LITERATURA CEARENSE
Miudezas de beltrano
De onde
vem esse desejo de juntar palavras de tão longe e
transformá-las em poesia? Poemas de pura calmaria ou
para sacudir a alma e dizer-se viva num mundo de pura
confusão
Rodrigo
Marques
Especial para O POVO
[15
de abril de 2005]
Beltrano se
aposentou. Tantos anos no anonimato que resolveu sair da
massa de Fulanos e Sicranos. Assinou seu legado com nome
falso e deixou por aí. Falo do mais recente livro de
Rodrigo Magalhães, O Legado de Beltrano, editado pela
editora carioca 7 Letras, que tornou público o espólio
do mais famoso desconhecido. Seu livro é o nono da
‘‘Coleção Guizos’’, coleção que já publicou um outro
autor da terra, Diego Vinhas, com Primeiro as coisas
morrem (7 letras:2004).
Magalhães achou o baú
dos Beltranos numa caixa de palavras, como um pirata que
encontra um tesouro enterrado por ele mesmo. E afinal de
contas quem não é anônimo nessas ruas e cidades, ou,
vistos de cima, nas estatísticas e nos satélites? Quem é
Beltrano? Quem é Rodrigo e seu livro no meio de tantos
livros? O título já encerra ironia, estranhamento e
humor, notas que perpassarão o conjunto de poemas que
vem divido em três partes: ‘‘Breve catálogo das miudezas
de Beltrano’’ ; ‘‘Carta sobre o achamento das cousas de
Fulana’’ e ‘‘Fragmentos do Monólogo ao Pai’’.
No
primeiro bloco, Beltrano arrola o cotidiano como item
principal do seu espólio magnífico. Rodrigo Magalhães
abre sua travessia com uma notícia de jornal, a que ele
chamou ‘‘Notícia do Poema’’, em seguida, na mesma
página, troca as palavras, o suficiente também para
trocar a trajetória do texto: ‘‘Poema da Notícia’’. O
quiasma pontua a mudança da linearidade cartesiana para
a visão múltipla e ritmada do poeta que, com pandeiro,
bumbo e poesia, reescreve o cotidiano, tal qual fez
Manuel Bandeira em seu ‘‘Poema tirado de uma notícia de
jornal’’. E assim, reconstruindo poeticamente seu
próprio espólio, o anônimo Beltrano vai modificando o
mundo com seu olhar, como um louco que acha que é dono
de tudo: das músicas, dos cinemas, dos jornais, dos
nomes, de Jericoacoara, da placa de formandos, do
teatro, das enciclopédias, de Nietzsche, dos túmulos, do
sem-fim.
Em ‘‘Carta sobre o achamento das cousas
de Fulana’’, segunda parte do livro, surgirá um novo
personagem não menos (des)conhecido: Fulana,
amante-passageira de Beltrano, a mesma do poema ’’O
mito’’, de Carlos Drummond de Andrade. Fulana é mulher,
mito e nada mais. Pousa para Beltrano escrever a segunda
parte de suas memórias, transa com Beltrano e não pede
troco.
Neste ponto da obra, Rodrigo amplia sua
intensidade lírica, o que às vezes lhe faz perder o
ponto da poesia ao tratar de um assunto tão delicado aos
poetas, como nestes versos de ‘‘Relatividade’’ (Agora,/
sem relógio na cama,/ o tempo é, simultaneamente, o
lábio noutro lábio/ úmido, o dedo no escuro, úmido,/ e a
primeira gota de um tempo úmido na vidraça). Porém, este
desprendimento consegue deixá-lo bem à vontade para
arriscar e brincar com a intertextualidade (Vinícius de
Morais, Carlos Drummond, João Cabral, Manuel Bandeira,
poetas bíblicos, Nietzsche e outros); com a
intercontextualidade (o cinema, a música e o teatro,
contextos diferentes do literário, convivendo
harmoniosamente) e com a alusão (Chico Buarque surge
inteiro no poema ‘‘Esquizofrenia’’); recursos
transtextuais que só enriquecem o livro de Magalhães.
Interessante observar o experimento do poema
‘‘Feromônio’’, que tem duas versões: a versão original,
só de palavras; e uma outra, poema-roteiro, pronta para
ser filmada em película cinematográfica. A criatividade
desse processo amplia ainda mais o diálogo semiótico
apontado acima, além de o poeta refletir sobre a própria
produção (metalinguagem e intratextualidade).
Fora desses recursos, o poeta sabe manejar os
resíduos mais distantes de nossa poesia, como o
paralelismo de ‘‘Dos nossos semelhantes e suas
respectivas geografias’’, técnica provençal,
trovadoresca - que repete a mesma idéia a cada estrofe
com pequenas alterações; sem falar das inúmeras
didascálias que informam o livro (títulos de poema e os
próprios rótulos que dividem o legado).
Por fim,
a última seção, ‘‘Fragmentos do monólogo ao Pai’’. Aqui,
Beltrano quase revela o verdadeiro nome: Adão,
Humanidade ou Legião? O anônimo escreve uma carta
aberta, justificando as epígrafes que vinha deixando no
caminho, como João, Maria e suas migalhinhas.
Beltrano parece se despedir do século XX,
deixando para trás um cheiro de pólvora e passado...
Beltrano e seu licenciado viajaram. E o leitor achará o
caminho de casa?
Errata: o último poema do livro
não é os fragmentos do monólogo, mas sim a ‘‘Errata’’,
poema-correção, que interfere na subida dos peixes ao
bulir com os significantes das palavras ‘‘pirapora’’ e
‘‘piracema’’. Vale a pena conferir e ler.
[Rodrigo Marques é poeta e mestrando em Literatura
brasileira]
SERVIÇO
Legado de Beltrano, livro
de poesia de Rodrigo Magalhães. Editora 7 Letras. 72 pg.
R$ 15. Pedidos pela internet:
www.7letras.com.br