José Castello
Thiago de Mello, vida é um campo
de milagres
[in O Estado de São
Paulo, 08.05.1999]
Poeta amazonense mantém-se na
contramão da modernidade depois de período de sofisticação
Muito preconceito e incompreensão
cercam a vasta obra do poeta amazonense Thiago de Mello, de 73 anos.
Antes de tudo, é reduzido, um tanto apressadamente, à figura do
poeta engajado e sua poesia tomada, mais, como ideologia. Depois,
numa época de sofisticação e rapidez, ele se mantém apegado aos
temas primitivos e lentos do Baixo Amazonas, aos versos soltos e
derramados e, apesar de ateu, a uma visão da poesia como milagre.
Thiago de Mello é um poeta na
contramão da modernidade e isso bastaria para distanciá-lo de seus
pares, mas há ainda um fator circunstancial a considerar: desde que
retornou ao exílio, em 1978, voltou a viver na distante Barreirinha,
pequena vila de 5 mil habitantes encravada no Baixo Amazonas, em
pleno coração da floresta. Quando volta do sul do País, depois de
voar até Manaus e de lá num pequeno avião até Parintins, o poeta
ainda é obrigado a enfrentar uma longa viagem de barco, de mais de
cinco horas, até chegar em casa.
Toda manhã, porque sofre de
importantes complicações nas coronárias, Thiago dá uma longa
caminhada solitária pela floresta, durante a qual recita em voz
alta, para macacos, pássaros e o vento, versos de Manuel Bandeira e
de Joaquim Cardozo. Apesar do difícil trajeto até sua casa e do peso
da idade, não pensa em mudar-se de Barreirinha.
Há dois anos, seus leitores tiveram a
impressão, errada, de que se preparava para retirar-se. Depois de
ter avisado que De uma Vez por Todas, coletânea de verso e prosa
lançada pela Civilização Brasileira em 1996, era seu último livro,
Thiago de Mello lança duas novas obras.
Cara de índio, cabelos revoltos, bata
branca, Thiago tem mesmo um jeitão de profeta, ou de místico, que
contraria (superficialmente, pois ele se considera um utópico) seu
perfil de artista ateu e de esquerda. Fala mansa, acentuada pela
idade, olhar perdido e grandes silêncios dão a impressão de possuir
conexões secretas com outros mundos que não podemos ver. Mas não
foge da vida social. Não dispensa convites para seminários,
palestras e eventos literários - acaba de participar do júri do
prestigiado Prêmio Literário Casa de las Américas -, mas está sempre
ansioso para voltar para o silêncio da floresta.
Além disso, participa intensamente da
vida social de Barreirinha, onde há dois anos fundou um jogral, Os
Companheiros da Esperança, com 18 jovens, que já tem um repertório
de 25 poemas de Drummond, Pessoa, Cardozo, Cabral, Gullar e
Bandeira. Mas Thiago não limita suas atividades aos entornos da
floresta. No momento, ele se empenha na organização de um grande
encontro sobre a Amazônia, patrocinado pela Soka Gakai
Internacional, uma ONG japonesa, que deve ser realizado este ano em
Manaus.
Exílio - Depois de fazer uma
cineangiografia em São Paulo, o poeta vai para o Chile, país em que
viveu a maior parte dos seus nove anos de exílio, onde lançará a
antologia de poemas Ainda É Tempo, a primeira integralmente
selecionada e organizada por ele.
Quanto aos leitores brasileiros meio
esquecidos da obra de Thiago, o melhor mesmo é ler Campo de
Milagres, livro de poemas derramados e excessivos como ele mesmo,
dedicados a amigos como Joaquim Cardozo, Manuel Bandeira, José Lins
do Rego e ao pintor chileno Nemésio Antunez. O primeiro livro de
Thiago, Silêncio de Pedra, é de 1951 e com Campo de Milagres um
ciclo de 50 anos de poesia começa a fechar-se.
Não menos inspirado é Amazonas/Águas,
Pássaros, Seres e Milagres, um belo livro fartamente ilustrado com
reproduções dos trabalhos das bordadeiras do Baixo Amazonas. Os dois
trabalhos guardam um espírito de balanço, de inventário, que começa
a desaguar no livro de memórias que Thiago de Mello está escrevendo.
Não memórias clássicas, mas um livro sobre as pessoas que conheceu,
amou e que marcaram sua vida. É principalmente sobre essas pessoas
que ele fala nessa entrevista.
Estado - É verdade que você começou a escrever
suas memórias?
Thiago de Mello - Minha editora pediu minhas memórias, mas vi que
seriam uns 40 volumes e desisti. Então resolvi fazer um livro sobre
pessoas, saltando para o poético. Rubem Braga dizia que Murilo
Mendes, além de poeta, era poético. Conversando com o Armando
Nogueira, cheguei à conclusão que a gente tem o direito de exercer
sobre nosso passado o mesmo direito que nossos filhos têm sobre o
futuro. Temos o direito de poetizá-lo.
