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Jornal do Conto

 

 

Batista de Lima


 

Sobreviventes


 

A seca chegou sorrateira. Não preveniu ninguém. O céu escondeu as nuvens e as chuvas, feito vaca ruim que esconde o leite. Do quebrar da barra à boca da noite viver era pular fogueira, o tempo todo.
O velho Macário pressentiu que era o fim dos tempos. Viu o açude secar, pela primeira vez. O porão escamado à mostra. Os urubus no céu azul. Foi preciso cavar uma cacimba onde antes era mais funda a água e ficar cavando todo dia, acompanhando aquela miragem líquida que teimava em se esconder nas profundezas, feito tatu medroso. As duas vacas, os dois bezerros e o velho touro eram tão importantes quanto a mulher, as duas moças e o rapaz soturno. Tudo era soturno. Todo dia, “rouxinol” e “malhada” deixavam cair na cuia um litro de leite, cada uma. Era preciso conseguir pasto. Folha não tinha mais, só mandacaru, que depois de queimado, para acabar os espinhos, era cortado para extrair o miolo úmido e nutritivo. Era o dia inteiro vasculhando por mais de uma légua atrás da ração do gado que era a ração da família.
Os últimos jerimuns guardados no sótão, do inverno passado, eram comidos e divididos com as reses. Ninguém sabia quem era gente e quem era bicho.
Dona Ana poupava os jerimuns, torrava as sementes e a família as comia com sal. Foi a velha senhora quem teve a idéia de plantar em três covas algumas sementes sobradas. Em poucos dias, regadas com água do filete preguiçoso, as plantinhas, adubadas com o esterco do gado, já botavam umas folhinhas verdes pelo chão de fogo. Era uma festa para os olhos, uma esperança de vida. Com pouco já havia ramos traquinas pelo chão e subindo pela cerca triste. Era uma mancha verde que crescia no estorrico. Já dava para tirar algumas folhas para as cinco cabeças de gado que sobreviviam. A família passou a se dedicar ao plantio da esperança. Outros pés foram plantados e se enramaram tanto que quase uma tarefa do fundo do açude virou um tapete verde. A água que sumia pros fundos da terra perdeu o medo e ficou olhando aquele milagre de vida. O primeiro jerimum colhido foi festejado com orações e berros, todos comeram dele, até os passarinhos escapados.