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Astrid Cabral


Discurso de posse no P.E.N Clube do Brasil

(Parte III)
 

Sobre Visgo da terra escrevi: “Toda uma vivência regional se retrata sem qualquer pose exótica nestas reminiscências de infância e adolescência, (...) associando-se a outros textos de Astrid pela intenção de crispar a memória num presente revificado pela palavra. O pensamento se subjetiva na experiência úmida do Norte. A invasão do rio - “por toda parte o rio” – com seu elenco genesíaco e letal de barro, carapanãs, peixes, murucututus, aluviões, amplia o zoom sobre a realidade, “esse rever o real” e suas arqueologias, que é espinha dorsal da poesia astridiana. Tempo, indivíduo, permanência, tudo está contido num subjazer desse rio em que entramos sem que nunca seja o mesmo:

Comigo vai o rio rente rindo
roendo ruindo riando submim

 

Também neste livro, a autora borda com inexorabilidade o nosso comportamento onívoro – tal qual o das megalópoles – cúmplice de um consumismo predatório da fauna, da flora e do homem, e o risco final dos seus crivos só pode devolver-nos textos como Tartarugada, onde, após a bruta matança, o quelônio é servido em ritual dito civilizado:

E comíamos, granfinos canibais
- de garfo e faca –
em pratos de porcelana.

 

Outro texto é o do grande ente

“que se drogava com o ópio das papoulas
e guloso engolia finas lagartixas
mariposas tontas carapanãs vadios.
Bebia choro de chuva e suor de sereno.
Urinava poças que viravam espelho.

 

E é hoje dragão domado, antiga figura poderosa da natureza na retina aberta da infância, ainda não velada pela consciência do adulto culturalizado, contagiado pela deformação de um “progresso” descontrolado.

Em 1986 Astrid publica Lição de Alice, que se abre com uma epígrafe de Lewis Carroll, onde a protagonista se descobre numa lagoa de lágrimas derramadas quando tinha nove anos de idade: “Ah, bem que eu queria não ter chorado tanto, diz Alice, enquanto nadava na lagoa, procurando uma saída.”

Daqui destacaremos todo um repertório de poemas em que “a consciência do desastre de toda existência alia-se a um possível heroísmo humano,(...) , em que a poesia faz a “mediação entre resistência e condenação” como observou Antonio Paulo Graça.

Lição de Alice
No vale de lágrimas / a lição de Alice: / não se deixar afogar. / Nadar na preamar / da própria dor.//

 

E ainda

Ante-sala
Este o mundo / de mistérios/ refratários / a microscópios //
Este o mundo / de muralhas / inexpugnáveis / a máquinas.//
Aqui a noite / opaca e parca / de estrelas.//
Aqui os olhos / embrulhados em / dobras e sombras.//
Esta a ante-sala: / áspera espera / de outra era.//

 

Rês desgarrada, de 1994, abre-se com um vigoroso e belíssimo poema em que o desconcerto do mundo e nossa errância por ele são vertidos em uma linguagem de desejado apuro formal:

Pois em Chicago, amigos / sou rês desgarrada. / Agarra-me sim, danada / a nostalgia da ex-boiada. // Carga pesada esta saudade / dos pastos brasis / onde os buritis sambam / à carícia da brisa. // Perde-se meu ser rural / tão tropical nesta urbe / labirinto de pedra e vidro / sob o cilício do frio .// Oceanos de chão e tempo / cercam-me gélidos, cegos. // Neles, sem sossego navego / e nau sem rumo quase afundo. // - Vaca na balsa, rês desgarrada - //
 

Em Descoberta das Américas, a volta do coloquial, com a liberdade de dicções que caracteriza e enriquece a poesia de Astrid:

No Primeiro Mundo / a lírica descoberta: / o meu primeiro mundo / é o Terceiro Mundo.//
 

Da vivência prolongada dos Estados Unidos, tônica de Rês Desgarrada, o poema Sub Tegmine Fagi dá uma boa amostra do estranhamento sentido pela poeta nas terras do norte, bem como do seu olhar crítico sobre a civilização que observa:

Dizem que por aqui é Chicago / mas me sinto em plena Babilônia / à sombra da Sears Tower / essa Babel do século – outra / frustrada stairway to Heaven - . / Dizem que por aqui é Chicago / mas estou no cativeiro / distante da Sião onde deixei / o coração. Num salgueiro / do Lincoln Park a lira pendurei. / Ninguém entenderá minha língua / nem ouvirá as vicissitudes / e a miséria do meu povo. / Aos reis não importam mágoas / nem a sorte de seus súditos / Só os tributos.//
 

No entanto, o olhar que observa Cenas de rua registra também:

Gripe forte, a coriza / da moça negra / escorre. / A moça branca / estende-lhe / um lenço limpo.
 

