Luís Vaz de Camões
Biografia
A primeira biografia de Luís de Camões
foi escrita em 1613, no "Prefácio" da edição de Domingos Fernandes,
por Pedro de Mariz (1550-1615), filho de Antônio de Mariz, livreiro
em Coimbra no tempo em que Camões ali vivia, e ele mesmo presbítero
secular, bacharel em Cânones e guarda-mor da Livraria da
Universidade, e assim em condições morais e cronológicas para da
vida do Poeta conhecer dados essenciais. Alguns deles nos oferece o
seu esboço biográfico, não desmentidos pelos que a investigação
posteriormente tem descoberto nem pelos próprios elementos
autobiográficos colhidos na obra lírica e épica do Poeta.
O que nem ele nem ninguém nos dá de
decisivo é a indicação do local e da data do seu nascimento. Como
sucedeu com Homero, várias localidades disputam a glória de ser seu
berço, mas Lisboa e Coimbra com mais probabilidades. Deixemos a
discussão aos mais interessados pelas glórias locais do que pelo
legado do Poeta, e digamos que as duas cidades têm, para seu
orgulho, pábulo que baste: Coimbra, por ter-lhe condicionado o seu
honesto estudo de humorista; Lisboa, a sua longa experiência social.
Aparentado com os Camões, da mais honrada (ou seja, enobrecida)
gente da cidade do Mondego, é ele próprio que afirma ter-lhe aqui
decorrido parte da mocidade:
Nesta florida terra,
Leda, fresca e serena,
Ledo e contente pera mim vivia.
..................................
Longo tempo passei,
Com a vida folguei...
Um seu tio paterno, D. Bento de
Camões, frade de Santa Cruz e chanceler da Universidade, com
probabilidade tem sido indicado como o protector e mentor de seus
estudos, mas é admissível que o próprio ambiente universitário lhe
haja suscitado curiosidades que, fora dele e através da vida, iria
satisfazendo por um audotidatismo que o tornou o poeta de mais
variada e viva cultura do seu tempo. Não terá sido o bacharel
latino, como já o biografismo fantasioso o graduou, mas, lendo o
latim, o italiano e, naturalmente, o castelhano, pôde nutrir sua
cultura de poeta e fazer florescer em suas Rimas — ou seja na sua
lírica — temas de vária origem, mas a que seu gênio criador imprimiu
a unidade da vida, porque tudo foi assimilado e vivido como próprio.
A nobreza da família, fortalecida pela abundância dos bens em seus
parentes de Coimbra, era decerto modesta no pai, que os não possuía.
Cabiam-lhe, todavia, honras de cavaleiro fidalgo, e ao filho, que
também o era, essas bastavam, acrescentadas dos bens do espírito e
da cultura, que os tinha excepcionais, para lhe dar entrada nos
Paços da Ribeira. Era jovem quando ali pôde fulgurar, pois teria
nascido nos fins do primeiro quartel de Quinhentos quem era ainda
jovem em 1553, data da Carta do Perdão, a que já nos referiremos,
que o habilita, liberto do Tronco da Cidade, a partir para a Índia
como soldado.
A poesia lírica de Camões é, em grande
parte, poesia de circunstância, o que significa que emerge da vida,
como a espuma do movimento da vaga, e isso lhe dá o valor
autobiográfico precioso para quem não encontrou nenhum contemporâneo
que dele com demorada atenção se ocupasse. Fidalgo e freqüentador do
Paço Real, escreveu o soneto em que comenta o incidente palaciano de
D. Guiomar de Blasfé, a filha do conde de Redondo, D. Francisco de
Sousa Coutinho, que depois encontraria vice-rei na Índia. Uma vela
do salão queimou-lhe o rosto; o caso foi comentado risonhamente e o
Poeta dedicou-lhe as trovas Amor, que a todos ofende, / Teve,
Senhora, por gosto / Que sentisse o vosso rosto / O que nas almas
acende, e ainda um soneto (O fogo que na branda cera ardia). As
trovas que glosam o mote de D. Francisca de Aragão e a carta que as
acompanha têm significado ainda de maior intimidade, a carta quase
expressiva de amitié amoureuse entre o Poeta e grande dama.
