Aproveitando a visita
recente do amigo poeta e advogado cearense Francisco José Soares
Feitosa, entrevistei-o, aqui em Campo Grande, abordando assuntos
literoculturais e, claro, falando sobre o seu “Jornal de Poesia”,
o maior acervo poético em língua portuguesa no país, site (www.jornaldepoesia.jor.br)
editado por ele há quase duas décadas. Residente em Fortaleza,
Soares Feitosa, como é conhecido, é autor dos livros ‘Réquiem em Sol
da Tarde’ e ‘Psi, a Penúltima’. Aplaudida pelo público e pela
crítica nacional, a sua obra traz elogios de nomes como Jorge Amado,
Thiago de Mello, Ivan Junqueira, Manoel de Barros e tantos outros. O
ícone da crítica literária brasileira, Wilson Martins, assim
asseverou acerca da verve de SF: “é
um poeta lírico de harmônicas universais, inclusive as sugestões
místicas; é também um saudosista, na medida em que são por natureza
saudosistas os temas históricos
e as evocações sentimentais, inspiração para belos poemas...”.
A seguir, trechos da nossa recente entrevista:
RM
– primeiramente, gostaria que você definisse, de forma concisa, o
poeta Soares Feitosa.
SF - Tenho 71 anos. Vivo em
meio aos livros, papeis e letras desde os primeiros dentes. Fui
criado dentro de uma sala de aula: minha mãe, mestra-escola de
antigamente, tangia uma classe com não sei quantos alunos, da Carta
de ABC ao terceiro ano, dentro de casa; era a nossa casa. O Estado
pagava o aluguel e permitia que a professora habitasse a casa, desde
que a sala principal fosse reservada aos alunos. (Vila da Telha,
atual Monsenhor Tabosa, Ceará). Depois, aos 13 anos, catapultado
direto do sertão para uma pólis grega, a biblioteca do Seminário de
Sobral. Haja deslumbramento: Júlio Verne, o Tesouro da Juventude,
uma biblioteca que não tinha tamanho. Incluso um livro de astronomia
com algumas deusas gregas, os braços nus e amplo decote às espinhas
do adolescente. Ah tempo! Em suma, fui criado nesse ambiente: o
prazer de ler, olhar, escutar, espiar... perguntar para-dentro. Como
se fosse pouco, minha mãe tinha um pé de farmácia e, para embrulhar
os remédios, assinava o Diário Oficial, de preço módico para os
funcionários, de modo que eu, menino, dispunha de jornais à vontade
para riscar e recortar letras. Ainda hoje é assim, vivo cercado de
papéis. Garatujo. Sempre garatujei. Ainda que sem papel algum. Sem
papel? Sim. O exercício.
RM
– qual a importância da literatura, especialmente a poesia?
SF - A poesia é essencial.
Há uma poesia suprema, do sacerdotal, dessa permanente negociação
com os deuses, sobretudo com os não-acreditados que, pior, são os
mais terríveis. Os textos sagrados (todos!) são de pura poesia. De
tão forte poeticidade que a gente nem a percebe.
RM
– que mistério habita a face da arte poética? O que vem a ser
poesia?
SF - O estado poético é
ver as coisas pelo lado noite. Pelo lado dia, hão de ser vistos os
problemas da sobrevivência, habitar, comer, empregar; falar com os
políticos, pagar as contas, correr atrás dos velhacos, essas coisas.
Ver com os olhos da noite pressupõe uma dimensão não-racional, de
enlevo, acendimento e ascendimento. Mas não estou dizendo que
ninguém possa trabalhar à noite, nem poetar durante o dia. Desconfio
que os cegos, mas eu era apenas míope, sempre usei óculos, tenham,
os cegos, grande facilidade pela noite. Há, no estado poético, um
enxergar que não é dos olhos. O homem primitivo, antes de descobrir
o fogo, tinha a noite para o entretenimento e os medos do existir.
Veja, no nosso interior, naqueles tempos de uma escuridão bem
sertão, dizíamos: «Menino que mente de dia cria rabo». Ou seja, de
noite, pode; de dia, não; mentir. Parece que o poético passa pelo
lúdico, os medos, as fantasias, o sacerdotal e a esperança. “Ela vai
voltar”, dizemo-nos preferencialmente de noite; que nunca volta,
Ela; e quando volta, irreconhecíveis, ambos. É assim mesmo: de
dia, no escritório, você encontrará o advogado, sério e
profissional, mas de noite, ainda que de dia, este aqui, eu mesmo,
um traquinas que brinca, dança, corre, pinta e borda, ainda que sem
sair do canto, sem mexer um dedo, um único músculo.
