José Castello
Adélia Prado retoma o diálogo com
Deus em dois livros
(in O Estado de São Paulo,
22.05.1999)
Depois de cinco anos sem publicar,
a poeta mineira lança `Oráculos de Maio', uma coletânea de poemas, e
`Manuscritos de Felipa', um texto curto, que ela define como uma
experiência literária e religiosa
Depois de O Homem da Mão Seca, de 1994, a poeta mineira Adélia Prado
ficou cinco anos sem publicar. Volta agora com dois livros
simultâneos: Oráculos de Maio (Siciliano, 139 págs.), coletânea de
poemas, e Manuscritos de Felipa (Siciliano, 161 págs.), uma prosa
curta. Antes de escrevê-los, Adélia atravessou um difícil período de
vazio. Convidada, por fim, para assinar crônicas semanais no Correio
Braziliense, sem planejar, acabou retornando aos livros. Nas últimas
20 semanas de sua vida de cronista, Adélia passou a publicar em sua
coluna aqueles que viriam a ser os 20 primeiros capítulos do
Manuscrito de Felipa.
Os dois novos livros assemelham-se porque, mais uma vez, Adélia
escreve para dialogar com Deus. O leitor entra só como testemunha e
até um pouco como invasor. Mas, apesar dos fortes laços que tem com
a religião, Adélia considera-se uma poeta e não uma profeta. "Meu
projeto sempre foi escrever", ela diz. Lançados os dois livros,
continua a trabalhar numa longa série de poemas, ainda sem destino
fixado. Adélia não se tem furtado a dar palestras não só para grupos
de católicos, mas também para leigos das mais diversas
especialidades, entre eles muitos psicanalistas. Não a afeta que
parte da crítica e também da comunidade dos poetas, fiéis a um velho
preconceito, ainda a considerem mais uma catequista do que uma
escritora. Está serena, segue seu caminho sem olhar para os lados.
Foi nesse estado de ânimo que, por telefone, conversou com o Caderno
2.
Estado - Você ficou um longo tempo sem
escrever. O que ocorreu?
Adélia - Foi um período de desolação. São estados psíquicos que
acontecem, trazendo o bloqueio, a aridez, o deserto. Até que recebi
um convite do Correio Brasiliense para escrever crônicas. Um belo
dia, escrevendo uma crônica, eu comecei: "Antes fosse tudo culpa de
má arbitragem e estresse muscular..." Não era uma crônica, era o
começo dos Manuscritos de Felipa, mas comecei a publicar os
capítulos do livro nos jornais como se fossem crônicas. Cheguei a
publicar uns 20 capítulos. De modo paralelo, comecei a escrever os
Oráculos de Maio, então os dois livros saíram juntos.
Estado - Tanto os poemas como os manuscritos
são, a rigor, longos diálogos com Deus. De que modo você separa
experiência literária de experiência religiosa?
Adélia - Não separo, para mim elas são a mesma coisa. Muitos poetas,
aqueles que se dizem ateus, apesar da grande poesia que fazem, não
ligam uma coisa à outra. Mas a poesia é um fenômeno de natureza
religiosa, pois tem um papel fundador, que me conecta ao centro do
ser. Deus é o grande problema e a grande platéia, tanto que eu
engano os críticos. Mas não engano Deus.
Estado - Não existe o risco de você ser lida
como profeta e não como escritora?
Adélia - Eu entendo a poesia como um oráculo, a fala de uma
divindade. Como posso dissociar as duas coisas? Mas sei que, porque
não dissocio, corro o risco de ser vista como uma catequista e não
uma poeta. Estou fazendo uma poesia na qual o religioso é forte?
Estou. Mas é poesia? É poesia. Eu sou catequista, sim, mas em outras
horas.
Estado - Intelectuais não a discriminam por
isso?
Adélia - Sim, isso está claro em muitos comentários, mas o que hei
de fazer? O que teria a dizer a essas pessoas? Que só sei costurar
assim. Antes de me casar, eu fiz um curso de corte e costura e
aprendi que existem muitas variações da saia godê. Num curso de
costura, você aprende o básico e o restante é variação.