Depois,
era o teor literário das composições de graciosa finura que
implicava, da parte das damas a quem eram dirigidas, educação que
lhas esclarecesse e fizesse saborear. Acrescia a isto seu convívio
com a Índia: são aristocráticos os nomes dos seus convidados para o
banquete de trovas. Um deles — João Lopes Leitão — figura na Lírica
escrita em Lisboa e interessaria ao Poeta, porque também não era
alheio às Musas, e foi o único que em verso protestou contra a troca
de iguarias por trovas naquele poético ágape...
Neste covívio palaciano, teria Camões
tomado amores que, pela desigualdade dos estados, de que mais de uma
vez se queixa, tivessem provocado a perseguição de pai fidalgo ou
até de irmão régio, que o desterrasse? Atribuem-se-lhe vários
desterros, sendo um para Ceuta, onde se bateu como soldado em
combate que lhe custou a perda do olho direito. A tal perda se
refere na Canção Lembrança da Longa Saudade. Por quem foram tais
amores? Por Natércia? Havia três desse nome, contemporâneas do
Poeta. Pela infanta D. Maria, irmã de D. João III? Não seria a
primeira dama de sangue real que se apaixonasse por um poeta, e, se
esta o fizesse, encontraria justificação em sua consciência, dada a
grandeza genial do enamorado, e dada a amargura duma vida de sempre
noiva, a cada passso decepcionada por casamentos desfeitos pela
própria enormidade do dote — que o irmão parecia querer evitar que
saísse de Portugal...
Mas ponhamos de parte a congeminação,
visto que não poderíamos transitar do recanto nevoento das suspeitas
da fantasia para a realidade dos factos esclarecidos. Cumpre,
todavia, notar que as suspeitas as suscitam os sonetos em que o
Poeta se refere ao alto lugar em que pôs o pensamento, perante o
qual reconhece em si tal baixeza, que cuidar nele é grão despejo e
mais de uma vez protesta contra a humana natureza, que faz entre os
nascidos tanta diferença e lamenta que a Fortuna desiguale os
estados...
As Cartas são outra prova de que o
Poeta, mesmo nas horas nocturnas de libertinagem, entre a taberna do
Mal Cozinhado e as acolheitas das Ninfas de água doce, não tinha,
como já foi suposto, convivência que possa lembrar a de Villon, de
marginais a quem a forca de perto espreitava. Aquele a quem escreve
a Carta III, refaz-se, em suas terras de Coimbra, dos desgastes da
boémia lisboeta; diz-se-lhe enfadado do isolamento campesino, e
Camões responde-lhe, depois de lhe descrever — e que realista o
humorismo com que o faz! — o que havia de ridículo nos indivíduos
que encontraria nas acolheitas: "Como vos parece, Senhor, que se
pode viver entre estes, que não seja milhor essa vida que vos
enfada, essa quietação branda, como um dormir à sombra de uma árvore
e ao tom dum ribeiro, ouvindo a harmonia dos passarinhos, em braços
com os Sonetos de Petrarca, a Arcádia de Sannazzaro, as Éclogas de
Vergílio, onde vedes aquilo que vedes? Se a vós, Senhor, essa vida
vos não contenta, vinde-a trocar pela minha, que eu vos tornarei o
que for bem. E não vos esqueçais de escrever mais, que ainda me fica
que responder. Cujas mãos beijo."
