Ricardo Alfaya
Sobre Estudos & Catálogos - Mãos, de Soares Feitosa
Caro Soares,
Registro com satisfação recebimento do Estudos & Catálogos - Mãos, um trabalho em que
mais uma vez combina eletrônica comRicardo Alfaya artesanato. Importante também porque
traz para o papel material do Jornal de Poesia, aumentando com isso as chances de
sobrevivência do material. Quanto à qualidade do escrito e dos comentários dos autores,
excelente, como sempre.
Desde o início você tem sido um dos que têm sabido melhor aproveitar os recursos de
interatividade que a Internet oferece, ao mesmo tempo promovendo seu próprio trabalho
e o de outras pessoas, com enorme talento. Os Catálogos evidenciam essa visão de conjunto
em que se tem o seu trabalho e o dos comentaristas bem demarcados, enquanto que,
simultaneamente, ocorre a integração e interatividade desses textos, formando um
conjunto único. É muito interessante.
Ricardo Alfaya
Sobre Um cronômetro para piscinas, de Soares Feitosa
Subject: Re: Ricardo, espie! Espiei Date: Thu, 26 Dec 2002
13:02:14 EST To: jpoesia@secrel.com.br
Caro Soares,
Vi a caprina história assim:
"Cabra" é uma das chaves, jogo da imagem "cabra" com "cara". Refere-se sobretudo ao
personagem principal da história, o pai que cometeu o crime. Quanto ao assassinato,
trata-se de episódio talvez simples, seco e direto, que foi todo ornamentado.
Três Veras. Vera é verdade. São três os tiros e, a despeito, da confusão, são pelo
menos três versões (três verdades / veras) as que sobressaem: a do pai (o cabra); a
do filho (comerciante); e a do coronel.
Patativa, literato popular homenageado que ornamenta os acontecimentos com o uso da
palavra. Aqui, sinônimo de arte. Você escritor de formação intelectual, que ornamenta
o acontecimento com o uso da palavra. Aqui, sinônimo de arte, também. Por outro lado,
as fotos dos dois ornamentam agora a palavra. Há um jogo de ironia aqui.
Monalisa é Vera na janela. Porém, mais do que isso, simboliza o enigma do texto.
O famoso "riso enigmático" de Monalisa, de quem se diz representar o próprio riso
de Da Vinci. Parece-me que a modelo que pousou para o quadro era uma pessoa comum
da época. Ornamentada pela arte, tornou-se grandiosa e eterna.
Decifra-me ou te devoro. As interrogações vão descendo pela página. Interrogações,
Monalisa, Cabra, sua foto, Patativa, assim como o próprio texto em si. O texto parece
querer chamar a atenção do leitor para o fato de que ali existe um enigma. Só que,
contraditoriamente, os recursos para revelar a existência do enigma, terminam eles
mesmos acrescentando enigmas ao enigma.
Até mesmo a "Moral da História", que surge na possível fala do monge (nada parece
palpável na narrativa) possui um caráter ambíguo, de crítica e de elogio, ao mesmo
tempo.
Por certo há outros enigmas, outros detalhes. Como bem já observou Yêda Schmaltz,
na opinião anterior, há uma "discussão do discurso dentro dele próprio". Esse é um
dos pontos, ou talvez mais precisamente o ponto: na dimensão em que vivemos, a
verdade é formada por múltiplos discursos que se intercalam, sendo fugidio, talvez
impossível, o conceito de verdade absoluta. Isso me faz recordar alguma coisa que
li em Michel Foucault a respeito.
Para encerrar, diria que ocorreu, enquanto escrevia essas palavras, uma espécie de
"visualização espontânea", na qual apareciam três folhas em branco suspensas no ar
como plataformas. Em cada uma delas se moviam os acontecimentos das três diferentes
versões. Talvez adotar como verdade todas as versões fosse uma solução para o
problema. A versão, afinal, é sempre maior que o fato. E toda versão (todo
"boato" como talvez preferisse Uilcon Pereira) tem um fundo (falso?) de
verdade.