Estado - Com quais poetas compartilha essa
visão poética do mundo?
Thiago - Bandeira e Cardozo estão entre meus poetas mais amados.
Basta dizer que diariamente dou minha caminhada pela floresta,
sozinho, para cuidar das minhas coronárias, dizendo versos de
Bandeira e de Cardozo. Quando converso com o Armando, eu digo um
verso e ele me responde com outro. E assim vamos. A poesia está
impregnada em minha vida.
Estado - Você conheceu Manuel Bandeira?
Thiago - Conheci Bandeira quando era estudante de medicina, por uma
generosidade de Drummond. Levei para Drummond meus poemas, ele quis
saber quem eu era. Naquele dia eu ganhei do Drummond, e do Lúcio
Costa, que trabalhava na mesa ao lado, uma amizade sem fim. Drummond
guardou meus versos e pediu que eu voltasse três dias depois. Quando
voltei, entregou-me meus poemas cheios de observações, deu-me para
ler inéditos do Claro Enigma e disse: "Vamos sair." E levou-me à
casa de Bandeira.
Estado - E quanto a Joaquim Cardozo?
Thiago - O Cardozo é um grande desconhecido e, no entanto, é dos
meus poetas prediletos e mais amados. Não é surpresa que ele seja
tão esquecido. São poucos os leitores de poesia no Brasil. Depois, a
promoção dos livros pelas editoras ainda está engatinhando.
Terceiro, a bela prática da reedição é cada dia mais escassa.
Ninguém se preocupa em reeditar Cardozo. Recebi da Bertrand Brasil a
notícia de que acaba de sair a décima oitava edição de Faz Escuro,
mas Eu Canto, um livro de 1965, e pediram-me uma nota a respeito.
Comecei a escrever e asustei-me. Um livro que não é nem o melhor nem
o pior que escrevi e chega a 18 edições, enquanto o Cardozo, que tem
uma contribuição muitíssimo mais importante que a minha, que criou
formas novas de versos, inventou ritmos, cadências, não é mais
editado.
Estado - Você não está sendo pouco generoso
consigo?
Thiago - Não sofro de falsa modéstia, mas a verdade é que eu, ao
contrário de Cardozo, não inventei nada. Pratico os ritmos
tradicionais, as cadências comuns, nada mais do que isso. Não tenho
importância alguma na história da literatura brasileira - eu
importo, sim, para meus leitores, que gostam muito do que eu faço.
Já a prática metafórica do Cardozo é tão densa que chegou a levá-lo
à linguagem narrativa, O lirismo dele nunca é derramado, chega a ser
quase ingênuo. Mas o Cardozo ficou famoso como arquiteto do Lúcio e
do Oscar, não como poeta, para se ver como as coisas são injustas.
Estado - Joaquim Cardozo, como Murilo, também
viam a poesia espallhada pelo mundo. Exatamente como você.
Thiago - As histórias do Cardozo mostram isso. Nos anos 50, ele foi
à Europa e quando voltou trouxe um baú com livros. Cardozo era um
solitário, "muito puro e muito só", como disse João Cabral num
poema. Fui visitá-lo, encontrei-o diante do baú aberto, desembalando
os livros. E aí ele me mostrou uma primeira edição do Baudelaire, um
livro todo destruído. Eu disse: "Que pena", mas ele me corrigiu:
"Não, pena não, parece um labirinto." Cardozo era um homem assim,
ele via poesia em tudo.
Estado - Quando você publicou De uma Vez por
Todas, declarou que era o seu último trabalho. Depois mudou de
idéia. Por quê?
Thiago - Não relutei quando vi que tinha escrito uma série de poemas
que formavam um livro. Até mesmo essa longa parte do livro que é
muito delicada e confidencial. Esse livro não tem metáforas, não tem
comparações, a palavra direta já é a metáfora e isso me deu muito
trabalho. Quando disse que não publicaria mais, eu não me despedia
da poesia, mas do livro. Eu só não tinha mais intenção de publicar,
achava que tinha dito tudo. Mas continuei a escrever e vi que ainda
tinha coisas a dizer.
Estado - Escrever sobre a experiência pessoal
não é arriscado?
Thiago - Pode ser, mas eu tenho o direito de cometer minhas
bobagens. Por que não? E tentei fazer coisas. Há mais de 30 anos
queria escrever sobre a moça que veio lá do Sena e que nos meus 14
anos me deu a alegria do corpo dela. Eu não exagero se disser que,
ao longo de 40 anos, tentei umas 30 vezes escrever esse poema ( A
Criação do Mundo) e não resultava em nada. De repente, lá no
Amazonas, ele me nasceu. Os cinco primeiros versos me saíram e
puxaram os outros. Li então para o Armando e ele me disse:
"Continue." Éramos o Armando, o Otto e eu, agora o Otto não está
mais, mas não faço nada sem ler para o Armando.
Estado - Não é estranho que Thiago de Mello, o
ateu, escreva sobre milagres?
