Mais de 3.000 poetas e críticos de lusofonia!

 

 

 

 

 

Astrid Cabral


Discurso de posse no P.E.N Clube do Brasil

(Parte V)

 

Acessando o arquivo pessoal de Afonso, dei com inúmeras pastas que atestam a calorosa recepção à poesia dele, em Goiás, Rio de Janeiro e outros pontos do Brasil. Lá estão aplausos não só dos companheiros de geração (Darcy Damasceno, João Cabral, Afonso Ávila, Paulo Mendes Campos, Alberto da Costa e Silva, Domingos Carvalho da Silva ....) como também de poetas mais velhos (em especial Cassiano Ricardo e Joaquim Cardoso) e mais jovens (Reynaldo Valinho Alvarez, Fernando Py, Gilberto Mendonça Telles, Miguel Jorge, Álvaro Mendes e Álvaro Alves de Farias...) Além dos jornalistas que noticiaram com entusiasmo o surgimento de seus livros, críticos da maior importância nacional se pronunciaram a respeito: os Sérgios Milliet e Buarque de Holanda,Wilson Martins, Fausto Cunha, Fábio Lucas, Fritz Texeira Salles, Gastão de Holanda, os Antônios Carlos Secchin e Villaça, Hildeberto Barbosa Filho entre outros. A área acadêmica também se manifestou positivamente com alentados estudos sobre a poesia do Afonso. Destaco os trabalhos do professor Oswaldino Marques, os de Darcy Denófrio França, que rastreia a religiosidade do autor através de toda a obra, o de Helena Parente Cunha sobre a problemática do desejo, ao saudá-lo por ocasião de sua posse no Pen Clube, várias teses de mestrado e doutorado, a de Zaíra Turchi sobre Rio das Almas, Vânia Majadas, Maurício Xavier e Moema Olival para citar algumas.

Cerca de uma centena de intelectuais veio a público para louvar a obra do poeta goiano. Outros se expressaram em cartas e ofertas de livros com dedicatórias repletas de apreço. Extremamente reservado e modesto, contrário a qualquer manobra política, nem por isso deixou de colher o merecido respeito de todos, fruto exclusivo da qualidade de sua poesia.

Diante deste sucinto painel de informações objetivas, nada posso acrescentar de valioso. Qualquer comentário de minha parte parece fadado a suspeição. Arriscarei no entanto algumas observações.

É consensual o reconhecimento da rara competência técnica com que Afonso Félix elaborou o verso. No desenvolvimento de sua obra, evidencia-se o imenso repertório de formas clássicas e populares, bem como o emprego do verso livre modernista, todos contribuindo para um conjunto polifônico de grande riqueza. Essas formas por vezes aparecem isoladas, reforçando a unidade de um livro. Cito como exemplo Íntima parábola, As engrenagens do belo e Sonetos aos pés de Deus, todos nesta mencionada forma, porém com sensíveis variações, ora à moda de Shakespeare, ora à de Petrarca, ora em alexandrinos, ora em decassílabos, e até com o arremate de coroa. Já O amoroso e a terra, se apresenta todo vazado em estruturas populares, romances de redondilhas e a-be-cês. À beira do teu corpo, escrito sob o impacto da dor, elegeu o verso livre. Nos demais livros, prevalece a fatura variada. Neles convivem sextinas, quartetos, tercetos, dísticos e oitavas, romances, baladas, toadas, a ligeira, além de formas soltas, imprevisíveis. Vê-se pelo esmero que rege essas composições, a disciplina a que o poeta submetia os ímpetos criadores. Afonso, tal como seus contemporâneos de 45, deu continuidade às tendências modernistas de 22 e sobretudo de 30, enveredando, nas palavras de Tristão de Athayde "mais pelos valores eternos que pelos modernos" (como diria Drummond, cansei-me de ser moderno, agora serei eterno). Vinculava-se portanto aos postulados tradicionais de Mário de Andrade e não aos transgressores de Oswald. Vale lembrar que a Europa pós-guerra e o Brasil pós-ditadura experimentavam uma época de distensão, propícia à reconstrução e não a rupturas radicais. Havia todo um clima para o retorno ao equilíbrio clássico.

Porém, o que a meu ver notabiliza a poesia de Afonso Félix é a coerência vital, oriunda de genuína necessidade interior. Inserido nas circunstâncias de seu tempo e espaço, nada o impede de buscar, aprofundar e definir sua auto-expressão única. A imensa variedade formal se acompanha de uma linguagem lírica finamente modulada. Podemos surpreendê-la em variadíssimos tons, apresentando-se: meditativa, elegíaca, irônica, oratória, intimista. Vai do registro coloquial ao solene. Parafraseia com savoir faire certos linguajares profissionais fossilizados, retirando deles excelentes resultados. São anúncios de jornal, escrituras cartoriais, rezas pias que são elevados à categoria poética.

Outra faceta importante da sua criação é a pluralidade temática que vai do regional ao universal, do físico ao metafísico, do erótico ao sagrado, percorrendo ampla gama de matizes, mas convergindo ao denominador comum de investigação sobre a existência humana. Há poemas que se detêm na expressão de estados anímicos roçando o onírico e o indizível e se espraiando por veredas subjetivas um tanto herméticas, outros que exploram diretamente a crua realidade imediata. Todos revelam aquela criatura flexível, aberta aos vôos do espírito, mas também amarrada ao chão, apta à luta de cada hora. Graças a essa personalidade voltada para o feijão e o sonho, atenta à visão da terra e à do céu, é que encontramos poemas narrativos, cheios de força dramática e conflitos reais, a coexistir com poemas de teor abstrato em que o poeta conversa com Deus, discorre sobre a problemática do belo, indaga dos mistérios que cercam o destino do homem e a sina de sua morte:

Uma/ luz / nos/ espera/ ou / nos/ espera/ o nada?
 

