Carlos A.A. de Sá
Caçada
Noite feita ainda partimos em busca da
madrugada — ligeira fosforescência na orla das folhas. No encontro
da estiva com o asfalto paramos ao ver as brasas que o aspirar dos
guias avivava. Tiramos o carro da estrada, os pés descalços se
encolhendo ao toque do capim frio.
Um tempo sentados no chão que mais um homem estava por chegar. As
estrelas perdiam o brilho, a brisa arrepiava os pêlos dos braços. No
silêncio feito de coaxos, cricrilos, zumbidos e estalidos, as vozes
soavam destemperadas, embora sussurrantes.
Logo um latido
distante, um recorte mais nítido dos arbustos contra o horizonte, as
caras deixando de ser meras manchas, os raros movimentos percebidos.
Latidos mais próximos, uma ave sai do negror do mato e risca o cinza
do céu: um homem e seus cães se aproximam no ritmo do amanhecer.
Todos de pé,
armados da vontade de matar. O pretexto é comer carne diferente,
saborosa, de caça. Palavras pingam como o orvalho, só as
necessárias, bicho pressente perigo à distância. Cachorros arfantes,
pés de pluma evitando gravetos e cobras — não vá alguém ser caçado.
Estrelas se apagaram tão quietas que só se percebe a ausência — inda
gorinha piscavam! — para estabelecer cumplicidade.
Moitas fechadas
se abrem em caminhos torcidos ao andar adestrado dos guias. Os
focinhos dos cães se mexem sem parar, de vez em quando um ganido de
impaciência, bom era ter ficado enrodilhados na beira da casa, o
gozo da aventura pertence ao homem, ser selvagem em busca de
emoções.
Antes que a claridade nos denuncie chegamos ao destino.
E destroçamos a
tranqüilidade dos pássaros que acordam. O espoucar dos tiros se
mistura aos assustados tatalar de asas, pios de dor, olhares de
pânico, quedas, correrias. Os cachorros partem rosnando em busca das
presas e as depositam aos nossos pés. Eufóricos, praticamos o mais
antigo e gratificante esporte do homem: matar. Matar para comer,
para se defender, para conquistar, para se vingar; matar por ódio,
por paixão, por compaixão, por inveja, por desfastio, matar por
matar. Por debaixo da fina casca de civilizados vão irrompendo seres
peludos, de testa estreita e dentes fortes, ávidos de sangue. As
aves tombam, uma após outra, duas, três ao mesmo tempo e os cães
seguram-nas com delicadeza, são menos ferozes que nós, por eles
matariam apenas o suficiente para comer. Mas estamos tomados pelos
ancestrais peludos e num crescendo de emoção, resgatando a condição
de predadores compulsivos, jamais nos fartamos e enquanto há asas no
céu clareado nós as derrubamos, olhos injetados, gosto de sangue nos
dentes trincados.
A manhã nos
surpreende exaustos, vigiando o horizonte, as mãos enclavinhadas nas
espingardas, sempre podem surgir novas asas/alvos. Nossa paixão não
está satisfeita — nunca estará — e apenas um tácito acordo impede
que voltemos as armas uns contra os outros.
Enfim o sol bate
em nossas caras, de cheio, e nos surpreendemos com as roupas que
usamos, quem sabe esperávamos nos ver nus ou mal cobertos com peles
fedorentas dos animais abatidos, e a descoberta da roupa produz
ligeiro desconforto. Baixamos as armas, olhamos a pilha de aves
abatidas e sorrimos contrafeitos. Mais tarde nos vangloriaremos,
agora estamos constrangidos. A caçada acabou e o piteco erecto deve
retornar ao mais recôndito do nosso ser. Vimos como ele é perigoso.
Os cachorros,
sábios, cochilam à sombra das árvores.
Súbito, alguém
descobre uma pequena cobra se deslocando pela trilha ensolarada. E
antes que os pitecos se recolham, assombrados por terror primitivo,
descarregamos no corpo viscoso os cartuchos engatilhados. A cobra
explode em retalhos sangrentos. Os cães latem, raivosos e
assustados.
Nós, predadores,
suspiramos satisfeitos, sorrimos com orgulho, catamos os troféus
emplumados e voltamos para casa.
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