Carlito Azevedo
"Quero a profundidade da pele"
Entrevista/Carlito Azevedo
Carlito Azevedo se define como herdeiro do concretismo, do modernismo,
da poesia marginal e do surrealismo. Seu estilo, porém, é
pessoal. E, se dos grandes mestres assimilou a pletora de gêneros,
é dos poetas contemporâneos que vêm a identificação
de quem vive as angústias e venturas deste final de século.
O poeta reconhece a dívida geracional ainda não resgatada:
"Minha geração não avaliou exatamente a terrível
perda de Ana Cristina César, Paulo Leminski e Cacaso". O poeta Haroldo
de Campos saúda Carlito como um de seus herdeiros, ao que ele, modesto,
cita Valéry: "O importante não é o prêmio, mas
sim não ter feito por merecer". Para Carlito, que não se
alinha com as vanguardas, ousado é ser "absolutamente tradicional":
"Quando um autor escreve hoje um soneto, terá de se medir com Dante
e Shakespeare. Esta é uma ousadia muito maior do que partir para
um campo em que não há adversário". Em seu novo livro
Sob a noite física (Sette Letras), o desejo juvenil de ser pintor
reaparece em seus versos. As imagens que povoam seu imaginário surgem,
inspiradas, em seus poemas.
- Em As banhistas, seu ponto de partida era um quadro de Cézanne.
Neste livro, um dos poemas é dedicado à pintura de Vieira
da Silva. Qual o papel da pintura em sua poesia? A relação
da poesia de João Cabral com a pintura serviu de guia para você?
- Há aí um lado pessoal pois eu queria ser mais pintor
do que poeta. Mas ao mesmo tempo em que achava que não tinha talento
para a pintura, minhas tentativas poéticas recebiam apoio. Até
hoje, quando escrevo crítica, não gosto de escrever sobre
poesia, e sim sobre pintura, assunto com o qual me sinto mais à
vontade para dialogar. E, na língua portuguesa, quando você
pensa em um poeta falando sobre pintores, você tem que pensar em
João Cabral. Foi ele quem fez isso com mais radicalidade e talento.
Existem duas famílias de poetas: as que trabalham mais com a
imagem e as que trabalham com idéias mais fluidas. Por exemplo,
com o quadro Os jogadores de cartas, tanto é possível descrever
a imagem concretamente - as roupas, textura, as expressões - como
partir daquilo ali para idéias mais metafísicas. Eu não
quero ir além da imagem. Concordo com Oscar Wilde que diz que "o
mais profundo é a pele". A profundidade que quero é a da
pele.
- Vários de seus poemas trazem alusões à obra de
poetas: Cabral, Lautréamont, Drummond. Que relação
mantém com a tradição?
- Eu sou absolutamente tradicional. Até os anos 50, com as vanguardas,
com a idéia da poesia concreta, existia a idéia de que era
legal romper com a tradição. Este é o lado do modernismo
e das vanguardas com que menos me identifico. Acho mais ousado estar dentro
da tradição do que tentar criar do lado de fora. É
mais ousado quem tenta dialogar com uma tradição enorme,
pois terá que se medir com grandes criadores.
Quando um autor escreve hoje um soneto, ele terá que se medir
com Dante, com Camões, com Shakespeare. É essa uma ousadia
muito maior do que partir para um campo novo em que não há
um adversário. Gosto muito de saber que tenho uma família
no tempo e no espaço, com a qual dialogo constantemente.
- Por que suas poesias trazem tantas palavras em francês?
- Minha influência principal vem da literatura francesa, principalmente
de Apollinaire, Max Jacob e Pierre Verdi. A língua francesa teve
o privilégio de ter sido trabalhada no século passado por
quatro criadores fenomenais: Baudelaire, Rimbaud, Verlaine e Malarmé.
Com isso, ela entrou no século seguinte beneficiada, previamente
poética.
