Batista de Lima
Os contos de Tércia Montenegro
O Vendedor de Judas é o
primeiro livro de Tércia Montenegro. São 18 contos, compondo o
volume 172 da Coleção Alagadiço Novo, dirigida pelo professor
Martins Filho, o Reitor dos Reitores, e editado pelo Programa
Editorial Casa de José de Alencar, da Universidade Federal do Ceará.
Muitos escritores gostariam de se iniciar publicando pela Coleção
Alagadiço Novo. Assim, Tércia, pode se dizer, começa por onde muitos
terminam. Esse é o primeiro aspecto inusitado de seu trabalho, que
vem com belíssima capa de Assis Martins, ilustrada com desenho de
Audifax Rios.
Outro aspecto que chama a atenção é o
gênero escolhido: o narrativo. Sabe-se que a narrativa é privilégio
da maturidade. Os próprios teóricos são unânimes em afirmar que para
o início da vida o gênero apropriado é o lírico; no meio da vida, o
dramático; e no entardecer da existência, o épico, de onde vêm as
narrativas mais significativas. Mais uma vez Tércia Montenegro, na
flor de seus 22 anos, opta por começar por onde muitos terminam:
pelo texto narrativo.
Não se deve pois exigir muito das
narrativas de uma garota, mal saída da adolescência, sem a
maturidade necessária para os embates que a história exige, sem a
experiência de uma saga pessoal. No caso de Tércia pode-se exigir,
porque ela responde positivamente. E para quem não a conhece, pode
imaginar, após a leitura dos textos, uma senhora vivida, escrevendo
a epopéia das criaturas que conheceu ao longo da existência. É por
isso que os personagens vão surgindo com seus dramas e derivando
entre o eros e o tanatos, o sacro e o diabólico, em construções que
vão da mais singela pureza ao mais engenhoso profano, como é o caso
de Irmã Querubina em “O Tapete Vermelho”. Diabólica também é a
atitude do vendedor de Judas, que dá nome ao livro, ao vender à
cidade um boneco carregado de explosivos, o que causa grande
destruição. Ou ainda a artimanha do juiz incorruptível que, ao ser
intimidado a soltar injustamente o perigoso meliante Benício, a
mando do Governador, prefere expulsar todos os presos da delegacia.
Nessa linha do diabólico, Tércia,
influenciada pelos pruridos românticos que marcam qualquer grande
leitor, usa da sua “puridade”, detectada por Caio Porfírio Carneiro,
na apresentação, e constrói a face de Kaliban, dentro de seu conto
de maior feição romântica e que traz a personagem Vitoriana, que
titula a história. Aspecto de Quasímodo, a moça traz a deformação
física acentuada pela carência afetiva dos rejeitados, e direciona
toda a paixão duradoura por alguém que já morreu. Surpreende também
nos contos de Tércia a economia dos elementos, como tempo, espaço e
personagens. Sabe ela que é difícil administrar muita gente em pouco
espaço e pouco tempo; pois gente é bicho mal comportado. Daí que ela
é econômica como acontece nos contos “O Mestre”, “O Franciscano” e
“Condenação”. Aliás, nesse último conto o final é surpreendente,
apesar de fechado.
Assim, vão desfilando as mais
estranhas histórias. É o rapto de uma criança por um pierrô, é a
humanização do suicídio em “A Longa Espera”. O grande momento do
livro, no entanto, é o conto “A Inspetora”. Nessa história há muito
mistério, e o diabólico se instaura na cumplicidade da supervisora
com seu alter-ego, um menino enigmático. Um habita o outro, mas os
dois não se resistem.
Pode-se citar nessa sucessão: “Morte
às Escondidas” com o choque da inocência diante da crueza da
realidade; “Himalaia”, onde a autora utiliza toda a ternura para
narrar talvez uma ternura de quem ouviu histórias contadas com
carinho; “Casa Antiga”, onde a interrupção do diálogo abre fendas
textuais, onde se funda a subjetividade; e, finalmente, “O
Sobrevivente”, um conto maduro, de grande densidade e suspense,
escrito surpreendentemente por uma jovem garota universitária,
estudante de Letras.
É uma precocidade que impressiona em
Tércia Montenegro. E aí o leitor perspicaz chega a algumas
conclusões. A audição de muitas histórias, ou a leitura dos
clássicos da narrativa é que podem explicar o alegórico, o
fantástico, o mórbido, e a finitude que subjazem do seu texto. Tudo
isso casado a uma singeleza no modo de narrar, uma fineza com o
trato da língua materna, uma ternura na fala. Ler os contos de
Tércia Montenegro é um exercício de agradável degustação. É respirar
pelos poros de sua tessitura lingüística. É passar-se de vassalo da
frase para construtor em potencial do seu texto. Ler a escritura de
Tércia Montenegro é navegar, como diz Roland Barthes, de uma margem
fixa para uma móvel, ou seja, do prazer do texto à mais completa
fruição.
Leia Tércia Montenegro
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