Carlos Ribeiro
Poesia: sutileza de anjo
(in A Tarde Cultural em
08.03.2003)
A leveza é uma das marcas dos poemas
de Maria Lúcia Martins, reunidos no livro A Condição de Pégaso. São
textos líricos, fundados numa linguagem concisa, que “nos envolve e
nos encanta”, conforme definiu o poeta e crítico Ferreira Gullar.
Cuidado, no entanto, para não confundir-se leveza com
superficialidade. Pelo contrário, os versos de Maria Lúcia são tanto
mais livres do peso e da inércia do mundo quanto mais aprofundam
suas raízes na condição humana. Pois o cavalo mitológico que
transportou Perseu para o espaço, após este ter cortado a cabeça da
Medusa, tem, além de asas, quatro patas fincadas no chão - o chão
das dores, das alegrias e da miséria humana. E é sobre esta
realidade que a autora dos anteriores Espaço Perplexo, Entre Medos,
Brinquedos e Tempo Indômito fala na entrevista a seguir.
CR - Maria Lúcia, você tem livros publicados
também nas áreas de pedagogia e da psicanálise, além de ensaios
literários, contos e romance juvenil. Como foi a descoberta da
poesia nesse contexto?
ML - Só comecei a escrever depois que comecei a fazer análise,
quando descobri que tinha uma coisa escondida e que essa coisa dava
muito prazer. Antes, eu até escrevia, mas não publicava. Comecei a
fazer análise entre Angola e o Brasil. Fui a Angola como consultora
da Unesco, depois passei a expert num projeto de formação de
professores, de 1980 a 1982. Então comecei a escrever para
transgredir a minha própria repressão de escritora, de poeta. Eu
reprimi muito esse veio. Estudei muito matemática, filosofia e
durante todo o tempo tinha dois quintais, duas varandas: a
psicologia (hoje mais especificamente a psicanálise) e a literatura.
Minha visão é sempre interdisciplinar.
CR - A poesia é fruto de um processo de de
amadurecimento?
ML - Eu diria que é fruto de uma tensão. Cabe bem aí uma frase do
Borges que me persegue: “A minha ordem é a minha desordem”. Não há
como fugir disso. Preciso entrar num caos quase insuportável para
daí sair com uma ordem. Preciso entrar numa grande tensão e daí sair
um pingo, um cisco, o poema. Tem uma entrevista do Miró, na qual ele
vê umas manchas pretas, no seu trabalho de pintor, e diz: “Às vezes
uma mancha dessa me desorganiza de tal modo e entro em tensão até
produzir alguma coisa”. Me deu uma grande satisfação ver isso de um
pintor, de um poeta das cores. Aliás, o nome da entrevista, dada a
Jorge Raillard, é “A cor dos meus sonhos”. Toda essa conversa é para
dizer que sei menos o que é poesia, mas fico cada vez mais perto do
que sinto quando ela me toca. Há uma difinição do poeta Walt Whytman
que me toca: “Nada mais leve e mais profundo que um toque”.
CR - Isto remete à imagem de leveza presente
na figura do Pégaso, presente no título do seu livro e do seu poema.
Mas é uma imagem de leveza associada a uma idéia de profundidade.
ML - Sim, tenho necessidade na minha vida de pensar que o chão
existe e que tenho dois pés. E como não sei voar, faço do desejo
essas asas. Pode parecer um jogo de palavras, mas é uma coisa muito
concreta no corpo e na alma: um policiamento para eu perceber que
existe chão para sobreviver. Entre duas coisas: uma que tenha
necessidade prática e outra que não sirva para nada, estou sempre
querendo a segunda. Sem perceber, dou todo o tempo para a atividade
que é inútil e pouco para a outra. Por isso essa coisa do Pégaso:
quatro patas no chão e as asas que possibilitam o vôo.
CR - Você tem mantido, nos últimos anos, um
grande interesse em relação à psicanálise. Como vê a realação entre
ela e a poesia?
ML - A poesia está além da psicanálise. Como disse Lacan, ela diz o
indizível do que a psicanálise busca. O Bandolim [nome do cavalo
presente no primeiro poema do livro, que morre picado por uma cobra]
me tocou quando eu era criança. A história não é importante apenas
porque me enternece, mas porque prova a capacidade humana de ser
criança para sempre, de se conviver com essa criança. A poesia tem a
capacidade de anular o tempo, por isso está próxima do sonho, onde o
tempo não existe.
CR - O que é a “hora sutilíssima do anjo”, a
que você se refere no poema que dá título ao livro?
ML - Acho que é a inspiração. É quando aquilo que é indizível se dá.
Como disse João Cabral de Melo Neto: “A poesia é o que se dá a ver”.
É um momento muito raro. Por isso acho que há um grande equívoco
quando se diz: “Ah, ele (João Cabral) é um grande estruturalista”,
como se o trabalho do poeta anulasse essa sutilíssima hora do anjo.
Carlos Ribeiro é jornalista, professor universitário
e escritor.
A Condição de Pégaso, de Maria Lúcia Martins, foi publicado e
lançado pelo Selo As Letras da Bahia (Salvador: Secretaria da
Cultura e Turismo/Fundação Cultural da Bahia, 2002, 120 págs.)
|