Jornal de Poesia

 

 

 

 

 

 

 

Carla Rodrigues


 


Intensamente Pagu


 


 

A jornalista e ativista política Patrícia Galvão, a Pagu, entrou para a história como uma mulher corajosa, forte, libertária, revolucionária, inteligente e sensual. O livro "Paixão Pagu: uma autobiografia precoce" (Agir Editora, 130 págs.) revela uma mulher que, mais do que tudo isso, carregava dor e angústia de quem deixou textos como esse: "Eu procurava. Sem saber o quê. Sem nada esperar. Alguma coisa que me absorvesse com certeza. (...) Tinha momentos de grande enternecimento junto de meu filho. Mas eu repelia esses momentos. Eu sofria muito, desconhecendo a causa desse sofrimento. Uma noite, andei pelas ruas vazias, chorando; depois, muitas outras noites." Seu relato é tão intenso que a carta datilografada para o segundo marido levou anos para ser lida pelo seu segundo filho, Geraldo Galvão Ferraz, organizador do volume em que torna público o texto que recebeu do pai nos anos 70. Escrito por Pagu em 1940, quando ela tinha apenas 30 anos, a autobiografia é precoce, sim, mas é principalmente carregada da mesma densidade com que Pagu viveu seus 52 anos.

"A lenda consagrou uma Pagu irresponsável, 'porra louca' e exibicionista. O que se lê aqui, verdade confessada, desmente a imgem criada pelo preconceito e pelo sensacionalismo", diz Geraldo na apresentação do texto da mãe. De fato, "Paixão Pagu" é um livro de muitas revelações impressionantes. A primeira delas é saber que o filho Geraldo conviveu anos com o texto sem conseguir chegar ao final da sua leitura. Não é para menos. São poucas páginas, mas todas muito intensas. A comunista radical expõe todo o seu desencanto com o partido e com as causas nas quais tanto se engajou. A mulher que parecia uma explosão de sensualidade confessa só ter conhecido o prazer depois da primeira maternidade, portanto quase 10 anos após o início de sua vida sexual. A mãe de Rudá, seu primeiro filho, admite todas as suas dúvidas em relação à maternidade e se ressente de não se sentir totalmente completa com a experiência. A esposa de Oswald de Andrade traz a público traços do símbolo do modernismo brasileiro pouco louváveis, como crueldade e desprezo por ela.

"Lembro minha submissão absoluta. Não ao homem. Ao amor." Pontuada por esse romantismo de quem busca a entrega e a união absoluta, Pagu conta o início de sua vida sexual com Oswald, que teria como conseqüência um filho que ela perdeu: "E, para não dar importância ao ato sexual, entreguei-me com indiferença, talvez um pouco amarga. Sem o compromisso da menor ligação posterior." Tudo que se refere a Oswald é doloroso. Na véspera do casamento, Pagu encontra o futuro marido no hotel com uma mulher. Não entende porque, disposto a não se adaptar aos padrões burgueses de monogamia, Oswald inclui o relacionamento com ela na categoria "casamento burguês". Sua dificuldade não era apenas de conviver com Oswald, mas de aceitar qualquer tipo de limitação à sua entrega. "Eu desejava o amor, mas aceitava tudo. Muitas vezes minhas mãos se enchiam na oferta de ternura. Mas havia as paredes da incompreensão atemorizante. Nunca pude sequer oferecer-me totalmente."

O texto mostra que esse desejo de entregar-se totalmente a algo – a maternidade, uma causa, um amor - foi frustrado no campo amoroso, mas também na política. Essa característica faz da Pagu auto-revelada uma personagem ingênua, como sabem ser ingênuos os revolucionários. O desespero de justificar a vida por uma causa aparece, por exemplo, quando Pagu conta o seu primeiro encontro com Luís Carlos Prestes, com quem romperia depois, mas a quem seguiu como liderança comunista durante muitos anos. "Conversamos três dias e três noites, num cafezinho fechado e deserto. Consumimos, penso que, quilos de café. Não dormíamos e mal consegui saber que o comunismo era coisa séria. E fiquei conhecendo a grandiosidade de uma coisa até então desconhecida para mim – o espírito de sacrifício. Prestes mostrou-me concretamente a abnegação, a pureza de convicção. Fez-me ciente da verdade revolucionária e acenou-me com fé nova. A alegria da fé nova."

Essa alegria da fé incendiava Pagu a cada vez que uma causa parecia merecer entrega total. Como quando conta suas brincadeiras com as crianças, único alívio da vida de proletária que abraçou em nome da militância comunista. Pagu não vivia com Rudá, tinha deixado o marido e o filho para se engajar na luta política. Contemplando as crianças filhas dos trabalhadores braçais aos quais tinha se juntado, escreve: "Eu, ridiculamente grandiosa, porque lutava por aquelas crianças, olhando-as como se fossem minhas, como se eu as salvasse todos os dias. Meu filho, meu Rudazinho, era aquela cabeça loira de um José (...) Rudá estava ali comigo, neles todos, com as companheiras de folguedo, perto de meu cuidado. Eu lutava, lutava por eles, e por todas as crianças pobres do mundo. Essa era a felicidade sonhada."

Rudá é, ao lado do pai, Oswald, o grande personagem do relato de Pagu. Ela aceitou separar-se do marido e do filho por imposição do partido. Proletarizar-se era condição para continuar na militância política e significava trabalhar numa fábrica e deixar a "vida burguesa". "Sofri horrivelmente deixando o Rudá. Eu sei o que sofri com isto, mas não houve de minha parte a menor hesitação. Talvez não o amasse tanto como julgava." No contexto dos anos 40, a ousadia de Pagu era imensa. Se ainda hoje, considerando todas as transformações do papel da mulher na sociedade , a maternidade ainda é um mito da felicidade feminina, naquele momento colocá-la em questão era muito corajoso. Expor essas dúvidas num texto, mesmo que ela nunca tivesse pretendido publicá-lo, é um dos sinais do quanto a autobiografia de Pagu é corajosa como ela.

Dessa vida de proletária ela conta seu trabalho numa metalúrgica, sua dedicação ao partido, para o qual fez um trabalho de contra-informação e se submeteu a chantagens sexuais para obter informações. No entanto, sexo para ela nunca tinha sido fonte de alegria ou prazer: "Como dão imporância em toda parte à vida sexual. Parece que no mundo há mais sexo que homens...Eu sempre fui vista como um sexo. E me habituei a ser vista assim." Na mais autêntica revoluncionária, havia também uma mulher sofrida e solitária, que começa o seu texto com um apelo: "Sofra comigo." O leitor só conseguirá acompanhar Pagu em seu sofrimento tão sem medida quanto ela própria.

 

 

 

 

 

02/08/2005