José Castello
A poesia errante e sem volta de
Marco Lucchesi
(in O Estado de São Paulo, 27.10.2001)
Tradutor de diversos idiomas, viajante, seus textos
refletem outras obras e paisagens
A epígrafe de Guimarães Rosa, logo no
primeiro livro, torna indisfarçáveis as intenções de Lucchesi:
“Tudo, para mim, é viagem de volta.” Retornar, ao que aparece antes
do antes, ao início de tudo, voltar, esvaziar, descer às raízes mais
esmaecidas do homem. Para realizar esse projeto do retorno Marco
Lucchesi se fez poeta. Tradutor, viajante, ensaísta, escritor.
Traduzir, viajar, pensar, escrever.
Quatro tarefas que, com sua poesia fronteiriça, em plena gestação,
Marco Lucchesi transforma em uma só. Os poemas de Lucchesi podem ser
lidos como uma tradução pessoal, apaixonada portanto, dos poemas que
ele lê. Podem ser lidos também como registros de viagem, desprovidos
porém de datas, sem indicações turísticas, sem nenhum desejo
factual. São, certamente, ensaios brevíssimos, e nesse sentido a
poesia é um pássaro muito mais ágil que o pensamento formal. São,
enfim, poemas, escritos para serem lidos e para em livro ficarem
guardados. Nessa conjunção de projetos, os versos de Luchesi acabam
por nascer. O leitor depara com um poema chave, do qual retiro o
trecho: “Como há de suportar/ este silêncio/ ermo e/ sombrio/ este
silêncio,/ que é mais/ que silêncio,/ espanto e/ loucura,/ esse/
grave/ silêncio de Deus?” Ele sintetiza alguns dos procedimentos
fundamentais da poética de Marco Lucchesi: falar com Deus, ou o que
ele possa ser, sem o recurso da oração; admirar-se com o silêncio e,
ainda assim, necessitar das palavras; e debruçar-se sobre sua borda
que, se de um lado anuncia a gravidade, de outro beira a loucura –
margens, afinal, da linguagem. Oriente – Tradutor de Umberto Eco, de
Rainer Maira Rilke, de Rûmi, de Georg Trakl, o poeta Marco Luchesi
carrega, em seus versos, a fala desses interlocutores. Fascinado
pelo Oriente, em especial pelo Oriente Médio, manuseando com
desenvoltura o árabe e as paisagens inóspitas do Islam, Lucchesi
toca na ferida do mundo contemporâneo – nessa região conturbada onde
tanto a guerra e o terror quanto as melhores miragens de paz nos
aguardam. Lucchesi viajou durante muitos anos pelo Marrocos, Egito,
Turquia, Líbano, Síria, Israel e Mauritânia. Defrontou-se com o
deserto, percorreu cenários vazios, voltados para parte alguma –
matéria leve e disforme com a qual ele molda seus versos. Ali no
deserto, onde tudo sopra, da areia que o vento carrega, qualquer
forma, bela ou horrorosa, pode surgir.
Escreve, em conseqüência, postado num
lugar anterior à cultura, próximo ao coração da natureza, onde a
própria memória é só uma miragem. Daí a questão da autoria, que para
ele também fica dissolvida, já que as criações e as traduções se
equiparam e seu limite quase não tem importância. Lucchesi faz uma
poesia errante, sem dono, arrancada do nascedouro, verdadeira
nebulosa da qual homem, civilizações, religiões, palavras começam a
surgir.
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Lucchesi |