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José Castello




O poeta crítico




 

Poeta de festejada reputação, Sebastião Uchoa Leite, que faleceu recentemente, foi também um comentador ativo do panorama literário. Seus ensaios breves, reunidos em parte nesse “Crítica de ouvido” (Cosac & Naify), vêm se alinhar aos escritos daqueles que, em geral ligados à pesquisa universitária, se empenham na produção de um pensamento rigoroso e calcado em bases formais. É nessa direção, da afinação dos rigores e instrumentos críticos, na contramão de uma crítica intuitiva e impressionista, que Uchoa se move. Seu livro adquire uma importância especial quando contraposto, ou situado, justamente nesse cenário de luta intelectual em que se enfrentam, de um lado, os críticos mais racionalistas vindos dos bancos de escola, e de outro, aqueles mais intuitivos, procedentes das redações de jornais.

Um crítico eminente como Alexandre Eulálio, objeto aliás de um dos ensaios breves de Uchoa, defendia uma mediação e um equilíbrio entre as duas tendências, ou formações. De um lado aquela gerada, como ele dizia, no “nobre gueto universitário”, de outro aquela de caráter mais aleatório e sentimental. Ele julgava a divisão clássica entre críticos da imprensa e críticos da universidade só uma “oposição maniqueísta”, mecânica demais para dar conta da realidade. De fato, como toda contraposição, essa também é redutora e perigosa. Até porque muitos doutores formados pela universidade militam, com regularidade e entusiasmo, no jornalismo literário que, por questões industriais, exige textos concisos e escritos, necessariamente, no calor da hora. Do mesmo modo, muitos jornalistas literários eminentes trataram de fazer sua especialização regular nos bancos da academia, de maneira que a cisão acaba se tornando forçada e, um pouco até, inútil.

De qualquer maneira, e aqui talvez se possa fazer melhor proveito, ela aponta para uma segunda fronteira, essa mais palpável, e mais eficaz, a que delimita os críticos apegados aos procedimentos formais da teoria àqueles que, por desinteresse, insuficiência pessoal, ou opção deliberada, não importa, preferem as leituras mais impressionistas e subjetivas. Não há dúvida de que Uchoa Leite é um eminente seguidor do primeiro grupo, e foi certamente para exercitar essa posição, para afirmá-la, que escreveu seus ensaios breves.

Como num jogo em que duas tendências medem forças, a crítica literária se faz, e se engrandece, justamente nesse movimento, dos puxões desferidos pelos dois lados, do vai e vem de impulsos e resistências. Sebastião Uchoa Leite foi, nesse aspecto, um crítico não só competente, mas exemplar. Morto, deixou-nos uma obra que se tornou peça fundamental nesse grande (e fértil, ainda que às vezes rude) xadrez que move o mundo literário.

Tome-se o belo ensaio sobre Murilo Mendes, no qual o próprio Uchoa Leite acaba por se definir, indiretamente, como um “crítico andarilho”, a mudar de temas e transitar por autores e cenários diversos (inquietação jornalística?). Por ocasião do lançamento da “Poesia completa e prosa” de Murilo pela editora Nova Aguillar, em 1994, Uchoa Leite pôs-se a escavar a obra do poeta em busca de “um conturbado continente poético submerso, que surpreende pela atualidade”. É ele ainda quem diz que “a obra de Murilo Mendes abarca direção múltiplas, deixa no ar contradições e indagações, e no final o autor parece mudar radicalmente sua orientação estética”. Ou seja, não pode ser reduzida nem a uma única leitura, nem a um só olhar.

Mas o que Uchoa Leite encontrou em sua escavação? Novamente, a mesma fronteira, a mesma cisão que dá as balizas ao exercício da crítica. Uma “dualidade ambivalente”, isto é, a “construção deliberada de uma desordem”, vertigem e fascínio pelo caos, reino da intuição, contraposta a uma “obsessão ordenadora”, reino da razão. Murilo, que era religioso, preferia falar em deus e o demônio, metáforas simples, opostos a constituir, e a dinamizar, a experiência humana. Então, tudo depende da perspectiva escolhida para observar o poeta e seus livros. Manuel Bandeira, por exemplo, o viu como “um dos três ou quatro bichos da seda da poesia brasileira”, quer dizer, um daqueles poetas que tiram tudo de si mesmos, como se não precisassem nem do passado, nem da tradição. Uchoa não o desmente, mas se apressa a dizer que a evolução posterior de Murilo “nos parece o contrário de um intuitivo” _ e é aqui, nesse miradouro oposto ao de Bandeira, que ele, Uchoa Leite, vem descortinar seu pensamento crítico.

