Mais de 3.000 poetas e críticos de lusofonia!

 

 

 

 

 

Astrid Cabral


Discurso de posse no P.E.N Clube do Brasil

(Parte IV)

Discurso de Astrid Cabral

Tentarei ser breve, como pede o bom senso. Discursos longos costumam se transformar em berceuses, e digo com Drummond: Se bocejardes, minha cabeça rolará por terra.

Ao alinhavar algumas palavras para o ato de posse no Pen Clube, fui tomada de perplexidade à lembrança de que escrever tem sido, muitíssimas vezes, minha estratégia de defesa a fim de me expressar a salvo do público, escapando ao tumulto emotivo e às mãos geladas. As ocasiões solenes sempre me deixam em pânico. Só, no impassível papel e na cúmplice solidão, consigo encontrar vocábulos para alicerçar idéias ou extravasar sentimentos.

Tangida pela timidez e pelo hábito de convívio com o silêncio, e por que não confessar, pela falta de vocação social que me rouba as palavras adequadas às circunstâncias formais, é que fui, a intervalos, pelos anos afora, elaborando conversas mudas no território neutro do papel. Ultimamente, por cúmulo de ironia, é em conseqüência dessas palavras sem voz, oriundas não da boca, mas da mão riscando resmas, que venho sendo chamada a me defrontar com o público para um diálogo real, lendo ou comentando poesia em voz alta. Sinto como se a estratégia inicial de afastamento tivesse sido inútil e a força dos acontecimentos impusesse a capitulação. Por outro lado, sempre adivinhei que o material, confiado ao papel em linguagem literária, comportava certa dose de estranheza suficiente para inviabilizá-lo no decorrer das relações e situações cotidianas. Devido à complexidade e os desvios da norma, passava a exigir uma atmosfera de atenção a fim de ser percebido e fruído. Portanto, o que deixei de dizer de viva voz, furtando-me a lances de improviso, só poderia ser dito de outra forma, já que sempre estive voltada para esse tipo de comunicação oblíqua e em câmara lenta, bem avessa à instantaneidade pragmática do cotidiano, mas que com o passar do tempo começou a apresentar um certo retorno da parte de pequenos grupos de leitores.

Considero confortador verificar que produção literária, resultante de individualista entrega ao prazer, consegue ultrapassar a barreira do isolamento, alcançando significado aos olhos de outros. Eu, que volta e meia me questiono a presunção de malbaratar horas em criações de minha autoria quando me falta a disponibilidade para esgotar a leitura das obras-primas universais; eu que me acuso da covardia de não militar no campo social, envolvendo-me em ações pragmáticas e urgentes em prol do próximo, neste Brasil de tantas carências, interpreto no caloroso acolhimento do PEN CLUBE um sinal de aprovação ao que venho fazendo e chego a me sentir, em parte, redimida e apaziguada. Posso acatar, afinal, sem a incômoda sensação de culpa, a existência de outro gênero de necessidade, bem mais sutil e menos óbvia e pensar livremente na fidelidade de cada um para com as exigências de sua natureza íntima. A verdade é que a literatura, mesmo a que não garante sequer a sobrevivência de seus produtores, transborda de significações sociais e espirituais e traz em potencial o sentimento de comunhão com a humanidade inteira.

Afonso, em seu poema Auto-retrato, nos oferece a imagem do comportamento do poeta, em sua contraditória solidão/solidária:

A maneira de andar
como a fugir dos homens
-- e tê-los contra o peito.
O pensamento a atirar pedras
contra as vidraças
que guardam os produtores frios
de injustiças.

 

Há sempre na literatura uma dimensão social, um testemunho de vida, uma reflexão sobre a condição humana, um esforço de reconstrução e ordenação do caos por intermédio da estrutura estética, enfim, um passo em direção à utopia de um mundo melhor. Ao constituir antes de tudo, atividade com fim em si mesma, e ao se desenvolver em clima de liberdade e gratuidade lúdica , a poesia se emancipa de valores pecuniários e se ergue como reduto contra a desvitalização do homem. Em meio à rígida impessoalidade dos sistemas que movem as infinitas máquinas do espaço urbano contemporâneo, o poeta é aquele que afirma o pessoal. Ao explorar e expandir sua subjetividade única, contrapõe-se ao sufoco da massificação e à ditadura da maioria. Com a arma da palavra, luta contra a mortificação do ser humano, mortificação que reside na pré-morte da inconsciência face à barbárie, da automação geradora da paralisia, da anestesia que impera nas relações de convívio superficial.

Mais do que nunca, a poesia constitui, hoje em dia, escudo de resistência contra a desvalorização do homem, humilhado pelas pressões do consumo e iludido com a onipotência tecnológica. Ao tomar a vida como valor em si e não como meio de multiplicar riquezas materiais e poder político, a literatura e as artes em geral, fundam um território a resguardo de ogivas, mísseis e bombas de nêutrons, um espaço de liberdade e fantasia, refratário aos abusos econômicos e políticos da autoridade arbitrária.

