Mais de 3.000 poetas e críticos de lusofonia!

 

 

 

 

 

Batista de Lima

 

A narrativa

 

 

 

A narrativa está em crise, uma crise que começou quando Gutemberg prensou o primeiro livro, um exemplar da Bíblia, ainda da Idade Média. Naquele instante, a informação começou a corroer o poder encantatório da narrativa que corria de boca em boca, alimentada e enriquecida pelos contadores de histórias. Os heróis tinham sua dimensão de lenda estabelecida pelo inventiva de suas aventuras, contadas no retorno das lutas. O povo ouvia, acrescentava lances novos e a história como uma bola de neve criava novos contornos à proporção que passava de um para outro narrador. Mas a imprensa passou a grafar essas histórias e lhes tirar o poder de fantasia.

Os guerreiros não puderam mais fantasiar seus feitos, o testemunho frio da escrita passou a insofismável. Muitas foram as frustrações dos que voltaram das guerras modernas e encontraram suas histórias contadas e empobrecidas. O herói desgastou-se com a escrita e foi dando lugar ao pícaro. O personaegm picaresto do anti-herói, surgido a partir do Dom Quixote, de Cervantes, começou a apresentar a figura heróica do que não foi, do sedentário, daquele que ficou fora da guerra entre as nações, mas travou a grande guerra entre as pessoas, no cotidiano, entre os eus que cada um transporta e comporta a histórica guerra do homem diante das suas contradições, diante de suas indecisões. O barroco foi a culminância dessas indecisões humanas, foi o grau zero da narrativa com o fim das fantasias aristocráticas. O homem comum foi catapultado ao inverso literário como continente de um potencial mítico que antes era reservado aos bem nascidos.

A narrativa ao se desgastar, tomou novas versões. Os grandes romances a se tornar inviáveis diante do corre-corre cotidiano e começou a dar lugar a pequenas históricas. Passou pela novela e hoje o conto é a narrativa viável. Essa pequena história de poucas páginas tem todo o poder mitificador das grandes narrativas e pode ser consumida em instantes.

É, pois, o gênero literário da modernidade O contista, no entanto, tem se preocupado com o enfraquecimento da narrativa. Daí que novos recursos são utilizados para que o mítico não se arrefeça na mente do leitor. O contista de hoje prepara as ferramentas e deixa ao leitor a execução de sua própria história. O leitor de hoje, diante do texto, é pois um trabalhador criativo tanto quanto o autor. Daí que o conto moderno é uma abertura de veredas que o leitor deve seguir num desbravar de novidades, num rastrear de respostas. O conto de hoje é uma sugestão. É a criação de um palco onde o homem moderno dialoga com sua solidão, onde eros o tanatos se aproximam e se entrechocam. O leitor moderno não fica mais na passividade do ouvinte secular com seus ofícios ideais de deambular, caçar, pescar, tecer e fiar, ou postado pacificamente embasbacado com o que os outros contam à beira do fogo, à beira dágua, ao luar, nas bagaceiras dos engenhos, nas calçadas, nos alpendres das casas, nos balcões das vendas, nos velórios e nas sentinelas. O leitor atual é o narrador de sua própria saga, agente da epopéia de estar no mundo diante do grande enigma da existência. O leitor e o autor modernos se embricam numa só criatura.

E essa criatura posta diante da imensa solidão destes tempos, só tem uma saída viável, fazer uma leitura de si própria. Encontrar-se, encontrando a humanidade em si própria, de si própria, mergulhar nesse mundo fantástico e até fantasmagórico que vem latente em cada um. Sherazade e Shariar, os dois personagens principais das Mil e uma noites, são um só personagem em cada um de nós. É preciso por tanto ficar inventando histórias para embalar esse ser vilão que é a nossa condição humana, e entretê-lo ao longo das noites e dos dias.

Narrar é estar vivo. É ludibriar a morte, empurrando-a sempre para o dia ou a noite seguinte. Narrar é afirmar-se. É contar sua própria história, ou a história que poderia ter sido e não foi, e porque foi contada, terminou sendo.

 

 

Da Vinci, Madona Litta_detalhe.jpg

Início desta página

Neide Archanjo