Bea Galvão
Das barbas que não consegui
arrancar
Meu amor,
Não tinha lido nas entrelinhas que
aquele seu olhar não era de despedida, mas de súplica por alguma
resposta. Até ontem, os cacos de minha maturidade tardia não haviam
se juntado de forma nítida, e passei as últimas 24 horas me
interrogando se era justo lhe meter novamente no meio de minhas
confusões.
Queria dizer que só tenho olhos e
poros para você; queria dizer que as noites são intermináveis quando
não estou ao seu lado; queria dizer que roubaria o céu para
colocarmos em nosso quarto... mas meu amor é sincero e não cabe em
pequenas-fórmulas-feitas... meu corpo é vasto e não se sacia de uma
só carne; minhas noites terminam quando meu sexo seca e o céu...
bem, o céu é melhor deixarmos onde está (ainda que eu quisesse
roubá-lo, o seu quarto já não é mais o meu e dá-lo de presente me
privaria do direito de ver a lua pensando em você).
Não. Meu amor não é pequeno para caber
nestas fórmulas-feitas.
- Freud certamente se divertiria ao
ver a cena em que eu estava pintado no momento de minha reflexão: de
chambre branco, bebendo whisky e fumando, sem nenhum complexo, o meu
charuto. Mas o mais picante disso tudo seria se ele, ao observar-me
onde já foi o nosso leito, anotasse em seu caderninho: “Não, nem
tudo está errado. Porém, minha teoria não pode abarcar certos
sentimentos”. E deixasse uma pequena nota de rodapé dizendo:
“Recomeçar do zero, analisando a partir do ponto em que parei”.
E foi aqui, meu amor, justamente aqui
que parei minhas meditações ontem: pensando no ponto em que paramos.
E me dei conta de que nos fomos, sem querer, sem sequer que eu
percebesse o momento final, a última cena!
Não me despedi dos seus olhos, que me
vigiavam enquanto eu dormia; não me despedi de tua pele, que tanto
me exigia; não me despedi de teus cabelos tão colados ao meu rosto
aqui, nesta cama tão pequena; não me despedi, sobretudo, de tua
boca, que tanto me interrogava e me aquecia. Tenho-os todos
guardados na minha memória mais forte: a memória do teu cheiro, que
ainda caço n´algumas noites perdidas.
- Por favor, se for a bebida a
co-autora dessa carta que jamais será lida, ou se me levantar
tropeçando para cair nos braços de alguma Moça, não se esqueça que a
força do hábito, essa sim, é tão sincera e às vezes mais forte que o
meu amor.
Mas volto à sobriedade, sim.
Vou trabalhar duro para pagar os meus
vícios em dia, sim.
E, no começo da noite, quando eu
voltar para esse teto, dormirei sozinho em meio às orquídeas que
comprei para você.—
(e me esqueci que o amor podia não
caber nos frascos convencionais, mas que podíamos tê-lo sorvido a
goles diários). Tenho whisky e paguei caro por ele.
|