Se grande parte da obra de Afonso leva o selo da angústia, a angústia que os existencialistas vêem como inerente ao homem, o imenso desejo de transcendência parece pavimentar-lhe o caminho da fé. Já no poema Passagem das nuvens, que está em Do sonho e da esfinge, um livro de juventude, lê-se:

Incompleta é a vida, sei,
mas são tantas as águas
da eternidade que jorram!
Dai-me a beber, ó Deus
ó deuses. E se há deuses
não me abandonem.

 

Em seu derradeiro livro Sonetos aos pés de Deus, comparece, enfim, iluminado pela esperança da fé, colocando o coração na mão de Deus, na sua mão direita, como diria Antero de Quental, em total entrega amorosa ao Criador:

Por crer em ti a tuas mãos me entrego
e deixo que me guies como a um cego
levando-me ao que me hajas destinado

 

As ocasiões da vida carregam expectativas próprias, e esta parece talhada para externar a todos a gratidão por ser recebida nesta ilustre casa. O maior responsável por minha presença aqui, neste momento solene, é o Professor Marcos Almir Madeira. Foi ele quem venceu o meu lado selvagem com poderosos argumentos e me convenceu a aceitar a indicação para concorrer ao Pen Clube, graças ao indeclinável convite de preencher a vaga deixada por Afonso. Em que pese minha exígua vocação social, prometo me esforçar por corresponder às regras do bom convívio desta entidade, tão bem administrada e conceituada. Estou disposta a colaborar, na pequena medida de minha capacidade, com as tarefas que me forem solicitadas.

Em seguida, aproveito para agradecer aos amigos e numerosos colegas que, numa deferência generosa, decidiram votar em mim. Na realidade, desde a eleição do Afonso em 1984, subtraindo os nove anos que morei fora do Rio, freqüento com razoável assiduidade este recinto acolhedor, regido por política cultural abrangente e saudável e ponto de encontro de intelectuais de alta estirpe. Assim sendo, esta solenidade não passa da legitimação de um estado pré-existente, ou seja, da transformação da sócia consorte em sócia titular. É com imensa tristeza que abandono a categoria anterior, onde me sentia plenamente honrada como companheira do poeta, mas é com equivalente alegria que recebo o reconhecimento de meus pares. Além da perspectiva de prosseguir na convivência com escritores, tão necessária a mim, sobretudo em fase de dolorosa solidão, privada do convívio incentivador do Afonso, agrada-me bastante a idéia de ser escolhida por preencher os requisitos para membro da comunidade.

Eis que sempre me perseguiu a envergonhada sensação de não me haver entregue de corpo e alma aos apelos interiores da literatura. Se nunca duvidei da vocação e se em todas as possíveis encruzilhadas existenciais, prevaleceu sempre o projeto em torno das letras, me vi sempre adiando a rotina da disciplina criadora e duvidando do meu potencial. Acreditava inclusive que Deus me dera o dom, mas não o destino, tudo me parecendo adverso para fazê-lo desabrochar. É que, além dos múltiplos compromissos assumidos com a sobrevivência, a inquietação e a curiosidade por outros campos do conhecimento foram me atropelando e me desviando da devida fidelidade ao ofício de escrever. Daí ter chegado a considerar a literatura como uma paixão clandestina dentro da minha vida, algo muito forte, mas que devia permanecer escondido e marginalizado. Ser escritora foi, pois, durante longos anos, uma condição verdadeira mas subterrânea, esmagada sob as múltiplas e absorventes atividades de esposa e secretária, mãe de cinco filhos, professora, funcionária e dona de casa sem preconceitos com o trabalho manual, integrante de uma geração ainda afeita às prendas domésticas e devotada à família. Feitas essas considerações, é consagrador saber que o pouco que consegui realizar, de algum modo aflorou aos olhos da comunidade literária.

Em meio a tantos extravios e sabotagens da vida pródiga em armadilhas de acidentes, doenças, mudanças e lutas várias, contei sempre com o estímulo do Afonso para continuar e retomar os projetos interrompidos. Por isto nesta hora de agradecimentos, não posso silenciar o quanto devo a ele, que além de incansável solidariedade moral fez questão de financiar meu livro de estréia na poesia.

Ponto de Cruz contou também com o inestimável apoio da grande poeta e amiga Lélia Coelho Frota que, não só me ajudou na seleção dos poemas e na escolha da capa, como preparou um prefácio primoroso, cujos insights de extrema perspicácia esclarecem, até hoje, de maneira exemplar, a natureza do meu texto. Considero uma honra e comovedora prova de amizade o fato de ela ter aceito receber-me aqui, a despeito dos múltiplos encargos e trabalhos que desempenha na área cultural.

Aproveito também para agradecer à amiga e professora Helena Ferreira, as inumeráveis demonstrações de amizade, revisões , traduções e sobretudo a fé que depositou em minha criação desde os remotos tempos da Faculdade Nacional de Filosofia onde juntas cursamos letras neolatinas.

Ao encerrar, declaro, mais uma vez, a minha alegria por esta acolhida do PEN CLUBE. Afinal, encontro, para a solidão da atividade literária, o contraponto da comunhão junto a companheiros de vocação e destino.

 

 

 

Franz Xaver Winterhalter. Portrait of Mme. Rimsky-Korsakova. 1864.

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Foed Castro Chammas