José Castello
Benedito Nunes ensina o caminho de
volta
Crítico paraense defende a
radicalidade dos escritores para afirmar grandeza da Amazônia.
Felix Delatour é um professor bretão,
circunspecto e quase albino que vive escondido em um sobrado de
Manaus. Ele sofre de uma trágica doença que praticamente o
imobiliza: o gigantismo. Sobrevive, em seu abafado exílio,
ministrando aulas de francês. Em sua sala, despida de qualquer
lembrança do passado europeu, há apenas uma mesa de madeira e duas
cadeiras de vime. Do lado de fora, com suas ondas de calor e nuvens
de mosquitos e sempre indiferente aos requintes da língua, está a
Amazônia. Diante de um jovem aluno, Delatour certa vez fez uma
importante reflexão sobre seu destino de exilado. "A viagem, além de
tornar o ser humano mais silencioso, depura o seu olhar", disse. "A
voz do verdadeiro viajante ecoa no rio silencioso do tempo."
Felix Delatour, esse profeta da
distância e do silêncio como métodos fundamentais para o
conhecimento, é um personagem de Reflexão sobre uma Viagem sem Fim,
um conto (leia íntegra na página ao lado) do escritor amazonense
Milton Hatoum, recentemente publicado pela Revista da USP.
O conto é dedicado ao eminente crítico
literário e filósofo paraense Benedito Nunes, que vive na vizinha
Belém do Pará. Como nos contos de Adolfo Bioy Casares, em que os
primeiros parágrafos servem apenas para driblar a atenção do leitor,
prometendo-lhe o que não lhe dará, é Benedito Nunes - e não Delatour
- quem nos interessa aqui.
A dedicatória, que Milton Hatoum
firmou com orgulho, não é mera formalidade. Aos 65 anos,
freqüentador assíduo do meio intelectual francês e norte-americano,
o paraense Benedito Nunes poderia dizer, sem medo de errar, que
também para ele as viagens servem para purificar a visão. Professor
da Universidade do Pará e prestigiado conferencista e ensaísta,
Benedito Nunes faz muitas viagens, mas retorna sempre a Belém, onde
nasceu e nunca deixou de viver.
Ao contrário de Delatour, o professor
jamais permitiu que os prazeres do exílio o imobilizassem. Para ele,
as viagens apontam sempre para o momento de retorno ao porto de
origem. É na volta - novos olhos diante de velhas paisagens - que a
aventura da viagem atinge seu apogeu.
Com o espírito depurado pelas
aventuras intelectuais no Exterior, Benedito Nunes defende, no
entanto, uma visão não-regionalista da região amazônica, que a livra
das fantasias românticas e das ilusões de inocência virginal. "Não
sou uma planta nativa", diz.
Nesta entrevista, Benedito Nunes
defende a radicalidade de outros escritores e poetas contemporâneos
que, exatamente como ele, conseguiram afirmar a grandeza da
Amazônia, sem, no entanto, ceder à força inebriante dos mitos.
Admira, por isso, o Márcio Souza de Galvez, o Imperador do Acre, mas
já não tem o mesmo entusiasmo por seus romances seguintes. Enaltece
as qualidades de escritores e poetas nortistas pouco lidos no sul do
País, como Dalcídio Jurandir e Age de Carvalho. E se confessa,
fechando o círculo, admirador incondicional do amazonense Milton
Hatoum, um ficcionista que, como ele, aprendeu a ver a distância
como a forma mais eficaz da proximidade.
Caderno 2 - O senhor é um intelectual
extremamente fiel à região amazônica. Não paga um caro preço por
essa fidelidade?
Benedito Nunes - Não. Se é isso o que você quer saber, mesmo aqui
jamais perco contato com o que se passa no resto do mundo. Tenho
sempre me afastado da Amazônia, mas são afastamentos por tempo
determinado, com volta fixa e garantida. Minha temporada mais longa
no Exterior ocorreu na segunda metade dos anos 60, quando fui leitor
em Rennes, na França. Depois, nos anos 80, retornei à França por
mais um ano, já como professor. Tenho viajado freqüentemente a Paris
e aos Estados Unidos, em particular a Austin, no Texas, para aulas,
conferências e debates. Mas faço sempre um movimento de saída e
retorno, que é importante porque me confere certo afastamento, sem
que os vínculos se quebrem. Não tendo uma radicação extrema ao meio,
posso pensar com mais independência e vigor. As viagens me
fortalecem.
Caderno 2 - O senhor não se sente isolado em
relação ao resto do País? Convites para lecionar em grandes capitais
brasileiras, certamente, não lhe faltam.
