Aurelino Costa
O ser deficitário em Amónio de
Aurelino Costa
por Alexandre Teixeira Mendes
Segundo o Dicionário da Língua
Portuguesa da Porto Editora, o significado da palavra Amónio
reduz-se aos seguintes esquemas: a)- amónio, s.m., catião (NH4+) com
bastantes propriedades análogas às dos catiões alcalinos,
particularmente às do catião potássico (Deriv. Regr. De amoníaco.);
b)- amónio, adj, relativo ao deus egípcio Ámon (do gr. Ámmon, o
“deus ámon”+io)
Amónio é uma palavra que evoca sais
usados para adubos. Remete para a indústria dos fluorocarbonetos
usados na agricultura: a terra nutriente, o conceito de Mãe Terra ou
Gaia como era chamada pelos antigos gregos.
Amónio é um texto poético exorbitante
na referência a uma atmosfera subjectiva de enaltecimento e
revelação da humana conditio? Ou ainda o homem (seguindo as teses de
Arnold Gehlen) como “ser deficitário” como assunto deste livro? No
cerne do trágico da vida quotidiana põe em cena elementos
figurativos e romanescos (a detecção do drama “humano, demasiado
humano”)? A tragédia original do isolamento e da individuatio, o
fracasso?
Insistimos no que chamamos marcas
externas de poeticidade cujas características são as de uma
determinada combinatória linguística (de concisão verbal, por
exemplo) ante um texto descontínuo que focaliza as profundezas
sombrias do homem (que mais uma vez nos remete para o âmbito obscuro
da realidade, que a psicologia junguiana denomina a sombra). Aqui se
interpela a zona do esquecido ou recalcado – e não só o absurdo, a
mediocridade falaz do quotidiano, esse abismo subterrâneo, o
insondável, a vertigem. Daí um exemplo preciso: o simultaneísmo
narrativo-cinemático-associonista, através da sobreposição de
quadros e personagens (por assemblage ou montagem) que revelam o
carácter paradoxal da existência. Esta inscrição da paradoxalidade
remete para o fatum : o “sentimento trágico da vida” (que
experimenta o ser humano). Importa interrogar a ambiguidade ou, se
quisermos, o absurdo?
A vulnerabilidade, ou melhor, a
fragilidade humana ( o “homem precário”: a sua condicionalidade)? No
ponto de vista estrito existencialista, o homem não é um animal
essencializado, mas aquele ser a quem calha (acontece) o seu (o) ser
(Martin Heideggeer) .
Transpondo um género não-unitário de narração, vem à luz um registo
corrosivo e jocoso, que justifica e consolida um carácter onírico,
simbólico. É uma espécie de monólogo (repleto de miudezas e
minúcias) que reúne uma gama completa de situações, uma complexidade
de colóquios sobre uma ideia central: o reencontro do instável e do
instante.
Falamos de um texto com o seu humor
acre, contundente, sarcástico, que desvenda o âmago risível de
episódios e exibe o resíduo humano, a essência cruel da existência,
o grotesco e o absurdo. Um texto longe das formas convencionais que
nunca inibe a sua qualidade subversiva (ajuda a definir o nosso
perfil humano em 3 níveis): o malogro, a “néantisation”, a
fatalidade do ser.
Evitar-se-á, de início, a
re-consideração radical do humano, a sua irrepetibilidade, a sua
estranha tendência a um excesso de ser, a “ex-cedência”? Do “zoo
humano” – o “parque zoológico” na fórmula de Peter Sloterdijk que
nos faz volver ao homem comum, trivial, vil?
Sobressai o tom elegíaco ou o ímpeto
algo melancólico de descida aos infernos: um conceito e teorema
base)
Eis a interrogação satânica: Porque dás / resposta? // galgada a
martelo de pesadelos e / perturbações?... pensar a virtualidade e /
o suposto arde / alquimia de muitos feitos / nunca o homem // se
desgostou alternando sentimentos de / distrate. O sentido / é o
dobrável? / justeza remonta ao malogro/ uma náusea lavra
(Am, pág.11)
Amónio, longe de alguns impulsos
canónicos, interpela o ser humano que, como demonstrou Kierkegaard,
não se explica senão pelo absurdo, o desespero e o fracasso radical.
Referimo-nos a um texto algo alucinado que acusa e satiriza ou seja:
chega a proporcionar-nos aquele extremo da amargura virulenta de J.