RM
– a poesia tem a mesma vez que a prosa no cenário literário
brasileiro?
SF – Prosa sem poesia é
apenas um relatório, um BO, para usar a linguagem policial, uma bula
de remédio, uma receita de bolo. Pegue qualquer dos grandes autores,
de Euclides da Cunha a Saramago e verá que o texto só aparentemente
é prosa, mas poesia, pura poesia, da melhor. O leitor percebe.
Canudos não se rendeu/. Exemplo único em toda a história/, resistiu
até o esgotamento completo. Expugnado palmo a palmo/, na precisão
integral do termo/, caiu no dia 5, ao entardecer/, quando caíram/ os
seus últimos defensores/, que todos morreram//. Eram quatro
apenas:/ um velho, dois homens feitos e uma criança/, na frente dos
quais rugiam/ raivosamente cinco mil soldados... De Saramago, um
dia peguei uma página à toa de O Evangelho Segundo Jesus Cristo
e a coloquei em estrofes, procurando ritmo e batimento. Ah, meu caro
Rubenio, Rosa é outro. Guimarães Rosa, sou capaz de “ler” o Rosa
inteiro pela via poética, de ponta a ponta. Anote aí, por seu favor,
em definitivo: Não existe prosa. Só existe poesia... Prosa
não-poética, por favor, é relatório. Melhor uma planilha de números
e algoritmos. O arranjo sobre Saramago está aqui:
http://www.jornaldepoesia.jor.br/1saramago8.html
RM
– a atual poesia brasileira segue por caminhos fecundos ou por
ríspidos descaminhos?
SF – Muita enganação por
aí. Dos concretos e dos minimalistas. Aforismos e outros bobajais. O
pior é a enganação. Não há salvação fora dos clássicos.
RM
– levando-se em conta as tendências que a poesia já trilhou nas
sendas da linguagem, o que está faltando acontecer?
SF – A resposta está nas
anteriores: ou o texto é poético ou inexiste.
RM
– o incremento da poesia nas salas de aula e o fomento das oficinas
de criação poética seriam opções necessárias para melhorar o índice
de leitura no nosso país?
SF – A leitura de poesia,
no Brasil, é suprida pelo sacerdotal. Em tempo: não sou religioso.
Leio o texto sacerdotal — de qualquer credo — em busca da beleza.
Mas isto é assunto para muita cerveja que já nem as bebo por conta
do diabetes querendo comer meus pés. Controlo a glicemia com
absoluto fervor... vá comer os pés do demônio! Não os meus. Nem os
seus.
RM
– a crítica literária é importante para a poesia nacional? Qual a
referência atual nesta área?
Sim. A respeitabilidade de
Wilson Martins, dentre uns poucos. Outros hão de surgir. Não é
fácil.
RM
– como aconteceu o seu primeiro encontro com a poesia?
Olhar, ler, ver, escutar,
sentir... desde que me entendo no mundo. De escrever, só aos 50
anos, o meu primeiro texto, inédito, Siarah. Foi um represamento.
Sem motivos para represar. Simplesmente não tinha nenhuma vontade de
escrever. Sequer a tentativa. Muitos amigos simplesmente não
acreditam e dizem que tenho armazéns de cadernos… Tenho não. A
vontade de escrever chegou aos 50 anos. Vez por outra chega de novo.
Pego o computador e escrevo. No computador. Desaprendi a empunhadura
manual para escrever. Desde os tempos da máquina de escrever,
auditor da receita (concursado Fiscal do Consumo aos 20 anos; Banco
do Brasil, também) que me impus à máquina. Faz um tempão, não sei
quantos anos, que não escrevo uma linha. Nenhuma frustração por
isto.
RM
– o que você acha mais importante: a inspiração ou a transpiração?
Que força incita a criação
do
poeta Soares Feitosa?
SF – Tem que ter a
inspiração. Como é que chega, isto eu não sei.
RM
– qual a sua opinião acerca da efervescente onda poética que circula
na internet? Qual o futuro da poesia?
SF – Muito boa essa onda. O
nível de leitura é crescente. Estamos melhores. Sou a favor.
RM
– Quais livros e poemas da literatura brasileira podem ser
considerados imortais?
SF – Antônio Frederico
Castro Alves no alto do céu! Por falar no Menino — assim o chamo em
livro inédito, Salomão, este monumento, A Cachoeira de Paulo Afonso!