Estado - Que estilo de catequese você pratica?
Adélia - Não tenho aquilo que se espera de uma catequista católica.
Falo a partir de outros lugares, do lugar da poesia e também da
psicanálise, que estão muito atreladas à religião. O curioso é que,
primeiro, comecei a receber convites para falar em círculos
mundanos, agnósticos, só agora começo a ser convidada para falar
para movimentos católicos e protestantes.
Estado - E sobre o que você é chamada a falar?
Adélia - Falo em encontros para casais católicos, em retiros
espirituais. Também já falei em encontros de psicanalistas, tratando
da relação entre fé e mística. Parto da poesia, da psicanálise, não
importa, chego sempre à questão da natureza transcendente.
Estado - Você não tem medo de ser vista como
um guru?
Adélia - Meu ponto de partida é sempre literário. Corro o risco é
dos preconceitos, e o preconceito é um inferno. Há pessoas que não
têm audição ao que estou falando, e sem ter audição têm opinião. Não
tenho medo de virar guru. Para mim, a poesia tem uma qualidade de
oráculo. Mas não sou uma divindade, sei que sou só porta-voz. Agora,
se uma pessoa acreditar que o poema pode curar, é a força da palavra
que está curando, não sou eu. Se a poesia faz bem, ótimo, a mim
também ela faz muito bem.
Estado - E como você reage aos preconceitos?
Adélia - Eu fico só sofrendo. Se eu fosse grande igual ao Rosa, eu o
imitaria, colecionando as críticas ruins de cabeça para baixo. É o
que se diz a meu respeito: "Apesar do religioso, até aparece alguma
poesia". Como se o religioso não fosse matéria de poesia. O registro
católico, esse sim, é acidental, resulta de minha cultura, de minha
herança familiar. O católico é acidental, mas o religioso é
essencial. Podia ser budista, islâmica, judaica, mas seria sempre
religiosa.
Estado - A religião hoje se voltou para os
grandes shows, as grandes platéias, a televisão. Esse caminho a
agrada?
Adélia - Eu me sinto às vezes muito mal, pois esse caminho está
completamente desviado da natureza do anúncio evangélico. Baratearam
a linguagem da religião e, barateando, aquilo que deve ser dito não
é dito. A Igreja está perdendo sua filiação divina e tornando-se um
produto como outro qualquer. Há nesses fenômenos, não posso negar,
um empenho na direção de restaurar a alegria e o louvor que estavam
perdidos. É uma busca canhestra, criticável, às vezes até
constrangedora, mas tem ali alguma coisa sã, pois o povo está
faminto de alegria. Depois do Vaticano II, a Igreja perdeu a pompa,
a beleza, a nobreza, sem substituí-las por uma nova liturgia.
Estamos perdendo a natureza do sagrado, perdendo o mistério. Dançar
um rock e dançar essas músicas horríveis dos carismáticos é a mesma
coisa. A mesma coisa, não, porque o rock é melhor. Eu sei, é uma
tentativa de chegar a Deus, mas é desastrosa e desastrada, porque o
recolhimento, a meditação, se perderam. A missa dos carismáticos não
tem um minuto de sossego, você não pode se recolher.
Estado - Você já se psicanalisou?
Adélia - Em 1992, antes de poder escrever O Homem da Mão Seca, fiz
seis meses de psicanálise. Já se disse que a religião do futuro será
a psicanálise, o autoconhecimento. As igrejas, as instituições vão
acabar, a igreja real é dentro de mim. Hoje ainda necessitamos do
rito - mas um dia a instituição desaparecerá, para que se institua a
igreja real, que está no coração de cada um. Jung disse que, para
que a cura aconteça, o analista deve remeter o paciente à sua
religião de origem. Ele descobriu a qualidade curativa da religião,
ter um criador para adorar, para a gente não ficar feito boba.
|