Somente aquilo que dispensa
os adornos do erudito,
livre de toda a ciência,
resistirá à noite do olvido.
Não precisar de referências,
de sábias notas analíticas,
é ser para todo o sempre
como a límpida água viva.
O que demanda um tratado
para ser apenas percebido
só pode estar equivocado.
Tem que ficar tão claro
o sentido, e tão vivo,
que não possa ser ignorado.
2.
Monótonos, dizem os guias -
citando detalhes colhidos
na já imensa bibliografia
sobre a obra de Aleijadinho -
que a luta dos Inconfidentes
está cifrada nos passos
de um Jesus Cristo/Tiradentes
a caminho do calvário.
E são tantas as simbologias
(as roupas lusas dos soldados,
os gestos secretos da maçonaria,
o sangue no pescoço do crucificado)
que cansa esta verborragia
sobre um Aleijadinho didático.
3.
Não vim ver a história pátria.
Há muito já saí da escola,
apesar de tantas notas baixas.
E talvez Tiradentes nem me comova.
Não quero saber o que simbolizam
os doze enferrujados profetas,
tanto faz se olham ou não para cima
ou se representam certos poetas.
Não quero a diluição caricata
de guias que falam no ritmo
arranhado de velhas máquinas.
Desejo todo o drama íntimo
desta história putrefata
do humaníssimo Aleijadinho.
4.
Isso tudo é um grande absurdo,
reclama o professor de história,
PhD em documentos defuntos,
fiel ao que aprendeu na escola.
Foi Manuel Antônio Lisboa
nosso grande nacionalista
ao se rebelar contra a Coroa
através de um olhar realista.
Quem busco é outro, o pré-cadáver,
o homem morto que adia a morte
através do exercício da arte.
Não me bastam informações escolares,
o antagonismo província/metrópole,
quero enxergar a podridão da carne.
5.
Nas variações do corpo de Cristo,
narradas nas capelas de Congonhas,
ele conseguiu deixar inscrito
a corrosão de sua própria pessoa.
Fez das esculturas suas vísceras,
retratando nos estágios do Calvário
a sua lenta viagem à carniça
- cada estação mais deformado.
Cristo com mãos e pés cravejados
é a imagem perfeita do escultor
que teve os membros necrosados.
Neste Cristo, ele cifra sua sina,
pois ao expressar a divina dor
escreve uma feroz autobiografia.
6.
Não, não são os três anjos
a marca registrada do que esculpe,
mas a deformação das mãos,
a contração dos músculos,
Esta maneira tão humana
de ver Cristo como corpo,
de senti-lo nas entranhas
- imagem de seu desconforto.
O artista não foge de si.
Sofrendo a podridão da lepra
só poderia ver Cristo assim:
com contrações, fisiologicamente,
numa dor que, de tão concreta,
talvez nem Cristo a agüente.
7.
É o drama de Aleijadinho
que está em cada músculo exposto,
em cada esgar de Cristo,
nas deformações do rosto.
Tudo que não seja isso
não me comove, não me interessa,
é matéria para os eruditos,
é uma ciência supérflua.
Acompanhemos nestes passos
para o calvário congonhense
as variações de um auto-retrato:
filme feito de madeira que pulsa,
encenação da terrível doença,
relato de uma viagem pútrida.
8.
Um americano que nada sabe
de nossa história pátria,
em êxtase diante das imagens,
orvalha os olhos de lágrima.
Sentiu a força destas esculturas
com um apelo tão fisiológico
que é seu corpo que se tortura
num novo confronto órfico.
Cristo, sozinho com suas chagas,
percorre, como nós todos,
a rápida via crucis do corpo.
Reencontrar esta significação clara
que as informações turvaram
e incorporá-la ao nosso estofo.
9.
Não venham tentar me convencer
de que Aleijadinho é barroco.
Ele exerceu o ofício de morrer,
poeta do trabalho anatômico.
Enquanto existir o bicho humano
e seu maquinismo de pântano,
sua obra continuará significando
para além de escolas e quejandos.
São esculturas que dispensam
a intermediação do especialista
e sobrevivem ao grande silêncio,
ao barroco, às suas características.
Elas se projetam para fora do tempo
e são do tempo perfeita divisa.
10.
Para além das encomendas sacras,
das exigências do estilo coletivo
e dos caprichos de quem paga,
há a alma podre de Aleijadinho,
Igual aos pontos de ferrugem
que a pedra sabão lepram
não permitindo que fiquem imunes
nem as estátuas dos profetas.
E estarão sempre assinadas,
as suas peças, com a peçonhenta
maneira compungida de olhar.
A vida lhe foi degenerescência
e ele a dissecou em Cristo, cadáver
de mais que humaníssima têmpera.
11.
Na pia pomposa da sacristia
da igreja de São Francisco,
Cristo é apenas metonímia,
fragmentos em um crucifixo.
Um coração inchado em chagas
e as mãos com os furos feios
de quem foi pregado ao madeiro.
Cristo é apenas isso, mais nada.
Uma personificação das feridas,
totalmente prontas para o podre,
que na carne do escultor se aviva.
Cristo exposto como num açougue
fibras prestes a serem corrompidas,
metáfora do escultor que sofre.
12.
Nos anjos de redondos rostos,
membros e corpos perfeitos,
estava a oposição aos rotos,
idealizações do perdido tempo,
Mesmo nestas figuras se instala
a brusca brevidade de tudo,
antecipação dos males da carne,
morte como iminente futuro.
Um dos anjos no alto da pia
empunha pequena ampulheta
e o outro a terrível caveira.
A imagem da passageira beleza
se vê convertida em fantasmagoria.
A vida com a morte se enfeita.
13.
Nada quero saber de sutilezas,
de sábias dissertações acadêmicas
sobre a importância do balofo,
a que chamam de estilo barroco.
Deixo isso para vossas altezas.
minhas maneiras são estrangeiras,
nada percebo de vossa história
que nos livros e anais se estoca.
Em Ouro Preto olhei nos olhos
daquela que sempre me corrói,
me pondo nos lábios apenas ais.
Digam o que disserem os manuais,
é assim que percebo o barroco:
antecipação de um eu morto.
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