Entre o título – Dormências -
e o corpo do poema, um ícone: uma pintura de um pinto
italiano seiscentista, Ticiano, denominada: Noli me tangere,
algo como: não me toques. Cristo ressurreto se apresenta a
Maria Madalena, que a princípio não o reconhece.
Reconhecendo-o, arroja-se aos seus pés, tentando tocá-lo. E
Jesus lhe diz aquelas palavras, para significar que Elenão
mais deveria ser tocado como imagem física, mas como imagem
espiritual, dando a entender que todo aquele que quiser
tocar a Jesus pode fazê-lo, bastando para isso querer com o
coração. Jesus, depois de ressurreto, já não tem uma imagem
localizada, embora possa tê-la: onipresente Ele é e se pode
apresentar, e se apresenta, uno, inteiro, a cada um daqueles
que o amam. Passando por uma dormência de três dias, renasce
(?) mais pleno, mais livre, mais poderoso do que nunca, do
que sempre. E pode renascer num coração dormente que o
busque com sinceridade. E será mil, milhões, bilhões,
infinitos, e será UM na glória do supremo mistério do
Amor. Uma sementinha de assa-peixe inunda de arbustos um
grande campo. O Homem que assou os peixes para os seus
discípulos também pode inundar o mundo com cópias unas de si
mesmo eternamente UM. O Assa-peixe, o único que pode assar,
calcinar a animalidade emocional dentro de nós, de cada um
de nós.
O poema apresenta um estrato
visual que tem de ser levado em conta em seu entendimento.
Três alinhamentos: esquerda, meio, direita.
Uma única estrofe alinha-se
pela direita: a última, aliás, a penúltima, pois o
ponto-final encerra um verso, uma estrofe, que não foi
escrito, mas que já está escrito em dormência.
E aquelas palavras minhas,
de século-semente,
soterrada palavra quando
uma sementeira foi plantada e devastada,
ínvia vereda, mulher-menina:
eu sei,
lá debaixo,
no fundo daquele canteiro,
de um velho canteiro,
quase caindo pelos esteios
e seios,
resta uma flor
,
que das tuas lágrimas,
do teu vergel,
brotará semente
:
e dos meus olhos ermos,
a palmeira,
o cacto
.
|
O tu do poema é uma femina
anteriormente apresentada em sua ignorância das coisas e
saberes do homem do mato:
É
assim mesmo, minha amiga,
a mata, a floresta, os chãos nossos de cada dia,
que você, praciana, da cidade grande,
imaginara melancias de máquinas japonesas
de supermercado e computer;
Esse mesmo tu aparece agora
com uma feição nova: amadureceu, embora se encontre, ainda,
um tanto ignorante de sua mesma seidade. A consciência do
Poeta, foi-se fazendo, foi-se fortalecendo, até chegar o
momento em que ele sabe de um saber vago e forte, que será
ela, despida de atavios da circunstância que o acompanhará
em sua grande viagem. Ela, na verdade, será a sua Viagem. E
podemos chama-la de Sofia, de Sabedoria, de Noivo, de
Esposo... Ela(e), o seu Alfa e o seu Ômega. Um Alfa que
nunca teve princípio, um Ômega só fim. Finalidade. Caminho.
Meta a que nunca se chega por caminho referto de novidades e
de glória...
O alinhamento pela direita
mostra o Poeta lutando com sua razão, que tenta
condicioná-lo às coisas práticas do mundo. A consciência
labuta diante do factual, tentando ver o mais além das
coisas. A anima do Poeta tenta superar a si mesma, deixando
de ser meramente receptiva e reativa.
O poema, em sua maior parte,
alinhado pela esquerda, mostra o supremo esforço para,
partindo-se do factual para se chegar a um mais além, se
este houver.
Mas na penúltima estrofe o
Poeta desloca os cismares baseados na razão, no senso comum,
para a coluna da direita e ali passa nela um pito de gente
amadurecida pelo refletir, pela força de dormência
despertada nesse seu mesmo refletir.
Tentemos agora tentar
apreender a riqueza da penúltima estrofe, examinando-a mais
detidamente.
A razão, agora, ganha um novo
status, e passa a ser Razão: uma razão iluminada pela fé.
Por ínvias veredas passou o Poeta, soterrando sementes de
sabedoria que lhe foram apresentadas diante de seu viver.
Mas agora, ele sabe, de um saber irretorquível que de todos
os conhecimentos que angariou, um permanece importantemente
em dormência de decisão de despertar. E olha e vê: já não é
a semente, mas uma flor, que, teimosa, desabrocha por
debaixo de tantos soterramentos, de tantas verdades que
vieram e se foram, de tantos filosofares que ofuscaram, e
cegaram e já não mais são o que eram, o que pareciam ser.