Swift, que o absurdo instiga, e à luz da qual tudo se torna sério e
risível para a impiedade da sátira. Pressupomos um dis-correr
poético (haja em vista a prosificação) sobre o impacto do mundo
caótico e fragmentário – repleto de tensões e incoerências – onde se
amalgama o grotesco e o sublime por herança brandoniana do Húmus.
Uma escrita bem análoga à de uma collage numa pintura, onde se torna
explícito o método do Cut-up.
O povoamento é constituído por um
rodopio delirante de figuras: um corpus mysticum: as sobrinhas, as
tias, a Mamuda, o Presidente da junta, o Sr. José, o Jovem produtor
musical, o Daniel, o Puto, o Souza da casa de Manhufe, o Velho e a
Neta Felismina, o Jacques, o Stwart, o David irmão de Mariana por
tradição, o Simões padre, o Arnaldo, a Freira, o Jacinto Sacristão,
o Ambrósio, as Mulatas, os Jornaleiros, o Andarilho, etc, etc.
Personagens (intercambiáveis) e
silhuetas humanas (surpreendentes e bizarras) porque vemos nelas a
condição humana (partindo da simulação e da decomposição).
Personagens que coexistem diante dessa evanescência do tempo
reduzidas a uma cronologia compulsiva. Não se compreendem fora dos
cenários urbanos e rurais da quotidianeidade e dos objectos comuns
poetizados. A ideia de “a intercorrespondência de Tudo” é
característicamente aureliniana; e
a figura da Distracção / na consanguinidade do espiritual e do /
gasoso. No atear / do elástico / e da matriz do tempo // Vamos?
Dilatamos um Deus / tranquilo nos feitos
(págs 11/12)
Como compreender (abarcar) as páginas
de Amónio ? Estipulam um caos-cosmos (enquanto
assinatura-filosofia-mundo) ? O que se pretende definir e delimitar
(quando sobreleva o tom perverso algo niilista)? Onde se reflecte um
espírito apocalíptico de (des)comprometimento com a precaridade
humana (a nossa singularidade (in)substituível)? O theatrum mundi (o
real inverosímel)? Do homem que traz consigo o sinal da desmesura,
da hybris ? A marcha da vida e da morte? A infelicidade oculta da
nossa condição? Será que o homem forja as grandes imagens a que
consagra a sua vida? Como medir as tentações que um homem pode
sofrer? Mas o que significam os desaires? Como apreciar o peso das
circunstâncias que dão a um Acto a verdadeira fisionomia? A condição
humana situa-se no mal, é o próprio mal? Mal radical, mal sem
redenção, mal definitivo? Que valor tem a vida e a criatividade do
homem? Irá tudo, no fim, desembocar no vácuo e no nada? A resposta a
estas perguntas só pode ser evasiva como em Amónio.
Ao longo do livro reafirma-se o
aspecto delirante do humano, a intempestividade humana, o grotesco,
através de sucessivas descrições, onde a metáfora não se limita a
estabelecer uma analogia, mas aponta para sentidos ainda não
expressos. Descortinamos lógicas seminais, sinais enigmáticos do
non-sense, anacronismos, ficções. Assiste-se a uma espécie de
acúmulo secreto da própria desintegração social: um mundo absurdo e
patético, pleno de clichés, de vacuidades, de episódios insólitos,
de itinerários simultâneos que super-põem em continuum, onde se
aloja a vida encenada, a faceta absurda do homem comum sedento de
construir um eu e um mundo coerentes, ou pressionado por
situações-limite por vezes trágicas, em geral dramáticas.
É exactamente o carácter ambíguo e
complexo da linguagem críptica expressionista, o influxo lírico, a
habitual preferência situacional pelos mundos interiores
extravagantes em que vivem os humanos, ou o que podemos chamar
pathos: por um lado, o fluxo caótico do real, a incompletude
ontológica; por outro lado, o vazio, o abismo onto-existencial que
atravessa e define o homem.
Conhecemos a sequência deste
livro-Rizoma como intersecção de afectos, de aventuras e
intensidades. Um texto cheio de alusões e diatribes. Um texto
poético-visionário e, apesar, em torno de um real que Freud descreve
como aquilo que será sempre irreconhecível, um livro que nos remete
para uma sucessão de presentes de mundos distintos e inassimiláveis,
um jogo de fulgurações di ou convergentes, fascinantes encadeamentos
“trans-temporais” de actores e personagens: um estilo de acréscimo.
|