Outra bênção da literatura é a sua capacidade de armazenar o tempo, conferindo certa durabilidade à existência humana, tão efêmera por natureza. Como nenhum freezer ela consegue congelar em formas de arte todo um acervo de idéias, sentimentos, histórias, filosofias. Pode-se até mesmo admitir a superação da morte biológica, quando um criador nos lega como herança, sua experiência de vida consubstanciada em estrutura de arte. Ainda que o poeta Horácio apontasse nossa extrema precariedade: Pulvis et umbra sumus, a voz dele preservada em poemas de extrema sabedoria e concisão, ressoa até hoje instaurando a vida invisível, conclamando todos a colher o dia.

Graças a esse gênero de vida, gerado pela palavra artística, continuo usufruindo de algum modo a presença de Afonso Félix de Sousa, cuja vaga no Pen Clube fui chamada a ocupar. Sei que à voz biológica, tantas vezes embargada e distorcida pela doença de Parkinson, sobrevive-lhe a inconfundível voz lírica. Goza ele agora daquela vida gloriosa, intermediária entre a terrena e a eterna e à que se refere Jorge Manrique nas Coplas que hizo por la muerte de su padre:

Aunque esta vida de onor
tanpoco no es eternal
ni verdadera
mas con todo es muy mejor
que la otra tenporal
perescedera

(sic The Oxford Book of Spanish Verse)
 

Assim, por causa da obra que nos legou, Afonso não se confina à provisória memória dos familiares e amigos.

Parece-me, portanto, caber aqui o depoimento pessoal. Conheci Afonso em dezembro de 1956, apresentado por sua prima, a cantora lírica Graciema Félix de Sousa, falecida também ano passado. Morávamos ambas na Glória, no Angelorum, pensionato de universitárias, gerido por irmãs franciscanas e sediado em casarão histórico, mandado construir por Dom João VI para residência de sua mãe, Dona Maria, a louca, e hoje desaparecido do mapa pela especulação imobiliária.

Conheci simultaneamente Afonso e sua poesia. Impossível apartá-los. Nos idos de 56 ele já publicara O Túnel, Do sonho e da esfinge, O amoroso e a terra e Memorial do errante, livros que foi me presenteando pouco a pouco para meu deleite e encantamento. Nesses tempos ele também traduzia o Romancero Gitano de Lorca e Paroles de Jacques Prévert, e eu, estudante de neolatinas acompanhava de perto o trabalho dele manuseando-lhe os textos.

Breve à nossa passagem
abrira-se alameda
com dois ermos caminhos
que no fim se encontravam
--onde de alma e mãos dadas
um só nos aclamamos.

 

A história de nosso encontro está em muitos poemas de Album do Rio. Um feliz acontecimento que redundou em união de mais de 45 anos e na bênção de cinco filhos.

Minha admiração por Afonso permaneceu inabalada ao longo da vida. Era um companheiro atencioso e solidário. Sua capacidade de amor e doação excedia a bitola estreita do patriarcalismo. Intelectual, nunca se encastelou no escritório, entrincheirado atrás dos livros. Sempre esteve atento ao que se passava no resto da casa, colaborando no que podia assumir, valorizando e agradecendo o serviço dos outros. Personalidade de raro equilíbrio, conciliava o feijão e o sonho. Nosso amigo Bernardo Elis sustentava a tese de que poeta não dava para marido, mas eu reivindicava para o Afonso a categoria de exceção à regra.

Economista, desempenhou as funções que lhe couberam no Banco do Brasil com reconhecida competência. Conquistou bolsa de altos estudos na Sorbonne e missão no exterior para incrementar a exportação brasileira.

Poeta, produziu uma das obras mais significativas de sua geração. Deixou 12 livros de poemas, recentemente reunidos em co-edição da Biblioteca Nacional com a Record, sob o título Chamados e escolhidos; duas peças em versos: Auto de Belém e Rio das Almas; um livro de crônicas, Do ouro ao urânio, retratando os anos pioneiros de Brasília, onde vivemos de 62 a 70; traduções de romances ingleses e franceses e livros de poesia de Lorca, Villon, John Donne, além de numerosos poemas de outros autores como Leopardi e Sylvia Plath. Há pouco descobri entre seus papéis um caderno com a tradução de 50 sonetos de Shakespeare. Organizou, além disso, textos de Hugo de Carvalho Ramos na coleção Nossos Clássicos da Editora Agir, e as Máximas e Mínimas do Barão de Itararé para a Record. Exigente com seus escritos, mais de uma vez surpreendi-o rasgando originais, logo ele que me aconselhava a não destruir e guardar poemas para um reexame e aperfeiçoamento posterior. Assim, foi-se embora a novela Lago das Rosas sobre sua adolescência nos primórdios de Goiânia. Assim foi-se também a peça Essa terra tem dono sobre os índios atroaris, pela qual obteve menção honrosa em concurso do SNT, tendo sido lida por atores profissionais em teatros do Rio e de São Paulo, sob a direção de Luis de Lima , que a partir de então se tornou um grande amigo nosso até sua recente morte.
 


Próxima página...
 

 

 

Herbert Draper (British, 1864-1920), A water baby

Início desta página

Hélio Pólvora