Não, não é tarde para assistir a esse espetáculo
maravilhoso: a flor desabrochando no fundo de um velho
canteiro, de um velho quebrador de pedras. E uma resistiu, e
não se quebrou, bigorna que quebrou muitos martelos... E
quebra! E a parábola do semeador ganha uma nova feição, mais
própria, mais íntima, mais singular. E o quadro de Ticiano
ganha um novo sentido, uma nova significação para o Poeta,
para o homem que se escuda atrás do Poeta.
Os cuidados da vida
desviam-nos, freqüentemente, dos caminhos da Vida. Mas algo
fica decantado, dormente, à espera do momento-emoção
adequado. Glória a Deus por sua santa providência!
E esta flor – peregrina
Edelweiss - explodirá em semente, a esperada, a única. E os
olhos do Poeta, desertos de esperança, virão nascer no imo
do seu coração a palmeira, ereta, que busca os céus, o
cacto, resistente, que, cheio de espinhos, perseverará e
assistirá ao eclodir de um novo tempo para si, para sua
alma, para seu espírito. E depois disso, o ainda por
escrever, e bem lá longe, no longe de nunca chegar, o
ponto-final (?). O Alfa e o Ômega...
A penúltima estrofe sintetiza
todo o Poema, mas vamos examinar agora alguns momentos
marcantes do caminhar do Poeta.
Era uma vez o Vento semeador
com uma tonelada de sementes
debaixo do braço.
Destino: »» terra de chã.
Missão: »» propagar algumas,
talvez uma,
uma só seria
suficiente.
E as sementes foram ao léu lançadas.
E o Espírito de Deus pairava
sobre as águas. Tudo em potência. E havia sementes e
sementes por semear: universos e universos, micros e
macros... Mas o Destino, o ponto de chegar era um: terra de
chã, de gente chã, lhana, simples. E havia uma Missão:
propagar algumas, talvez uma, de cada espécie e a
ordem-mantra-fiat: “Crescei e multiplicai-vos”. E as
sementes dessa uma, adâmica, foram lançadas ao léu do para
além do Éden... E temos o que temos...
E as sementes tiveram, cada
uma, o seu destino, dependendo do seu grau de dormência, de
apetência. E umas ávidas logo se perderam no emaranhado do
mundo. E umas foram arrebatadas pelo Devorador. E outras, de
cismar mais profundo, resistiram às intempéries do luxo, do
lixo, da lascívia, com grande esforço e despersistência. Mas
muitos são os laços, e os atrativos, e os artifícios do
mundo, do imundo...
Mas muitas são as sementes,
para que não haja a mínima possibilidade de fracasso:
O problema
— ou a solução, ângulo de olhar, mero —
é que as sementes são muitas, muitas mesmo
(cinco milhões, dizem, de-cada-vez,
é a do homem-semente),
E o homem veio e recebeu a
ordem: Sê mente! Mente pura, singela, só mente, sem
condicionamentos, sem aderências (des)necessárias. E este o
desafio do homem: ser mente, ser consciência pura, límpida,
cristalina. Para poder participar, como convidado, da grande
Festa...
Mas paremos por aqui que muito
longe estão indo as ilações, e nosso objetivo é nos atermos
ao texto. O problema, caro Poeta, e você sabe muito bem
disso, é que há coisas que provocam em nós, leitores de
afinidades, ecos que despertam vivas dormências...
Vamos, agora, examinar o eixo
do Poema. A coluna do meio: in medio est virtus. A primeira
coluna do meio, já a examinamos em seu conteúdo essencial.
Passemos, portanto, para a segunda:
[é um:
um-um,
perfeitamente um,
perfeitamente vida,
um,
uno
um-Eu,
um-Tu, também pode ser.
— Quem?! —]
O que é um? As sementes, todas
as sementes - e o homem é uma semente de semente para
semente - pois trazem em si em programação finíssima a
unidade do ser, em todos os seus aspectos essenciais. Uma
semente de algaroba tem dentro de si uma algaroba inteirinha
e a possibilidade de gerar em cadeia infinitas algarobas...