Quando estou escrevendo um poema, a música da língua francesa
é algo que ecoa e entra naturalmente em minha poesia. O verso já
vem em francês. Também vem um pouco do meu ofício de
tradutor de literatura francesa.
- O poeta Alexei Bueno declarou recentemente que "o panorama geral da
poesia brasileira neste momento é em grande parte dedicado a bagatelas
e insignificâncias como só talvez no período do neoparnasianismo
se tenha visto". A poesia brasileira para ele peca por falta de ambição
em relação a seus temas, frívolos demais na opinião
dele. O que você acha?
- Não concordo com este ponto de vista, pois é muito cedo
para se julgar qualquer coisa. Frívola também foi considerada
a poesia de Carlos Drummond de Andrade, de Mário de Andrade, e alguns
anos depois as pessoas perceberam que eles eram grandes criadores. Eu não
sou vigia da poesia alheia.
- Você acha que o momento é fértil para lançar
livros de poesia? Você identifica um perfil nesta nova linhagem de
poetas?
- Com certeza. As estréias poéticas, de 1990 para cá,
foram muitas e boas. Mas, ao contrário de outras épocas,
em que havia um tipo de poesia predominante, hoje, cada um tem seu estilo
e é bom que seja assim. A partir do momento em que você não
tenta imitar ninguém, a variedade e a multiplicidade são
muito mais enriquecedoras. Como diz Arnaldo Antunes, em uma de suas músicas:
"riquezas são diferenças". A riqueza do momento está
na diversidade de poéticas.
- Na orelha de seu novo livro, Sob a noite física, há
uma citação de Haroldo de Campos, que o identifica como um
dos seus "herdeiros". Você se sente à vontade com essa identificação?
- Sou herdeiro do concretismo como sou do modernismo, da poesia marginal
e do surrealiasmo, pois, tendo vindo depois deles, não ignorei o
legado de nenhum.
Aproveitei de cada um o que queria e, se um deles me considera um herdeiro,
tenho certeza de que, se isso é um elogio, acho que não fiz
por merecer. Paul Valéry diz o seguinte: "o importante não
é o prêmio. O importante é não ter feito por
merecer".
- O legado do concretismo continua vivo?
- Vivo e transformado. Lendo o novo livro do Antônio Cícero,
Guardar, você vê como ele metabolizou bem a herança
concretista e, ao mesmo tempo, conseguiu trabalhar aquilo, com coloquialidade,
com seus estudos de filosofia e literatura grega. O estado puro do concretismo
só foi possível nos anos 50. Depois, várias questões
que vieram com o passar do tempo, como o sexo e a droga nos anos 70, foram
deixadas de fora da poesia concreta. Um poeta que ignora as novas informações
e fica restrito a um conjunto de temas não está vivendo seu
tempo com a intensidade que ele exige.
- A poesia é para você um exercício solitário
ou algo a ser vivido e compartilhado em grupos, escolas, movimentos?
- É solitário, mas o diálogo entre os poetas da
mesma geração é fundamental. Não consigo gostar
de um poeta de qualquer outro século como gosto dos do meu tempo.
Se nos outros eu encontro a perfeição, a maestria e a
exuberância, a aflição do cotidiano, dos corpos na
cidade, isso só encontro nos poetas contemporâneos, como,
por exemplo, Antônio Cícero, Arnaldo Antunes, Paulo Leminski
e Ana Cristina César.
- Do que você mais sente falta no ambiente literário no
Brasil?
- Sinto falta de pessoas. Minha geração ainda não
avaliou exatamente a terrível perda de Ana Cristina César,
Paulo Leminski e Cacaso. Os três, que morreram muito jovens, poderiam
até hoje estar publicando livros e críticas e participando
de debates de poéticas. É como uma seleção
perder três titulares.
(in Caderno Idéias, Jornal do Brasil, 14.12.96)
Nota do JP:
Carlito Azevedo é um dos poetas mais+mais, a Lista
dos 20!
Leia obra poética de Carlito Azevedo
|