Este amigo, que tem terras em Coimbra,
que é certamente também leitor dos poetas citados, porque de outro
modo Camões lhos não nomearia, que sabe traduzir o latim que o amigo
lhe cita, que pode compreender as alusões a Celestina e Calixto, da
célebre tragicomédia de Rojas, e não desconhece as figuras clássicas
da formosa Helena e da casta Lucrécia, será porventura o mesmo a
quem é endereçada a Carta IV. A este igualmente o Poeta o trata por
senhor, o inculca apto a traduzir-lhe o latim que lhe cita e
fala-lhes das maças de Hércules . . . E no momento dos cumprimentos,
diz-lhe: "O Senhor António de Resende beija as mãos de V.M. e o
mesmo faz o Senhor Pedro Ribeiro Serpe." Todos os requisitos sociais
de um nobre senhor! E, todavia, é Camões que no-lo inculca membro
daquela camaradagem de Marialvas arruaceiros, a que também se
associa o filósofo João de Melo. Declara-lhe o Poeta o perigo que
todos correm: "Dizem que é passado nesta terra um mandado pera
prenderem a uns dezoito de nós; e porque nestas pressas grandes sem
vós não somos nada, sabei que deste rol vós sois o primeiro, como
sempre o fostes em tudo. A razão dizem que é por um homem fidalgo
que dizem que foi espancado uma noite de são João pelo Senhor João
de Melo, e ele saberá se é assim."
Eis os companheiros de Camões. Desciam
das salas dos Paços da Ribeira, onde platonicamente ou à maneira de
Petrarca galanteavam as damas de alta estirpe, para as damas de
aluger onde se encontravam com a fauna humana objecto de desprezo e
da sátira do Poeta. Os pés de Camões patinhavam na mesma lama dos da
sua camaradagem, mas sente-se-lhe, ao confessá-lo, a palpitação das
asas que em breve o libertariam...
O Poeta, na verdade, nessa estouvada
estúrdia, ferira numa rixa um criado do Paço Real — Gonçalo Borges —
e em tarde de procissão do Corpo de Deus. Preso no Tronco da cidade,
ali passou alguns meses, ao fim dos quais, obtendo que o agredido,
que ficou sem aleijão, lhe perdoasse, não lhe foi difícil conseguir
de D. João III o pusesse em liberdade, tanto mais que se propunha
servi-lo na Índia. A Carta de Perdão data, como dissemos, de 1553. A
partida para a Índia é de um ou dois anos depois.
Da Índia, o Poeta escreve epístola a
um amigo e nela lhe exprime a alegria dessa largada: "Enfim, eu não
sei, Senhor, com que me pague saber tão bem fugir a quantos laços
nessa terra me armavam os acontecimentos, como com me vir para esta,
onde vivo mais quieto que na cela dum frade pregador."
Está nitidamente posta de manifesto a
voluntariedade da oferta a D. João III de serviços de soldado na
Índia. Com o desejo de mais facilmente obter a Carta de Perdão,
convergia o interesse da libertação moral a que se refere. O ser a
promessa da largada para a Índia facilitadora do perdão régio, não
lhe dá, porém, carácter de condição da liberdade e, como tal,
forçadamente suportada, segundo o Poeta acentua.
NO ORIENTE
Pelo Oriente a vida de Camões é uma
montanha-russa, com suas transitórias subidas, mas com suas bem mais
demoradas depressões e descidas. Da viagem marítima, fixou-lhe a
memória, comovida do espanto e sonho de outras bem opostas
realidades, a tempestade do cabo da Boa Esperança, descrita na
elegia O Poeta Simónides, ensaio — dir-se-ia — para a que havia de
descrever na travessia do Índico, em Os Lusíadas. Mas quem, na
largada para a vida aventurosa de guerreiro, nela se iniciando com o
ataque ao rei da Pimenta, ao facto alude sem a mínima emoção de
entusiasmo; quem, na mesma elegia, apenas mostra aspirar à vida dos
lavradores bem aventurados, não apenas como desprendida de cuidados,
como a sonhavam os poetas contemporâneos, mas como condição de
enriquecimento do espírito, pois podia, lendo, conhecer
As causas naturais de toda a cousa...
não parece muito tentado pela glória
militar, posto que, não sem orgulho, se represente como tendo numa
mão a espada e noutra a pena...