A miscigenação brasileira está lá, com quase cem anos de
antecedência sobre Gilberto Freyre: Lucas, moreno e altivo; Luísa e
seus atributos em cravo e canela: "Mimosa flor das escravas!/ O
bando das rolas bravas/ Voou com medo de ti!..." Castro Alves
retrata, neste poema Brasil-essência, todo a nossa bastardia, a
morenidade de Cotegipe, Floriano Peixoto e Machado. Lucas, filho da
escrava com o senhor, assassinada pela sinhá. Os meus olhos louros e
o cabelo pixaim, este tão Brasil brasileiro de pai desconhecido.
Veja, poeta, esta paisagem que ninguém lhe descreve igual: "Os
poldros soltos — retesando as curvas, —/ Ao galope agitando as
longas crinas". E a escravidão, a mancha ao infinito, drama atual —
favelas — mais forte em Cachoeira, porque mais sublimada, do que
no Navio. E a ironia, a canoa à beira do precipício, mas é assim que
ele diz: "Semelha um tronco gigante/ De palmeira, que s'escoa.../ No
dorso da correnteza,/ Como boia esta canoa!" Boia? Ele a despeja lá
embaixo, veja: "De tua vaga os turbilhões barrentos. /A canoa
rolava!... /Abriu-se a um tempo o precipício!... /e o céu!..." Por
isto mesmo é que se fala tão mal de Castro Alves. Ele abusou.
O Navio teria sido suficiente. A Cachoeira excede a todas as medidas
da genialidade. Em qualquer tempo, em qualquer lugar do mundo.
RM
– sobre o site Jornal de Poesia, por que este nome e qual a
sua maior satisfação em mantê-lo há quase vinte anos?
SF – Com os blogs, quando o
autor, ele mesmo faz a sua divulgação, o Jornal de Poesia
perdeu a força de arauto, na frente, gritando bem alto: Vejam este
poeta! E abria oportunidade a todos, principiantes também. Formei
ali um acervo monumental. Os planos hoje giram em torna da
divulgação do livro em inteiro teor. Tenho um acervo de quase mil
livros de poesia digitalizados, mas só vou colocando à medida em que
o autor autoriza, como é o seu caso, poeta Rubenio, quando, recente,
coloquei o seu belíssimo poema do pai, o Rosto do Pai, do seu livro
mais novo, Veleiros da Essência.
RM
– certa vez, há quase uma década, você falou: “o
livro de papel tem uma mística, um simbólico absolutamente
insubstituível”. Ainda
pensa assim?
SF – O livro continua com a
mesma mística. O papel é insubstituível. Veja, aqui no escritório,
tenho uma impressora a mais para imprimir o “inteiro teor”, a
colocar debaixo do braço, riscar, anotar, rabiscar, nos processos
mais complicados, na minha atividade de advogado. Na tela, ainda
estou treinando. O mesmo, na poética. Claro que imprimi o seu poema
do pai, Desculpa-me, pai!, botei-o debaixo do braço, embaixo
da rede, caneta de riscar ali perto, futucando e varejando… é assim
que leio. Veja, do meu único livro, PSI, A PENÚLTIMA, de 1997, tenho
apenas um exemplar. Digitalizei-o e coloquei na Internet, mas não é
a mesma coisa de entregar para um amigo o livro em papel e tinta.
Estou reeditando-o com o nome Dedicatória… aguarde o seu. (Esta
entrevista, vou imprimi-la antes de remeter. A ler no papel,
amassá-la, manuseá-la, sei lá mais o quê, essa mística da coisa
escrita no meio físico, desde os tempos, lápides e pergaminhos).
RM
– a Academia Sul-Mato-Grossense de Letras mantém aqui, no Jornal
Correio do Estado, já há mais de 43 anos, o seu Suplemento
Cultural publicado ininterruptamente aos sábados, sendo
certamente um dos mais antigos em circulação contínua no nosso país.
Qual a importância dos cadernos culturais?
SF – Inteiramente a favor.
Pena que eu não tenha tempo para nada.
RM
– por falar em Academia, qual o seu relacionamento cultural com os
acadêmicos cearenses e com a Academia Cearense de Letras. Já pensou
em concorrer a uma Cadeira na ACL?
SF – Já frequentei mais.
Hoje, não. Um isolamento absoluto, sem motivos. Projeto nenhum de me
candidatar a qualquer cargo.
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Campo Grande/MS, maio/2015
SOARES FEITOSA, Francisco José,
19.1.1944, Ipu, CE. Editor do Jornal de Poesia, na Internet. Auditor
da Receita Federal aposentado. Advogado e poeta. Reside em
Fortaleza.
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