Também Raul Bopp serve a Sebastião Uchoa Leite para uma digressão brilhante a respeito de sua clássica “aura folclórica” _ e não se pode negar, também nesse caso, a pertinência de seu esforço. Ele parte da “Poesia completa” de Bopp, reunida em 1998 por Augusto Massi – crítico da universidade que, ao organizar a obra de Bopp, tratou de livrá-la de uma imagem naïve, submetendo-a, ao contrário, a uma leitura crítica mais aguçada. Em seu brevíssimo, mas eloqüente ensaio, Uchoa sai em busca de “um outro Bopp”, menos regional, e também menos antropofágico. Encontra um poeta norteado mais pela idéia de viagem, e também de uma integração entre o cósmico e o social, que pelos clichês folclóricos. A viagem, Uchoa Leite diz, é o substrato de um poema como “Cobra Norato”, “mas, como a trama mítica é escassa, a narrativa se parece mais com uma aventura da linguagem poética”. Ele encontra, desse modo, uma lição crítica na poesia de Bopp, aspecto que, até aqui, sempre foi ignorado, ou menosprezado.

Veja-se, ainda, o caso dos dois ensaios sobre João Cabral de Melo Neto. No primeiro, em que trata da ironia na obra do poeta pernambucano, Uchoa Leite nos oferece, a partir das teorias de Gilles Deleuze, uma distinção entre o humor, que seria uma prática de superfície, à ironia, que se passaria na profundidade. É claro, ele prefere a ironia que, como diz, “quer atingir um alvo específico e tem um conteúdo crítico”, não é dispersa e delicada como o humor. Cabral foi, de fato, um poeta que se opôs duramente aos lugares comuns, às soluções fáceis e aos apelos da emoção, tudo aquilo que, a seu ver, só podia conduzir à passividade intelectual, preferindo em seu lugar a vontade, o raciocínio e a razão.

Nem por isso, comenta Uchoa Leite, a obra cabralina escapou da força bruta dos clichês, segundo os quais ela seria originária, basicamente, de um desejo de rigor, cálculo e atitude cerebral. Bem a propósito, o crítico nos recorda a sentença famosa de Rainer Maira Rilke, segundo a qual “a fama é a soma de todos os equívocos em torno de alguém”. Apesar de denunciar esses rótulos que se fixaram à obra de João Cabral, e apesar ainda de sua estupenda argumentação, Uchoa Leite, contudo, deles não conseguiu se livrar por completo. Escapa-lhe, como à grande maioria dos comentadores da obra de João Cabral, o papel do conflito, do choque furioso entre forças antagônicas que é, por fim, o que confere vigor à obra cabralina. Ainda assim, Sebastião Uchoa Leite reconhece que, mesmo lutando contra o lírico e o melodioso, Cabral acabou por realizar uma obra, ainda que não sentimental, visceral. Não ligada ao coração, metáfora mais banal dos sentimentos, mas a “uma outra tripa, a do colhão”.

“Crítica de ouvido” traz ainda belos ensaios sobre Leopardi, sobre as adaptações de obras literárias para o cinema e, em particular, um inteligente estudo sobre Lewis Carroll, não só o ilustrador de seus próprios livros, mas aquele que inspirou e motivou tantas e famosas ilustrações para suas histórias. Há, por fim, e na verdade abrindo o livro, um belo ensaio sobre a presença das cidades na obra de escritores como Baudelaire, Villon, Marinetti e Pound, e as relações e amor e ódio que esses autores com elas estabeleceram. A cidade como musa moderna de homens que, cada um a seu tempo, presenciaram o descortinar da vida urbana, com seus ruídos, agitações, diluições, cenário em que passaram a vingar o anonimato e a solidão. Escritores de estilos diversos que, cada um a seu modo, ofereceram suas obras como instrumentos de inspeção e de crítica da vida moderna . Atitude que, já na virada para o século 21, Sebastião Uchoa Leite voltou a repetir, escrevendo ensaios que ajudam a iluminar e desembaraçar o emaranhado de vozes, quase ensurdecedoras, que caracteriza o mundo de hoje.

 



Sebastião Uchoa Leite
Leia a obra de Sebastião Uchoa Leite

 

 

 

30/05/2005