A outra expedição ele se refere, e
esta ao cabo Guardafu. A descrição do ambiente físico — o monte
seco, fero, estéril, não é de tão rude e áspero realismo, senão para
mais avivar o seu contraste com a lembrança luminosa dos claros
olhos que derramam sua doçura para bem diferentes paisagens. Na
elegia anterior, o contraste era entre a tempestuosa aventura do
nauta e a doce calma do lavrador bem aventurado — que podia ler e
estudar. Agora é entre a aspereza do monte estéril e a paisagem
distante que os claros olhos iluminam. Num e noutro caso, patenteia
Camões que não é a guerra que o tenta, e deixa adivinhar que o mais
cedo possível dela se libertaria.
Com efeito, o pouco de sua vida no
Oriente nos chega ao conhecimento não são feitos militares nem
frustradas ambições de mando. De mais preciso e concreto, uma
situação de que um injusto mando o demitiu — e por ventura a de
provedor dos defuntos e ausentes em Macau. Da sua nomeação para a
feitoria de Chaul, em que, afinal, não foi provido, temos
conhecimento pelo alvará de Filipe I de Portugal, em 1585, passado a
Ana de Sá pelos serviços do marido e do filho, ambos mortos. De quem
recebeu Camões esta nomeação? Do vice-rei conde de Redondo, tão
amigo do Poeta? Não se sabe. O que se não ignora é que essa amizade
se patenteia na ode — Aquele único exemplo... — que o Poeta lhe
dirige, para obter sua protecção para com o Dr. Garcia de Orta, seu
amigo, que lhe publica no "Prefácio" do célebre livro Colóquios dos
Simples e Drogas e Coisas Médicas da Índia, e ainda as trovas a
favor de seu outro amigo, um dos convidados para o banquete acima
citado, Heitor da Silveira.
Outro magnate em cuja estima ele
parece confiar é D. Leonis Pereira, a quem dirige a elegia — Depois
que Magalhães... — a favor do escritor brasileiro Pêro de
Magalhães Gândavo, autor do livro História da Província de Santa
Cruz.
Como se vê, o Poeta tinha no Oriente
um ambiente social que, bastante a exaltar-lhe os méritos, a
abrir-lhe, com louvores repetidos, a confiança em sua atenção,
quando se lhe dirigia, não era suficiente a erguê-lo acima da
existência difícil, oscilando entre a suficiência desambiciosa e a
pobreza incapaz das humilhações de solicitante. As oitavas ao
vice-rei D. Constantino de Bragança serão uma solicitação indirecta,
quando lhe exalta o valor contra a opinião do vulgo errado? Não
parece. E tão viva é a sua repulsa contra o conceito de doce
adulador, sagaz e agudo, que lhe ocorre a suposição de que como tal
seja tomado: Dirão que com lisonja ajuda peço / Contra a miséria
injusta que padeço. A verdade, porém, é que os exemplos que invoca
são os de grandes figuras morais que o povo caluniou e maltratou,
como pensa suceder naquele momento contra D. Constantino...
Pedido ao conde de Redondo, em seu
favor, fez um, mas esse humorístico, posto que em oportunidade
dramática. Veja-o o leitor na trova em que lhe pede em trocadilho
que, antes que se embarque, o desembargue da prisão em que por
dívidas se encontrava.
Ao fim de 16 anos, aproximadamente, de
uma vida que ele pôde chamar sem grande exagero a mais desgraçada
que jamais se viu, regressa a Portugal. Regressa sem recursos, nem
para o pagamento da viagem, nem para, na ilha de Moçambique, poder
esperar pela nau em que embarcasse. Diz Diogo de Couto que ali o viu
vivendo de amigos, compondo o seu Parnaso, livro que qualifica de
muita erudição, doutrina e filosofia, e lhe roubaram, e dando a
última demão às suas Lusíadas.
Parte para Portugal em 1569. Como
única riqueza, trazia Os Lusíadas, que ele mesmo refere (canto X,
128) ter salvo do naufrágio em que perdeu uma moça oriental, a que
vinha muito ligado e a que dedica o soneto Alma minha gentil, que te
partiste, a crer no texto do manuscrito da Biblioteca Municipal do
Porto, que se julga ser a VIII Década perdida por Diogo de Couto.
