Batista de Lima
A narrativa
A narrativa está em crise, uma
crise que começou quando Gutemberg prensou o primeiro livro, um
exemplar da Bíblia, ainda da Idade Média. Naquele instante, a
informação começou a corroer o poder encantatório da narrativa que
corria de boca em boca, alimentada e enriquecida pelos contadores de
histórias. Os heróis tinham sua dimensão de lenda estabelecida pelo
inventiva de suas aventuras, contadas no retorno das lutas. O povo
ouvia, acrescentava lances novos e a história como uma bola de neve
criava novos contornos à proporção que passava de um para outro
narrador. Mas a imprensa passou a grafar essas histórias e lhes
tirar o poder de fantasia.
Os guerreiros não puderam mais
fantasiar seus feitos, o testemunho frio da escrita passou a
insofismável. Muitas foram as frustrações dos que voltaram das
guerras modernas e encontraram suas histórias contadas e
empobrecidas. O herói desgastou-se com a escrita e foi dando lugar
ao pícaro. O personaegm picaresto do anti-herói, surgido a partir do
Dom Quixote, de Cervantes, começou a apresentar a figura heróica do
que não foi, do sedentário, daquele que ficou fora da guerra entre
as nações, mas travou a grande guerra entre as pessoas, no
cotidiano, entre os eus que cada um transporta e comporta a
histórica guerra do homem diante das suas contradições, diante de
suas indecisões. O barroco foi a culminância dessas indecisões
humanas, foi o grau zero da narrativa com o fim das fantasias
aristocráticas. O homem comum foi catapultado ao inverso literário
como continente de um potencial mítico que antes era reservado aos
bem nascidos.
A narrativa ao se desgastar, tomou
novas versões. Os grandes romances a se tornar inviáveis diante do
corre-corre cotidiano e começou a dar lugar a pequenas históricas.
Passou pela novela e hoje o conto é a narrativa viável. Essa pequena
história de poucas páginas tem todo o poder mitificador das grandes
narrativas e pode ser consumida em instantes.
É, pois, o gênero literário da
modernidade O contista, no entanto, tem se preocupado com o
enfraquecimento da narrativa. Daí que novos recursos são utilizados
para que o mítico não se arrefeça na mente do leitor. O contista de
hoje prepara as ferramentas e deixa ao leitor a execução de sua
própria história. O leitor de hoje, diante do texto, é pois um
trabalhador criativo tanto quanto o autor. Daí que o conto moderno é
uma abertura de veredas que o leitor deve seguir num desbravar de
novidades, num rastrear de respostas. O conto de hoje é uma
sugestão. É a criação de um palco onde o homem moderno dialoga com
sua solidão, onde eros o tanatos se aproximam e se entrechocam. O
leitor moderno não fica mais na passividade do ouvinte secular com
seus ofícios ideais de deambular, caçar, pescar, tecer e fiar, ou
postado pacificamente embasbacado com o que os outros contam à beira
do fogo, à beira dágua, ao luar, nas bagaceiras dos engenhos, nas
calçadas, nos alpendres das casas, nos balcões das vendas, nos
velórios e nas sentinelas. O leitor atual é o narrador de sua
própria saga, agente da epopéia de estar no mundo diante do grande
enigma da existência. O leitor e o autor modernos se embricam numa
só criatura.
E essa criatura posta diante da
imensa solidão destes tempos, só tem uma saída viável, fazer uma
leitura de si própria. Encontrar-se, encontrando a humanidade em si
própria, de si própria, mergulhar nesse mundo fantástico e até
fantasmagórico que vem latente em cada um. Sherazade e Shariar, os
dois personagens principais das Mil e uma noites, são um só
personagem em cada um de nós. É preciso por tanto ficar inventando
histórias para embalar esse ser vilão que é a nossa condição humana,
e entretê-lo ao longo das noites e dos dias.
Narrar é estar vivo. É ludibriar a
morte, empurrando-a sempre para o dia ou a noite seguinte. Narrar é
afirmar-se. É contar sua própria história, ou a história que poderia
ter sido e não foi, e porque foi contada, terminou sendo.
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