José Castello
Projeto literário é muito coerente
e afinado
Pode-se não gostar de suas ficções, por vezes excessivamente
cifradas e retorcidas, mas jamais roubar-lhe a singularidade e a
obstinação - ele tem a medida precisa das limitaçõesdo fazer
literário
Autran Dourado é um escritor imune às ilusões do tempo, aos apelos
da moda e à voracidade dos críticos. Essa atitude solitária não
significa, porém, desinteresse pela técnica e pela perfeição. Muito
ao contrário. Talvez nenhum outros escritor brasileiro vivo tenha um
projeto literário tão coerente e afinado quanto ele. Pode-se não
gostar das ficções de Autran Dourado, por vezes excessivamente
cifradas e retorcidas, mas jamais roubar-lhe a singularidade e a
obstinação.
Há pouco tempo, Autran reescreveu seu primeiro romance, Tempo de
Amar, de 1952. O resultado dessa viagem rumo a quarenta e tantos
anos atrás, Ópera dos Fantoches, publicado no verão de 1995, é antes
de tudo um atestado de que a literatura é, para ele, um ofício
interminável, que não pode ser aferido pelas tabelas sensatas, mas
inúteis, do tempo lógico.
Ópera dos Fantoches, a reprise moderna de Tempo de Amar, é ainda um
romance imperfeito, que desperta ainda mais insatisfação e que, por
isso mesmo, não cessa de desafiar seus leitores. Não se pode lê-lo
distraidamente; ou o leitor se engaja, ou o deixa de lado. É, como
todos os grandes livros, uma obra sem solução. O livro se torna um
emblema da confiança que Autran Dourado deposita na imperfeição. O
escritor perfeito, à moda dos pesadelos de Borges, é um homem
eternamente insatisfeito, que se dedica a escrever uma obra sem fim,
que ninguém lerá. A perfeição pertence à ordem do impossível.
Transplantada para a realidade, ela se transforma, apenas, em uma
muralha de vaidade e um obstáculo.
Autran Dourado, ao contrário, tem a medida precisa das limitações do
fazer literário. Sabe que lida com um artifício e que escrever é, em
última instância, falsificar. Suas ficções são, antes de tudo,
respostas originais a questões técnicas que ele não se cansa de
reformular. A cada livro, Autran constrói para si mesmo novos
problemas e depois escreve para resolvê-los. Seus personagens, ele
já disse isso uma vez, têm seus destinos ligados à solução dessas
charadas teóricas. São filhos da técnica e, justamente por isso,
conseguem tocar o humano.
Em Autran Dourado, a técnica é a grande protagonista. Com a postura
de um vigia incansável, ele chega a comparecer pessoalmente à trama
mascarado como João da Fonseca Nogueira, escritor como ele,
personagem duplo e perigoso, que circula por livros como O Risco do
Bordado, A Serviço Del-Rey e Um Artista Aprendiz. Nogueira, o
lugar-tenente de Autran, tem porém a visão desfocada pelo moralismo,
o que o distancia irremediavelmente de seu criador, um artista para
quem a ficção é um universo sem limites que tem a técnica como única
fronteira moral.
A leitura dos livros de Autran Dourado desmente os temores daqueles
que julgam que a racionalidade vem apenas matar a imaginação. Seus
livros comprovam que só sobre um forro lógico consistente, com suas
leis espessas, valores firmes e limites, a imaginação pode de fato
imperar. A imaginação pura não pode ser dita. Nenhum livro a
comporta. Fosse o contrário, e todas as crianças seriam romancistas.
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