LIRA
DOS CINQUENT’ANOS
Geraldo
Carneiro
Relume
Dumará, 122 páginas
R$
20
Geraldo
Carneiro é um artista múltiplo. Divide seu talento de
escritor pela dramaturgia, a criação e adaptação de
roteiros para cinema e TV, a tradução, a produção de
letras de canções, e também pela poesia. Tendo estreado
em livro em 1974 com Em busca do sete-Estrelo,
participou da primeira antologia de Heloísa Buarque de
Hollanda, 26 poetas hoje, de 1976. Publicou, entre
outros livros de poesia, Folias metafísicas em
1995; e, agora, Lira dos cinqüent'anos, uma espécie
de balanço geral de sua produção poética, numa obra
que implicitamente parece funcionar, a um só tempo, como
marco vital e índice de maturidade criativa.
O
jogo de duplos com a famosa peça homônima de Bandeira
(que, por sua vez, já é uma reciclagem de a Lira dos
vinte anos de Álvares de Azevedo) demarca um lugar de
fala crítico e subjetivo que acaba por dialogar com o
poeta modernista para além do mero brinquedo lúdico de
desdobramento serial do título. Se, por um lado, a poesia
de Geraldo Carneiro enfatiza, por vias próprias, e, por
isso mesmo, de modo dissonante, acordes e notas típicas
da poesia de Bandeira, por outro, circula por esferas que
se distanciam em muito do universo bandeiriano.
A
reiteração particular de alguns procedimentos do poeta
pernambucano surge na importância dada ao universo social
em Lira dos cinqüent'anos, sugerida pelo grande número
de poemas dedicados, e pela produção de um soneto a
quatro mãos (transcriação de um poema escrito
originalmente em inglês pelo acadêmico João Ubaldo
Ribeiro, feita por Geraldo); o que nos remete à afirmação
de Bandeira, em Itinerário de Pasárgada, de que
muito do modernismo em suas obras era proveniente da
convivência criativa estabelecida com seus amigos de
boemia e letras do período. Surge também em recursos
expressivos, como versos à maneira de, os poemas
desentranhados de outros textos, a busca de uma poesia não
hermética, o uso de uma linguagem coloquial salpicada
pelo estranhamento vocabular, as variações sobre um
mesmo tema.
As
figurações poéticas do livro de Geraldo Carneiro se
deixam perpassar, além do mais, por algumas características
recorrentes de uma determinada poesia brasileira que começou
a se impor a partir dos anos 90, como o passeio por gêneros
e formas fixas, o uso desreprimido de poemas
experimentais, a multiplicidade de referências a poetas e
obras da tradição poética ocidental, mas, no fundo,
guardam ainda um espírito preso à poesia marginal. O
prefácio do autor, nesse sentido, é revelador, tanto
pelo tom desabusado e coloquial do discurso, quanto pelo
espaço em que se situa em relação à cultura oficial,
assumidamente do lado da vida, sem hierarquias, diminuindo
a distância com o leitor: ''...no que os eruditos chamam
de polissemia, e nós, mortais, chamamos de poesia'', ou
em ''...caro leitor, meu semelhante, meu brother''.
Geraldinho tem um modo lúdico e irônico de se definir lírica
e pessoalmente: ''E eu, embora pós-adolescente e
semi-analfabeto (aliás, continuo mais ou menos assim).''
E
a leitura de Lira de cinqüent'anos nos lança numa
câmara de ecos da tradição lírica, atravessada por
reutilizações de ditos e letras de canções populares.
Dividido em oito seções, o livro é um mar de citações,
trocadilhos, palavras-montagens, diálogos inter e
infratextuais, neologismos, frases feitas desfeitas,
retomadas críticas de poemas precedentes do próprio
autor. Geraldo Carneiro, que na maior parte da obra opta
pelo uso do chiste, é daqueles autores que podem até
perder o poema, mas não perdem a piada, o jogo de vocábulos,
a rima insólita funcionando, muita vez, como chave de
ouro. Com isso, a ambiência geral é de humor e anarquia
dessacralizante, regada por comentários em alguns
momentos corriqueiros, em outros filosóficos, sobre a
existência, sobre os clássicos e seus autores, estes
sempre tratados com intimidade e irreverência. O timbre
da voz subjetiva é o de um bate-papo desenfadado com
amigos, afinidades eletivas, no bar ou pelo telefone sobre
assuntos literários e temas diversos, o que dá à obra
um caráter ocasional de livro-álbum, mais do que de
encadeamento poemático seletivo de livro-conceito.
Contudo,
há momentos em que a pilhéria não se transforma em
obrigação de afirmação estilística, nem a necessidade
de leveza e compromisso afirmativo da vida uma opressão
para um pouco mais de rigor e esmero, ou, talvez, apenas o
poeta se leve mais a sério, e vemos surgir poemas de
grande densidade de linguagem e força vital como, por
exemplo, a pulsão trágica de ''Maldoror'': ''a dor do
mundo dói dentro de mim./ ressoam no meu céu todas as
dores.../ a dor de Dante, da pátria perdida,/ o horror
supremo de Edgar Allan Poe,/ o horror da dor, o horror do nevermore.../
o horror da acrópole, do bar e dos bas-fond/ eu
sinto o horror e sei qual é o seu som.''; ou a sutil
delicadeza dramática de ''Novo panglossário 4'': ''adoro
as pequenas burguesas de Tchecov/ com suas vidas
suspensas,/ como coaguladas, vagando entre/ cristais e
coisa nenhuma...''; ou, ainda, a generosidade sobrevivente
de quase soneto a quatro mãos: ''sejam benditas,
berenices, beneditas,/ também sejam benditos meus
amigos,/ pois gosto deles, tenham longa vida,/ e até eu
mesmo, que não a mereço,/ mas que a observo e sei qual
é o seu preço''.
Nesses
momentos, a poesia de Geraldo Carneiro além de moderna,
carioca e brasileira, projetos subjacentes aos poemas que
parecem confeccionar uma camisa-de-força criativa ao lançar
mão de fórmulas recorrentes, torna-se, sem qualquer overdose
de referencialidade, insistência na blague ou desconstrução
satírica, pela sua própria iluminação interna e valor
construtivo, em algo que se pode chamar de universal.