Também parecem inspirados pela mesma saudade os sonetos Ah! minha
Dinamene! assim deixaste, O céu, a terra, o vento sossegado . . ., e
Quando de minhas mágoas a comprida.
A vida em Portugal não lhe correu mais
propícia. Um admirador do seu génio, todavia — D. Manuel de Portugal
—, é exaltado pelo Poeta como o Mecenas a quem Os Lusíadas devem a
sua publicação. Ele lhe facilitaria, por ventura, a tença de 15.000
réis anuais com que, a título precário e depois de somar os serviços
por ele prestados no Oriente e os que viria a prestar no futuro à
suficiência do poema, D. Sebastião entendeu dever pagar o tesouro do
Luso, que assim qualificou Cervantes Os Lusíadas.
Talvez que a soma fosse suficiente, se
a nossa burocracia, por imprevisto milagre das Musas, fosse, para o
Poeta, de prontidão e diligência que nunca esteve nos seus hábitos,
e se Camões, por ainda mais imprevista surpresa da sua natureza de
poeta, em vez de continuar tecendo belos sonhos líricos, passasse a
ocupar-se de contas de economia doméstica. O que de certo se sabe é
o que nos dizem os dois únicos contemporâneos que atentam em sua
existência nos últimos anos — Diogo de Couto e Diogo Bernardes. O
primeiro informa-nos da situação em que o encontrou na ilha de
Moçambique — comendo de amigos, que ainda lhe custearam o regresso a
Lisboa. Da sua vida em Lisboa, testemunha ainda, na Década VIII
publicada: "Em Portugal morreu este excelente Poeta, em pura
pobreza". Por seu turno, Diogo Bernardes, no soneto que lhe consagra
e Soropita publica na 1ª edição de Rimas, em 1595, escreve:
Honrou a Pátria em tudo. Imiga sorte
A fez com ele só ser encolhida,
Em prêmio de estender dela a memória.
Como se vê, não foi necessário grande
dispêndio de fantasia para criar a lenda dum Camões na miséria,
apenas aliviada pelas esmolas que seu pobre escravo jau lhe
angariava. A miséria mendiga apenas exagera, não cria, a pura
pobreza de que nos informa Couto...
O VALOR DA LÍRICA
A Lírica de Camões, publicada em 1ª
edição com o título de Rimas (ou, na ortografia antiga — Rhythmas),
é a realização, em plenitude e na sua máxima altura, de tudo quanto
de mais delicado, profundo e belo se sonhara ensaiar na poesia
anterior. A lírica dos cancioneiros medievais, enriquecida em temas
e propósitos, aperfeiçoada em expressividade e métrica no
Cancioneiro Geral, de Garcia de Resende, ficava ainda a grande
distância da profundidade e variedade de pensamento, das graças
formais e poder de sugestividade, no movimento como na música
verbal, na misteriosa magia da poesia camoniana. O contacto do Poeta
com seus pares latinos — Virgílio, Horácio e Ovídio —, com os
italianos — Petrarca, Sannazzaro, Bembo e Bernardo Tasso —, com os
poetas castelhanos — Manrique, Bosean e Garcilaso — não lhe sufocou,
antes lhe excitou o génio próprio, porque tudo assimilou como
substância do seu próprio pensar e sentir, de tudo fez expressão das
próprias vivências; toda esta variedade, como o faz um rio aos seus
afluentes, ele a submeteu ao seu fluir vital, em lampejos dir-se-ia
que produzidos pelo mesmo Sol, que num mesmo universo, a todos
cobria de sua luz e animava de seu calor.