Nunes - Mas prefiro permanecer aqui. Não me sinto isolado em Belém
do Pará simplesmente porque sou um homem que gosta do isolamento. No
Pará tenho muitas relações, muitos amigos, é bom dizer. Mas conservo
também, é verdade, a distância e a calma que, para mim, são
condições fundamentais para o trabalho intelectual. Vivo sim em um
certo isolamento que não deve ser confundido, no entanto, com
insulamento. Não estou incomunicável e não é uma fuga. A distância
geográfica, ao contrário, me proporciona um refúgio, para o qual
posso sempre retornar em segurança. Mas não sou uma planta nativa,
presa definitivamente à floresta. Talvez por isso eu entenda a
região amazônica sem precisar do apoio dos localismos. Prefiro
falar, por exemplo, em uma literatura "da Amazônia" e não em
literatura "amazônica", denominação que inclui uma perspectiva
regionalista. Ao falar em literatura "da Amazônia", estou me
referindo apenas a uma origem, uma procedência e nada além disso.
Caderno 2 - Quem são, segundo sua avaliação,
os grandes prosadores vivos dessa literatura da Amazônia?
Nunes - Temos de falar, primeiro, de Haroldo Maranhão. Ele se mudou
há muitos anos para o Rio, mora atualmente em Juiz de Fora, mas tem
uma escrita que é muito paraense. Embora com um círculo de leitores
bastante restrito, Haroldo é, há algumas décadas, uma figura-chave
para a literatura amazônica. Em 1946, ele foi o inventor do
suplemento literário da Folha do Norte, de Belém, um importante
jornal que não existe mais, com o qual colaboraram não apenas
escritores da região, mas também poetas como Bandeira, Cecília e
Drummond. O suplemento durou até meados de 1951, mas, antes disso,
surgiu um outro, igualmente importante, editado semanalmente pelo
jornal A Província do Pará. Foi nesse caderno que Mário Faustino
começou sua carreira de escritor, publicando crônicas no estilo de
Rubem Braga.
Caderno 2 - Quais são outros nomes
injustamente esquecidos?
Nunes - Penso, por exemplo, em Dalcídio Jurandir, que começou ainda
nos anos 40 com um romance chamado Chove nos Campos de Cachoeiro e
não parou mais de escrever. Cachoeiro é uma cidade da Ilha do
Maranhão, onde Dalcídio nasceu. De lá para cá, seus romances formam
um imenso ciclo amazônico que guarda, no entanto, considerável
distância das experiências regionalistas. São ficções que apresentam
uma interiorização muito grande, cada vez mais densa; são, na
verdade, as aventuras de uma experiência interior. Chego a pensar
que o conjunto desses romances forma uma espécie de À La Recherche...
escrita na Amazônica e que Dalcídio é, um pouco, o nosso Proust.
Pois veja o paradoxo: ele sempre foi um escritor publicado no Sul,
pela Martins, e só agora está sendo republicado lentamente em Belém,
pela Cejup,uma pequena editora que se originou do Centro de Estudos
Jurídicos da Universidade do Pará.
Caderno 2 - No Sul e no Sudeste falamos em
literatura do Amazonas e pensamos imediatamente em Márcio Souza e
seu Galvez, o Imperador do Acre. O que o senhor pensa desse livro?
Nunes - Você fala em Márcio Souza e eu penso em Benedito Monteiro,
outro escritor paraense bastante esquecido, autor de dois livros, em
particular, de que gosto muito: Verde Vago Mundo e O Minossauro.
Ambos são escritores que fazem uma elaboração muito importante das
experiências lingüísticas da Amazônia, da diversidade de línguas e
perspectivas. São exemplos enfáticos de uma literatura
não-regionalista, embora feita com matéria-prima da região. Não faz
mais sentido pensar, hoje, em literatura regionalista. O
regionalismo tem data certa: nasceu romântico, foi batizado pelo
naturalismo e foi crismado em 30, pelos modernistas. Depois, se
tornou crônico e, por fim, anacrônico. Os dois golpes de morte mais
duros no regionalismo brasileiro foram dados por Graciliano Ramos e
João Cabral de Melo Neto. Essa distinção entre literatura
regionalista e não-regionalista é muito importante para entendermos
a produção contemporânea, do contrário continuamos presos a velhos
mitos e nos cegamos. A literatura regionalista, oje, não tem mais
força na Amazônia. Basta pensar em Márcio Souza e também em Milton
Hatoum. Ela sobrevive, de forma decadente, apenas entre os
contistas. Nada mais.
Caderno 2 - Qual a importância de Galvez para
a literatura da Amazônia?
