Batista de Lima
Quatro Personalidades Pessoanas
Fernando Pessoa não só criou seus heterônimos como
estabeleceu para cada um deles, uma biografia própria. É
através destas biografias que podemos verificar quão diferentes
eles se apresentam.
Fernando Pessoa
(O Ortônimo)
"Há sem dúvida quem ame o infinito."
Fernando Antônio Nogueira Pessoa nasceu às 3 horas da tarde
do dia 13 de junho de 1888, no 4º andar de um prédio do Largo
de São Carlos em Lisboa. Faleceu no dia 30 de novembro de 1935 no
hospital de São Luís em Lisboa, acometido de perturbações
hepáticas.
O ortônimo escreveu Mensagem, em 1935, onde se revela nacionalista
místico. Também escreveu. Quinto Império, onde transparece
seu sonho sebastianista e monarquista. Escreveu ainda: Cancioneiro,
onde se apresenta lírico e desencantado; Poemas Dramáticos;
e 35 Sonnets, onde se revela ocultista, abúlico, amante do
mistério.
Através da poética, revela-se dialético, ao exercer,
ao exercer a intelectualização da sensação;
paúlico, quando trabalha um simbolismo lúcido e consciente,
um passo à frente do saudosismo; interseccionista, quando aperfeiçoa
mais o simbolismo através da subjetividade excessiva, da síntese
elevada ao máximo e através do exagero da atitude estática
e da mescla de sensações; lúcido, e angustiado por
ser lúcido; e Platônico: Cultivador do vago, do complexo e
do sutil. Mais que os heterônimos, o ortônimo tem uma atitude
perspicaz de ver as coisas.
Também tende para o gosto pelo que é maneirista, conceptista,
pelo uso do paradoxo, daí apresentar-se tradicional e moderno ao
mesmo tempo.
Segundo o Professor Linhares Filho, as duas principais características
da sua modernidade seriam: a consciência do fazer artístico
e a prevalência do apolíneo sobre o dionisíaco, no
elaborar-se poético.
Sensacionista, o ortônimo nos mostra como sentir a paisagem, pois,
para ele, todo objetivo é uma sensação nossa, toda
arte é conversão da sensação em objeto, toda
arte é conversão da sensação em sensação.
O próprio Pessoa apresenta cinco condições ou qualidades
para entender os símbolos do ortônimo: a simpatia, a intuição,
a inteligência, a compreensão e a graça. Depois conclui
que:
"Todo estado de alma é uma paisagem.
Uma tristeza é um lago morto dentro de nós.
Assim, tendo nós, ao mesmo tempo, consciência do exterior
e do nosso espírito, e sendo nosso espírito uma paisagem,
temos ao mesmo tempo consciência de duas paisagens."
Como se vê, um espírito tão rico e até paradoxal
como o de Pessoa não podia se resumir numa só personalidade.
Daí o surgimento de muitos heterônimos, principalmente o de
Ricardo Reis, Alberto Caeiro e Álvaro de Campos.
Ricardo Reis
"Há sem dúvida quem deseja o impossível."
Ricardo Reis nasceu em Lisboa, às 11 horas da noite do dia 28
de janeiro de 1914. Foi discípulo de Alberto Caeiro, de quem adquiriu
a lição de paganismo espontâneo. Há informação
dando conta de que teria embarcado para o Brasil em 12 de outubro de 1919.
Em Ricardo Reis,
"Há a renúncia de quem atingiu
os píncaros da humana lucidez
e abstrai seus conceitos de impermanência e símbolos
da contemplação voluntária de uma natureza
quem o homem iguala
à essencialidade ideal que lhe basta"
Esse heterônimo pessoano, numa arte poética particularmente
sua, procurou sempre o mais alto, o impossível até, para
encrustar uma poesia refinada, concisa, elíptica, cunhada em linguagem
esmerada e com vocabulário algo alatinado. São antológicas,
suas modernizadas odes horacianas: "Lídia", "Coroai-me
de Rosas", "O mar Jaz" e "Sábio é o que se
Contenta", todas de 1914. De 1916 são mercantes: "Não
a Ti, Cristo" e "Não a Ti, Cristo, Odeio...". Nestas odes, prevalece
o apolíneo comprovado por uma moderna consciência do fazer
artístico. Muitas delas apareceram primeiramente publicadas na revista
Athena e, principalmente, na Presença, sempre indiferentes
ao social, mas acentuadamente consciente da efemeridade da vida.
Reis leva o paganismo de Caeiro à sua expressão mais ortodoxa,
através de um neoclassicismo neo-pagão consciente, cultivando
a mitologia greco-latina. Clássico por excelência, idealista
e platônico no amor, constata o efêmero da vida e anseia, no
íntimo, por uma fenomenológica eternidade terrena.
Segundo Linhares Filho, sob a perspectiva do ser, pode-se dizer que
Ricardo Reis ama o impossível, mas sob a perspectiva do "Parecer",
ele
"ama o infinito porque mais do que todos
se apega à vida, desejando-a infinda,
sob a simulação de resignar-se com a transitoriedade."