Repare o leitor no tema da fonte, dos
cancioneiros medievos, e compare qualquer das canções medievais com
as suas cantigas: Lianor vai pera a fonte e Na fonte está Lianor. Na
primeira, o Poeta, enamorado da forma e da cor, dá-nos da namorada a
figura plástica e colorida. Presença corpórea e pormenores do
vestuário. E a por como expoente a graça que tudo penetra e
ultrapassa, os versos: Chove nela graça tanta, / Que dá graça à
fermosura. Chove: a graça vem do Céu .
...Na segunda, é o estudo dos
movimentos do espírito, seu estado, suas reacções emotivas. A
interrogação é persistente e ansiosa: Vistes lá o meu amor? Mas eis
que lhe dão novas do Amado e logo a emoção de alegria, qeu lhe não
cabe na alma, rebenta e desborda, convertida em pranto — que é a
expressão natural da alegria extrema. Imprevistos pormenores na
descrição do exterior; inéditas minúcias surpreendidas na vida
interior.
Com Petrarca, os petrarquistas de
Quatrocentos e Quinhentos aprenderam a intelectualizar as emoções
amorosas, a surpreender na dialéctica dos contrastes os paradoxos da
vida íntima, nos conflitos entre os anelos da alma e os impulsos do
instinto, entre a razão e o sentimento, entre os próprios desníveis
do mesmo sentimento. Camões, como todos os poetas seus
contemporâneos, molda pela de Petrarca a expressão de tais
conflitos, mas em quase nenhum dos sonetos em que o imita deixa de
imprimir a dedada do seu génio ou das suas vivências pessoais. Um
dos sonetos sob tal aspecto mais significativos é Alma minha gentil,
que te partiste, quando confrontado com o imitado soneto de
Petrarca, que transcrevemos e traduzimos:
Anima bella, da quel nodo sciolta
Che piú bel mai non seppe ordir Natura,
Pon dal ciel mente alla mia vita oscura,
Da si lieti pensieri a pianger volta.
La falsa opinion dal cor s'é tolta
Che mi fece alcun tempo acerba e dura
Tua dolce vista: ormai tutta sicura,
Volgi a me gli occhi, e i miei sospiri ascolta.
Mira 'l gran sasso donde Sorga nasce,
E vedravi um che sol tra l'erbe e l'acque
Di tua memoria e di dolor si pasce.
Ove giace 'l tuo albergo e dove nacque
Il nostro amor, vo' ch'abbandoni e lasce
Per non veder ne' tuoi quel ch'a te spiacque.
In M. Soneto, 37
(Tradução: Alma bela, solta daquele nó
/ Que nunca mais belo a Natureza soube urdir, / Lança do Céu uma
lembrança à minha vida obscura, / De tão alegres pensamentos volta
às lamentações. / Foi extirpada do coração a falsa opinião, / Que me
tornou, por algum tempo, acerbo e duro / Teu doce olhar; hoje,
plenamente segura, / Volve para mim os olhos e escutas os meus
suspiros. / Atenta na grande fraga de onde nasce o Sorga, / E aí
verás alguém que só por entre ervas e águas / De tua memória e de
dor se nutre. / O lugar onde está a tua casa e onde nasceu / O nosso
amor, quero que abandones e esqueças / Para não veres nos teus o que
te desagrade.).
É, de toda a evidência, o soneto camoniano de mais delicados
sentimentos que o do florentino. "Em Camões, uma religiosa e casta
timidez na evocação da melindrosa amada celestial, uma condicional,
não expressa no soneto de Petrarca, atenuando a possível
irreverência de pedido:
Se lá no assento etéreo onde subiste,
Memória desta vida se consente . . .
Depois a humildade de quem pede — não
te esqueças — em vez da exigência senhoril — quero que abandones e
esqueças. Mais abnegada e misticamente amorosa também a atitude do
português: não o preocupa apenas viver cá na terra sempre triste (pesamento
dominante no florentino); deseja que a amada repouse lá no Céu
eternamente. E o fecho do soneto, onde a técnica exige que refulja o
conceito principal, ao contrário de Petrarca, que o carrega no
lastro das coisas da vida, dá-lhe o nosso lírico asas que estremecem
em desejos de místicas núpcias no Céu.