Após a reunião de sua poesia em De déu em déu, 1998, Astrid publica no mesmo ano Intramuros, com prefácio de Fausto Cunha. O extraordinário crítico, de quem lamentamos não ter tido publicações mais freqüentes, aponta aqui para conteúdos essenciais da poesia de Astrid. Francis Ponge, diz Fausto, “quer ser o poeta do mundo real, do mundo das coisas e dos objetos, quer apreender e transportar, com os recursos da linguagem, a “realidade material” desse mundo de pedras, plantas, frutos e até do sabão e da ostra. Tira das amoras uma arte poética.” (...) Também “o mundo real permeia a obra de Astrid Cabral desde os contos de Alameda.(1963), acentua Fausto. À visão lírica, à contemplação da natureza, legítimas quanto sejam como fonte de poesia, ela prefere o olhar atento e minucioso para romper a casca da aparência sob a qual tudo se esconde, desentranhar das coisas e objetos, até mesmo dos seres, uma relação não meramente afetiva e sim de coexistência, sem temer o conflito”:

Desmorono o império doméstico
trono onde se acasalam as coisas
sacralizadas em hieráticos nichos.
 

O desfiar das coisas em Ciclo:

O ventre
O berço
O voador
O velocípede
A bicicleta
A moto
O automóvel
A maca
O caixão
O chão.

 

Na sua arqueologia do real, o mergulho no avesso das coisas:

Ovo estrelado
Do céu do prato
um sol me olha
com olho de ouro.

 

Este ano, 2003, Astrid publica Rasos d’água, dedicado a seu filho Giles, cuja presença e lembrança estão sempre conosco.

Lavei os olhos
em muitas lágrimas.
Agora vejo melhor.

 

Diz a epígrafe da própria autora, remetendo-nos uma vez mais à Lição de Alice.

As imagens de água predominam aqui: o livro é dividido em duas coleções de poemas: copo de mar e barquinhos de papel. Este último título derivado de epígrafe de Guimarães Rosa: “Todo oceano é navegável / a barquinhos de papel.” Já copo de mar tem epígrafe de Jorge de Lima: “Há sempre um copo de mar / para um homem navegar.” Em ambas as divisões, as imagens da água, de uma água limitada no caso de copo de mar, e de uma embarcação reduzida, no caso de barquinhos de papel no oceano. Ambas já dizem da extraordinária capacidade de navegação, de trânsito, de itinerância, que tem a poeta entre o pequeno e o amplo, entre o contido no objeto e o conceito intelectual. E até mesmo dos limites imprecisos entre ambos.

Reponta em muitos destes poemas o tom estóico da poesia astridiana:

O que se perde
“Só o que está perdido é nosso para sempre”

Mário Quintana

Sombra espessa/ onde se tropeça / ao meio-dia. / Cicatriz secreta / doendo na festa / sala vazia / O que se perde / - não se perde - / reverte / zero onipresente.//

Quem ?

Quem poderia dizer / por que atravessaste o rio / quando na margem de cá / havia frondes e sombras / flores em todo esplendor? Mãos e ramos te acenavam / e o canto de muitas gargantas / embalava teus ouvidos. / Que ousadia ou medo / te levou ao outro lado? / Sobraram botas sandálias / e a dor desse segredo / machucando feito dardo./ Sei, não tens mais voz / para qualquer resposta/
Ó deuses surdos-mudos / quem senão vós / nos revelaria tudo?


Coração couraçado

Tempestades em oceanos / ou em copos d’água / e não peço a Deus balsas/ barcaças
nem praias // Só um coração couraçado. // Desses que no lombo / das ondas vão sem tombos / o convés em festa. // Iluminado.//

 

Haveria nesta apresentação uma lacuna se eu não me referisse à religiosidade da poesia de Astrid, algumas e raras vezes claramente definida, diversa do tom metafísico de seu enunciado habitual.

Desde Ponto de Cruz, seu primeiro livro, em Pelas regiões do inferno, ela alude, ainda que acidamente, ao “consolo de uma praia / a te acenar da outra margem / a drágea da fé gratuita.//

Quinze anos depois, no poema Windy City II, de Rês Desgarrada, encontramos: Sopro, fôlego de Deus / varrendo o desvão do mundo.//

De Astrid, para dar prioridade à poesia, não foi possível comentar aqui suas relevantes atividades como crítica na imprensa, como administradora, como ativa participante da vida cultural da cidade.

Convido todos a recebê-la entre nós como uma das mais importantes escritoras atuantes nos séculos XX e XXI. A sua poesia, sem desviar-se da reflexão que incide sobre o desnudamento do espírito e leva ao autoconhecimento, reivindica uma condição mais digna para o homem original, fazendo cumprir em sua obra o destino da verdadeira criação.
 


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William Bouguereau (French, 1825-1905), João Batista

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Artur Eduardo Benevides