Por outro lado, se fôssemos proceder assim no cotidiano, isto é, aceitando todos os
discursos e versões como verdadeiros, terminaríamos sufocados ou perdidos pela
impossibilidade de compreender com clareza até mesmo os mais corriqueiros fatos,
tal como, até certo ponto, sucede tanto aos personagens envolvidos na deliberadamente
confusa história, como com todo aquele que a lê. Talvez resida na constatação e na
proposta desse fenômeno o principal objetivo da narrativa.
Será que a minha versão chegou perto da "verdade verdadeira" a que se propõe o texto
ou fui devorado pela Cabra-esfínge-da-peste?
Um Bom Natal,
Ricardo Alfaya
Sobre Nobel para Sadã, de Soares Feitosa
Sent: Thursday, March 27,
2003 2:11 PM
Subject: Re: Ricardo,
espie! Espiei
Caro Soares,
Ô rapaz, por um momento seu minino me deu um susto, sabiá? Mas adespois que flui lá,
vi qui era só tudo ironia, oxente.
Intonces, sair de lá, contente.
Sararvá,
R. Alfaya
Sobre A menina afegã, de Soares Feitosa
Sent: Thursday, May 16, 2002 1:25 PM
Subject: Re: Um ensaio sobre a menina afegã
Prezado Soares,
Olhei, reolhei, li, reli, fiquei muito impressionado. Você pegou a menina afegã,
tirou do cruel deserto de lá e trouxe para a cruel seca de cá. Sim, há um gosto de
dor e de morte. De corte da fotografia, acompanhado por uma ação paralela de corte
de filme que acaba resultando também em corte do personagem em sua história.
Você faz uma simbiose de narrativa com ensaio, em paralelo ao ensaio com história que
há na foto. A foto conta uma história. E você conta uma história ao mesmo tempo contando
a foto. A história é cortada, como a foto é cortada. São fragmentos, um jogo de
calidoscópio. Um dos momentos mais impressionantes é quando você estabelece a
comparação textual falando no fogo e a gente inclina a cabeça para o texto e sente uma
espécie de brilho de fogo gélido, uma luz estranha que vem do olho da menina e atinge
o canto do nosso olho, provocando uma sensação geral de estranheza, desencadeando
uma certa indecisão.
Afinal, ficamos no texto ou nos deixamos hipnotizar pelo olho de mar que nos
espreita? Em resumo, mais do que uma simples leitura, diria que foi um contato,
uma experiência. Uma experiência sensorial, afetando tanto a mente quanto o
corpo.
Ah, outro aspecto interessante é que você faz um movimento de câmera sobre a foto,
subindo e descendo pelo rosto, transformando-o numa paisagem... árida, como árido
é o deserto e o solo calcinado pela seca. Sina Severina, dessa afegã menina.
Sobre Dos sapos e dos livros, três pequenos enigmas, de Soares Feitosa
Sent: Sunday, October 19, 2003 8:00 PM
Subject: Dos sapos e dos livros
Caro Soares,
Desculpe a demora, estou cuidando de muitas coisas ao mesmo tempo, então há momentos
em que os assuntos se embolam completamente.
Verifiquei a página do José Geraldo Neres, com a respectiva resenha que lhe fiz,
ficou tudo muito belo.
Li também o texto solicitado, nele há um revezamento mágico de coelho, com sapo,
obra com cobra, num jogo de tangências, de aproximação e afastamento. Há ainda um
exercício de colagem de cenas da memória com textos que lhe chegaram, com o qual
constrói o tríptico sobre os três enigmas narrados. Em minha interpretação, os
enigmas caminham na direção de um outro de maior gravidade e universalidade, que
diz respeito à questão do relacionamento verdade/ficção, talvez a questão maior
que tenha motivado todo o texto. Como sempre, uma arquitetura deveras singular,
como aqual vai cada vez mais caracterizando seu estilo.
Desses museus naturais ambulantes de que você fala, recordo-me de ter visto um ainda
criança, numa praça em Belo Horizonte, quando passava as férias por lá. Nunca pensei
que aquela visita ao bizarro ambiente alguma vez me pudesse vir a ser útil, mas acho
que o foi agora, muitas e muitas décadas depois, para ajudar-me a visualizar melhor
o ambiente que em que transcorre parte de sua crônica.
Fico contente que tenha recebido o livro. Fico então no aguardo de um comentário seu
a respeito.
Um grande abraço,
Ricardo Alfaya
|