Nunes - Galvez é um romance escrito dentro da tradição picaresca e
foi muito importante retomá-la na Amazônia. Haroldo Maranhão
escreveu também um romance dentro dessa tradição, em que ele a
prepara ainda com mais refinamento. Refiro-me a O Tetraneto del Rey,
em que ele faz uma paródia do modo de escrever seiscentista. Haroldo
Maranhão tem sempre muito sucesso nessas experiências. Em Memorial
do Fim, sobre os últimos dias de Machado de Assis, por exemplo, ele
mimetiza de modo impressionante a escrita machadiana. Eis outro
livro que passou despercebido, mas tem qualidades parodísticas
extraordinárias.
Caderno 2 - O senhor não parece muito
empolgado com Márcio Souza.
Nunes - Dos outros romances de Márcio Souza, na verdade, eu não
gosto tanto. Penso que, embora aqui e ali ele encontre certa
perspicácia, no geral ele perde por completo a mão na linguagem. Há
quem relacione essa degeneração com sua mudança para o Sul, mas
penso que é mais um fato interno da obra. A verdade é que, depois do
Galvez, ele nunca mais foi o mesmo escritor.
Caderno 2 - Qual a real importância do Relato
de um Certo Oriente, de Milton Hatoum?
Nunes - É a "desterritorialização", que Milton sabe transformar em
qualidade. Já me referi a essa experiência quando falei de mim
mesmo. No livro de Milton, há distância, mas há ao mesmo tempo
proximidade. A distância está mais na elaboração. O romance se
transforma na busca de um tempo perdido, mas em local bem delineado,
pintado com tintas que não são regionalistas. Em dado momento,
Milton descreve o quintal de uma casa e, ali, o leitor defronta com
todo o mundo amazônico. Esse mundo aparece também nas recordações de
seus personagens. Mas há, sempre, um distanciamento reflexivo que
confere grandeza ao texto.
Caderno 2 - A Amazônia tem, hoje, bons poetas?
Nunes - Temos Max Martins, um poeta que já está com seus 70 anos e
tem uma obra de primeira linha, reunida no volume intitulado Para
não Consolar. Temos também o Age de Carvalho, que publicou pela
coleção Claro Enigma, aquela que foi dirigida pelo Augusto Massi, em
São Paulo. É bem mais jovem, deve ter seus 40 anos, mas é muito
chegado a Max Martins. Os dois escreveram, até, um poema a quatro
mãos chamado A Fala entre Parênteses, em cuja feitura adotaram os
procedimentos da renga. É preciso citar ainda João de Jesus Paes
Loureiro, um pouco mais velho que o Age, outro excelente poeta.
Temos na Amazônia hoje toda uma geração de bons poetas, mais
numerosa e até mais importante que a dos ficcionistas.
Caderno 2 - Seu livro mais recente, No Tempo
do Niilismo e Outros Ensaios, lançado pela Ática em 1993, é uma
coletânea de ensaios filosóficos. A filosofia está se tornando mais
importante para o senhor do que a literatura?
Nunes - Minha origem é a literatura. Meu primeiro livro, O Mundo de
Clarice Lispector, editado em 1965 pelo governo do Amazonas, é prova
disso. Ele reúne artigos que publiquei no suplemento literário do
Estadão, ainda no tempo em que ele era dirigido pelo Décio de
Almeida Prado. Tenho também um livro mais recente sobre a Clarice, O
Drama da Linguagem, que a Ática publicou em 1989.
Caderno 2 - Por que essa dedicação, que se
alonga por três décadas, ao estudo da obra de Clarice Lispector?
Nunes - O que se pode dizer, depois de tudo, sobre a importância de
Clarice? Sua escrita é absolutamente ímpar. Há alguns anos
participei da organização do volume a ela dedicado pela coleção
Archives, de Paris. Organizamos uma edição crítica de A Paixão
Segundo G.H., uma edição crítica atípica, porque não havia originais
do livro. Para compensar, a Casa de Rui Barbosa me ofereceu para
consulta os originais de um conto de Clarice, A Bela e a Fera, um
dos últimos que escreveu. Nós o reproduzimos na edição crítica de
G.H. e pudemos assim mostrar a maneira entrecortada de escrever que
Clarice cultivava. É como se ela escrevesse por fulgurações. O
confronto do original com o texto definitivo mostra com muita
clareza esses movimentos dentro de sua escrita.
Caderno 2 - O que houve com os originais de
G.H.?
Nunes - Infelizmente, eles estão perdidos, ao que parece para
sempre. Tentei localizá-los nos arquivos da extinta editora Sabiá,
que primeiro editou o livro, mas não tive sorte. Têm um destino
enigmático. A Clarice talvez tenha, não digo que motivado isso, mas
pelo menos ajudado nesse desaparecimento. Ela foi uma escritora que
não tinha grande estima pelos originais. Uma vez o texto publicado,
não se interessava mais pelo que tinha escrito.
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