Thiago - Minha mãe, que morreu 98, queria muito que eu tivesse fé.
Falava muito da salvação da minha alma e esse tema eu peguei para
mim também. A vida eterna não me concerne, o programa já está todo
armado. Tudo depende apenas da fé. Mas fiquei com o tema. O Machado
diz no abertura do Dom Casmurro que ele acabou "unindo as duas
opontas da vida". Acho que nesse livro faço o mesmo, na medida em
que volto à questão do ser, do estar do mundo e parto para escrever
um poema sobre isso. Acabei achando que a vida é um campo de
milagres e aí peguei o poema do Bandeira ( "A vida é um milagre/ o
tempo é um milagre/ a memória é um milagre...") e coloquei na
abertura.
Estado - Há uma visão um tanta antiga do amor
num poema como As Prendas do Recato. Você fala da anágua, da
combinação, do porta-seios.
Thiago - Há uma coisa engraçada, é que eu gosto muito de olhar
corpos bonitos, há um elemento mágico neles. Mas vejo que estão
vendendo o quadril, o peito, a coxa como se fossem mercadorias e fiz
então um poema sobre o recato que os anos não trazem mais, o tempo
das anáguas, combinações, roupas que as mulheres já não usam. Como
era bonito...
Estado - Há muitos versos dedicados a
personagens da vida brasileira. Por exemplo, José Lins do Rego. Por
que ele?
Thiago - Escrevi dois versos sobre ele. Durante 11 anos convivemos
diariamente: escrevíamos no Globo, íamos ao Maracanã, bebíamos
juntos. E quando ele ficou doente, fiquei com ele por três meses no
Hospital do Servidor do Estado. Guardei mais de 50 páginas escritas
sobre esses três meses, que vou incluir no livro de memórias. Estou
vivendo a tal crise dos neurônios fatigados, esqueço o que aconteceu
anteontem. Aqueles neurônios da juventude pegavam a vida e a levavam
para o banco de dados. Hoje vou bem devagar, deixando as lembranças
caírem pelo caminho.
Estado - Por que dedicar um poema, O Nemésio,
ao pintor Nemésio Antunez?
Thiago - Nemésio seria o Portinari, o Volpi, o Di do Chile. Tem
obras no Masp, no MAM. Ele, Neruda e eu vivíamos juntos. Era um
homem alto, bonito, delicadíssimo. Gostávamos muito de cantar. Por
incrível que pareça, fui diretor de um pequeno coral do qual faziam
parte o Neruda e o Nemésio, entre outros. Nós cantávamos uma velha
cantiga, El Marinero, à qual me refiro no poema.
Estado - Você também acaba de publicar um belo
livro sobre a Amazônia, com reproduções de trabalhos das bordadeiras
da região. A Amazônia também é um milagre?
Thiago - Aqui em minha casa, na beira do rio, em plena floresta,
vejo o vento chegar, balançando as palmeiras, e eu acho isso a
maravilha da vida. Aí vêem os pássaros e aumentam o colorido da
floresta. Vivo na floresta há 21 anos, desde que voltei do exílio.
Aqui na floresta os caboclos lêem no escuro, cheiram o ar, cheiram a
água, encontram pistas em tudo. Há coisas que chegam a parecer
história de mentiroso e então, às vezes, eu evito contar. A vida é
um milagre. Eu estar vivo é um milagre. Estive no muro para ser
fuzilado no Chile, tempos depois caí e por causa de um coágulo tive
de abrir a cabeça. Sou safenado, mas não me lembro que tenho 73
anos. Tem gente de 25, 26 anos que já envelheceu, já perdeu a
esperança, já desistiu. Eu não, eu creio ardentemente na utopia.
Todo o avanço assombroso da ciência, da tecnologia, esse telescópio
que já fotografou a luz dos primeiros estilhaços do big-bang, isso é
um milagre e tudo isso vai reverter a favor do homem um dia.
Estado - Como é a vida em Barreirinha?
Thiago - Até os 5 anos morei aqui em Barreirinha, uma pequena vila
que fica a 24 horas de barco de Manaus. Hoje, para chegar em casa,
pego um avião até Parintins e de lá um barco para uma viagem de mais
cinco horas. O município tem 15 mil habitantes, mas a vila menos de
5 mil. Quando fiz 5 anos, fui para Manaus para estudar, mas até meus
5 anos eu vivia aqui, solto no meio da natureza. Tive ainda a grande
sorte de ter um avô como Joaquim, homem bondoso que ficou cego por
causa de uma catarata. Dos 8 aos 11 anos, até ele operar e voltar a
ver, eu fui o seu guia. Esse homem me ensinou tudo sobre as nuvens e
de onde vinha o vento. Ensinou-me a entender a floresta. A maravilha
da floresta, o grande milagre, é que seu habitante, apesar da
chegada da TV, continua a ser solidário. Lá, apesar da solidão, você
nunca está sozinho. E na floresta eu aprendo muito mais com eles, do
que eles comigo.
Leia a obra de Thiago de
Mello
|