Mas a semente – qualquer semente – é antes de tudo, o um, o
UM. Cada semente, por este mistério que só nos cumpre
contemplar, é ela mesma (assim como todas as outras), o
mesmo UM, que a tudo gerou a partir de si mesmo, num doar-se
pleno de Amor. Cada homem é um, único, trazendo dentro de si
num milagre que só a Deus compete conhecer, todo o universo
que o rodeia. Dentro de cada homem, o universo com todos os
outros homens, com todos os outros seres, com todos os
planetas, galáxias, transgaláxias... per omnia saecula
saeculorum... Porque todo aquele que goza do apanágio de ser
um, tem de, necessariamente, ter em si tudo o que há, para
que nada se perca. O um, sendo único, tem de ser todos os
outros. E todos os outros, sendo um, cada um, tem também de
trazer em si todos os demais. Mistério dos mistérios!!! Quem
projetou tudo isso, para nunca se perder inteiro em nenhuma
parte de SI mesmo, fez com que assim fosse. QUEM? Poderíamos
chamá-lo de Supremo Arquiteto do Universo. Universo: o um
que é verso. Verso, o outro lado, o diverso. Verso, canto,
palavra, Palavra. Universo: o verso que é um. Na própria
palavra está codificada a Grande Senha... Eu quero chamá-lo
neste momento de despertar de dormência, de AMOR.
Continuemos no exame do eixo:
Não, não,
o “plano”,
o plano é outro!
E tudo o que foi feito tem um
destino, tem uma missão, é uno, e obedece a um plano: o
universo não é fruto do acaso, mas de uma finalidade: quem o
fez sabia muito bem porque o estava fazendo, por que o
estava fazendo, para que o estava fazendo. Todos nós, que
trazemos em nós a marca do fabricante, que é o supremo e
único privilégio de sermos um, fomos criados por que ELE
tinha um objetivo: a saída de si mesmo, a volta a si mesmo.
A saída, já que o UM é um e não pode deixar de ser um,
jamais se deu, em verdade. A volta, portanto, não existe...
Viajamos, sonho perfeito do UM na sua glória. Somos eternos,
se olharmos para a nossa origem, que nunca existiu, somos
eternos, se olharmos, para o nosso destino, que nunca
alcançaremos. Este o supremo presente, dom, do
UM para o seu Filho. É por isso
que o UNGIDO definiu-se, não como destino, ponto de chegada,
meta, mas como Caminho, como Viagem. Fernando Pessoa sentiu
visceralmente o impacto dessa verdade, e acabou sucumbindo
diante dele. Meu irmão, viajamos seguros dentro de um plano,
de um aéreo plano... Aéreo, do Vento, do Espírito Santo.
Continuando no exame do eixo:
os pássaros momentaneamente fartos
com outras bolotas,
que finalmente:
fiat,
fiat silva!
Dentro da linha de análise
imposta pelo Poema, essa é uma estrofe complexa, dura de
roer. Já vimos que o pássaro é um Devorador, por natureza,
por destinação (?). Satanás é o grande devorador, o grande
arrebatador de uns, mas não há uns, só há um um, por
definição. Esse é outro grande mistério, que não ousamos
sequer tocar. As bolotas, nós sabemos, pela Palavra, era um
dos alimentos dos porcos. Chega um momento em que o
Devorador se farte? Em se fartando com outros porcos,
pessoas que ainda têm propensão para o luxo, para o lixo,
para a luxúria, deixa espaço para que uma consciência se
faça una, se sinta una, se saiba herdeira do Um. E nesse
momento sagrado sobre todos, faz-se uma selva, porque
contagiante é o novo nascimento. E faz-se de um Silva
(sobrenome como que tipificador da gente tupiniquim)
qualquer um Silva novo, renovado. Convertido. Agora ele sabe
para onde olhar, agora ele sabe o que buscar. E busca o
Caminho, e o Caminho lhe mostra a Verdade, e lhe insufla a
Vida, e ele se torna um com o UM, e começa a navegar mais
desimpedido no sagrado sonho do Amor... Sim, há um Plano
para todos os silvas deste mundo... Por isso o Poeta, ainda
no reino das bolotas, pergunta:
Algum Plano?
E responde, ainda mergulhado
na dúvida, que é próprio do palmilhar do caminho em busca do
Caminho:
— Parece!
E é dessa angústia de saber
sem saber, de não saber sabendo, que nascem pérolas como
esse Poema!!!
A coluna da esquerda vou
deixar para outros a palmilharem. Basta lembrar: é coluna da
esquerda, da mente analítica e evasiva. Com umas poucas
translações que obedeçam ao eixo-mestre, pode se chegar a um
bom resultado.
Recado para o Poeta:
Poeta, para mim é fácil
caminhar os seus caminhos, já que passei por eles, e neles
me encontro, à busca de uma maneira de encetar o Caminho...
E, Poeta, dentro da lógica perfeita do UM, nós o sabemos: só
pode existir um Caminho, porque tudo que no UM está, e tudo
está no UM, é um e um só. Sou-te. És-me. “E haverá um só
aprisco e um só Pastor.”