Um crítico italiano — Pallizzari —, no
confronto dos mesmos sonetos, sente igualmente a superioridade do
camoniano.
Mas o Poeta tinha o seu dramático
mundo inconfundível, que não podia ser sentido no mesmo grau
emotivo, nem expresso por análogas palavras ou imagens. De aí as
suas Odes, como a que começa: Pode um desejo imenso . . . ; as
Elegias, como O poeta Simónides, falando, ou as Canções, como Junto
dum seco, fero e estéril monte . . . (A região africana de Guardafu).
Nesta, os seus dias são lembrados como de dor e de ira cheios; o
Poeta não teve contra si apenas a vida, o sol ardente, os mares
grossos, férvidos e feios, senão também os seus pensamentos, que,
sendo meios para enganar a própria natureza, apenas lhe evocavam o
que mais podia dobrar do mal a aspereza. E como era necessário,
foram novas as expressões, inéditas as imagens em que ele pôde
captar a trágica realidade:
Aqui a imaginação se convertia
Num súbito chorar e nuns suspiros
Que rompiam os ares.
Aqui, a alma cativa,
Chagada toda, estava em carne viva.
................................
Não tinha parte donde se deitasse
Nem esperança alguma onde a cabeça
Um pouco reclinasse, por descanso . . .
E, na suposição de que sua triste voz
pudesse tocar os ouvidos angélicos, subitamente, o alvoroçado surto
da esperança visionária, lhe perturba o movimento do discorrer:
Ah! Senhora! Senhora! Que tão rica
Estais, que cá tão longe, de alegrias
Me sustentais com doce fingimento!
..................................
Entre as elegias, lembro ainda a que
começa depois do soneto dedicatória:
Divino, almo Pastor, Délio dourado.
O Poeta, pensando nos desconcertos do
Mundo, parece chegar a conclusões que negam a Providência, que crê
incompatível com tais desconcertos, em que a injustiça predomina. As
oitavas que ao problema dedica, são a meditação mais audaciosa a
que, em matéria religiosa, foi dada expressão poética. Mas o seu
Autor, que na elegia Se quando contemplamos as secretas . . ., sente
a existência de Deus na ordem do Universo, sente-a na verdade que
nas cousas anda, / Que mora no visíbil e invisíbil, e, para juntar à
crença em Deus a crença em Cristo, não se contenta de opor, às
dúvidas de todos os treze versos anteriores do soneto Verdade, amor,
rezão, merecimento, a absoluta afirmação do último: Mas o melhor de
tudo é crer em Cristo. A frase é, na verdade, mais imperativa do que
persuasiva. Em toda esta elegia se esforça o Poeta por dar evidência
a todos os pormenores da cega injustiça, da gélida ingratidão, da
crueldade desumana a que Cristo é sacrificado, e insere versos deste
teor:
Senhor! Que amor foi este tão crecido,
Que tão dobradas forças faz singelas
Lá de tão alto, baixo e abatido?
Ó preciosas chagas, roxas, belas,
Luminárias da noite tenebrosa,
De toda luz privada das estrelas!
As chagas de Cristo, os sofrimentos
incomparáveis representados, o maior sacrifício feito pela
Humanidade, são, na noite tenebrosa do Universo e da Vida,
luminárias incomparáveis!
Eis os dois pontos em que Luís de
Camões — o único poeta do seu tempo que em Portugal, ao contrário de
Miranda, que escreve:
Sofistas me são defesos
Com seus enganos e cismas;
De fé, que não de sofismas,
Quer Deus os peitos acesos;
e ao contrário de Gil Vicente, que se
nega a penetrar funduras do pensamento religioso — ousa duvidar,
ousa discutir, até que lhe segurem a fé herdada de seus
antepassados, estes dois pontos de apoio: ordem do Mundo, que lhe
assegura a existência do Ser que a estabelece; as chagas de Cristo,
tão grande sacrifício para a salvação moral do Homem, que só lho
pode explicar uma dádiva do amor de Deus.
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