Como se observa, amando o impossível ou o infinito, Ricardo Reis
sempre procurou os píncaros, como a fugir (fingindo) de uma realidade
terrena que verdadeiramente queria viver, eternamente.
Alberto Caeiro
"Há sem dúvida quem não queira nada."
Alberto Caeiro da Silva nasceu em Lisboa, em abril de 1889, e na mesma
cidade faleceu, tuberculose, em 1915. Passou quase a vida inteira numa
quinta de Ribatejo. Lá escreveu O Guardador de Rebanhos e
uma parte de O Pastor Amoroso, que não foi completado. No
mesmo local, escreveu ainda alguns poemas de Poemas Inconjuntos,
vindo este a se completar já em Lisboa, quando lá o autor
voltou, já no final da vida. Aliás, da vida de Caeiro não
há o que narrar; sua vida e seus poemas se confundem.
Simples, Caeiro parte do zero, quando regressa a um primitivismo do
conhecimento da natureza. Mestre de Ricardo Reis e Álvaro de Campos,
a eles ensinou a filosofia do não filosofar, a aprendizagem do desaprender.
Compôs uma poética da contemplação, hiperbólica,
de linguagem espontânea, discursiva, e prosaica, por extirpar do
texto, ao máximo, a conotação tradicional. Considerando
o mais contraditório dos heterônimos, atinge o poético
pelo apoético, ou seja, conota quando denota, já que usa
o inusitado.
Este heterônimo pessoano, diante da possibilidade de se infelicitar
com o sol, os prados e as flores que contetam com sua grandeza, procura
minimizá-los, comparando-os com eles próprios. Nessa redução
do mundo, fica mais latente o "nada". Daí ser ele o heterônimo
que nada quer. Mesmo assim, enquanto tenta provar que não intelectualiza
nada, é que mais intelectualiza entre as personalidades pessoanas,
parece usar o raciocínio sem querer demonstrar isso. Daí
ser o mais infeliz, por restringir o mundo, além de fugir do progresso
e a ele renunciar.
Caeiro faz uma poesia da natureza, uma poesia dos sentidos, das sensações
puras e simples. Foi por isso que procurou, na serra, sentir as coisas
simples da vida com maior intensidade.
Sendo o mais intelectualizado entre as personalidades pessoanas, Caeiro
foi o que menos se preocupou com o trabalho formal do poema. Daí
o comentário crítico do seu discípulo Ricardo Reis:
"Falta nos poemas de Caeiro
aquilo que deveria completá-los a disciplina exterior.
Não subordinou a expressão
à uma disciplina comparável àquela a que subordinou,
quase sempre, a emoção e sempre, a idéia."
Como afirma Reis Caeiro, sem muitas preocupações formais,
foi o filósofo das personalidades pessoanas. Mesmo o tempo todo
não querendo nada e trabalhando o lado mais simples da linguagem,
a denotação, conseguiu, de maneira surpreendente, elaborar
um inusitado monumento poético.
Álvaro de Campos
"Três tipos de idealistas e eu nenhum deles."
Álvaro de Campos nasceu em 15 de outubro de 1889. Engenheiro,
inquieto e sensacionista, representa a parte mais audaciosa a que Pessoa
se permitiu, através das experiências mais barulhentas do
futurismo português, inclusive com algumas investidas no campo da
ação político-social.
Para tanto, fez a adoção do cotidiano através do
versilibrismo, integrando-se à civilização da máquina
com o dinamismo e a inquietude do pós-guerra (la guerra). Essa atitude
comprova a sua consciência moderna do fazer artístico, preocupada
com o existencial, e, principalmente, com o aproveitamento do que é
possível de se extrair da emoção.
A trajetória poética de Álvaro de Campos está
compreendida em três fases. A primeira, da morbidez e do torpor,
é a fase do "Opiário", oferecido a Mário de
Sá-Carneiro e escrito enquanto navegava pelo Canal do Suez, em março
de 1914. A segunda fase, mais mecanicista e Whitmaniana, é onde
o Futurismo italiano mais transparece num aclimatamento em terras de Portugal.
Nessa fase, Campos seria,
"Um Whitman com um poeta grego dentro.
Pois Pessoa o coloca numa dupla seqüência:
a de uma arte orientada pelo ideal grego
e a dos cantores de hinos a civilização moderna
e sensações por ela provocadas."
É nessa fase onde a sensação é mais intelectualizada.
A terceira fase, do sono e do cansaço, aquela que, apesar de trazer
alguma coloração surrealista e dionisíaca, é
mais moderna e equilibrada se apresenta. É nessa fase em que se
enquadram: "Lisbon Revisited" (l923), "Apontamento", "Poema
em Linha Reta" e "Aniversário", que trazem, respectivamente,
como características, o inconformismo, a consciência da fragilidade
humana, o desprezo ao suposto mito do heroísmo e o enternecimento
memorialista.
O que se constata, finalmente, é que Álvaro de
Campos, a despeito de intelectualizar as sensações e apresentar
laivos surrealistas, é a personalidade pessoana que mais se aproximou
de uma poesia realista, e, também, quem mais foi marcado pelos caracteres
da modernidade.
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