O Cego, a viagem,
o vôo
"...lança-te para cima, livre como o ar,
tornar-te-ás matéria de liberdade."
(Gaston Bachelard, L’Air et les Songes)
Meu pai, de profissão
marceneiro, sabia fazer muitas coisas belas e boas, entre elas instrumentos
musicais: violões, cavaquinhos, rabecas, bandurras. Certo dia —
eu teria então cinco anos — parou à porta de sua oficina
um homem alto e forte, chefiando uma pequena caravana. Um dos membros do
grupo segurava-lhe a mão, guiando seus passos incertos pela rua
esburacada. Os outros seguiam-no, e todos eram jovens, à exceção
do próprio homem alto, cujo rosto começava a envelhecer.
Ele se protegia do sol com um chapéu de abas largas, escondia os
olhos atrás de vidros negros e, como os demais, trazia a tiracolo
um instrumento musical. Quando meu pai perguntou com quem falava, o desconhecido
respondeu numa voz que daria para ouvir-se a cem metros de distância:
— Com o Cego Aderaldo.
Tão forte a emoção
se estampou no rosto de meu pai, ao se saber honrado com a visita do lendário
cantador, que até eu, uma criança, pude notar sua perturbação.
Aderaldo explicou que viera trazer-lhe uma rabeca para conserto: instrumento
de estimação, presente já antigo de um admirador.
Meu pai tomou carinhosamente a rabeca em suas mãos de artesão,
examinou-a com olho crítico e prometeu fazer o que estivesse ao
seu alcance. Dias depois o cego veio apanhar o instrumento: e satisfeito
por reencontrar a qualidade do som original, perguntou quanto devia pelo
trabalho.
— Nada — respondeu meu pai.
Corno o cego insistisse, meu
pai propôs que, em pagamento, fosse fazer uma cantoria na pequena
fazenda, a uns 3O quilômetros da cidade, onde viviam sua mãe
e vários dos seus irmãos, quase todos notavelmente dotados
para a música. Aceita a forma de pagamento, para lá nos dirigimos,
meu pai, eu, Aderaldo e sua pequena comitiva de músicos ambulantes.
E de todas as viagens que fiz em minha vida, aquela foi a única
realmente inesquecível: a que permaneceu não como uma viagem
que foi, mas ainda é; não como uma lembrança, mas
como um sonho que continua.
Íamos a cavalo, por uma
estrada obediente aos caprichos do terreno, contornando colinas, estirando-se
por várzeas arenosas. Cada vez que o caminho vencia uma elevação
e desembocava numa pequena planície, os cavalos lançavam-se
a galope. por puro gosto, por pura vontade de chegar ao término
da viagem — e nessas ocasiões eu não podia despregar os olhos
de Aderaldo. A princípio, por medo de que algum mal lhe sucedesse;
depois, por simples deslumbramento. Andasse o cavalo como andasse, ele
permanecia firme e elegante na sela — e mais que firme, indisfarçavelmente
feliz com o vento a bater-lhe no rosto, a rapidez e o ritmo ondulante do
galope.
Aliás, iam todos
alegres: todos falavam, riam, contavam histórias, faziam piadas.
E sempre que alguém dizia qualquer coisa que o cego julgasse interessante,
suas palavras eram apanhadas como mote e imediatamente glosadas com improvisos.
Aderaldo improvisou sobre muitas e muitas coisas: sobre o perfume dos imbuzeiros
que ladeavam a estrada; sobre o pio assustado de aves que fugiam do tropel;
sobre o seu chapéu que em determinado momento foi arrancado pela
ventania e rolou muitos metros pela estrada — e quando a noite desceu,
sem luar porém rica de milhares de estrelas, improvisou sobre a
Via Láctea, que não podia ver, mas cujo curso, ele bem sabia,
orientava a nossa caminhada.
Rindo, galopando e improvisando,
Aderaldo era a imagem da liberdade. Decerto, estava acorrentado pelas cadeias
de sua cegueira; mas, como Prometeu, era no alto de um monte a que fora
acorrentado - muito acima de nós, lá onde não podíamos
chegar, e tinha a cabeça erguida e os olhos da voltados para regiões
ainda mais elevadas e de acesso ainda mais difícil. Nós,
os que enxergávamos, tínhamos consciência da terra
sob as patas dos nossos cavalos. Para ele, ao contrário, a terra
não era uma prisão: quando o seu cavalo se lançava
a galope era nos ares que galopava, era pelo altíssimo Caminho de
São Tiago que galopava. E foi assim, quase fantástico, que
eu o retive na memória.
O que retive na memória,
do visto naquela viagem, creio agora que foi a própria encarnação
da poesia do povo nordestino. Essa poesia pode, naturalmente, ser pensada
de muitos ângulos; mas para o que no momento me interessa, importa
constatar, antes de tudo, que para a ela a terra também é
estranha, a terra como símbolo de imobilidade, de duro realismo,
de rigidez falsamente racional. Como Aderaldo, ela pode ser cega, mas é
num corcel fogoso que cavalga, um corcel cuja marcha normal é o
galope disparado.
Eu diria, pois, que ela é
sobretudo uma poesia do movimento. Poesia da viagem. E do vôo.
Nada é estático
na poesia dos Aderaldos. Tudo nela é dinâmico, em particular
a narrativa, que freqüentemente se move em ziguezague, tomando por
veredas e caminhos secundários, num alegre desconhecimento — eu
ia dizer: desprezo — das estradas reais da coerência.
Muitas vezes, o começo
do poema é a captação de um movimento já em
curso:
Quando Jesus e São Pedro
pelo mundo viajaram
em casa de um ferreiro
uma tarde eles chegaram...
(Francisco Sales Areda: Jesus,
São Pedro e o Ferreiro da Maldição)
Em outros, o próprio
poema dá início ao movimento:
Para me certificar
da Morte de Lampião
arrumei o matulão
andei para me acabar...
(José Pacheco: O grande
Debate de Lampião com São Pedro)
Se a Primeira estrofe é
uma introdução, uma sinopse da história ou unia "invocação
às musas", o movimento virá na estrofe seguinte:
Tudo se deu com um moço
do Rio Grande do Norte
que foi para o Amazonas
para melhorar de sorte...
(Manoel Camilo dos Santos.
São Francisco do Caníndé
um Grande Milagre)
Mesmo quando o poema obedece
(casualmente, é certo) às clássicas unidades de tempo,
lugar e ação, a força que dispara é movimento
anterior, e freqüentemente o final é apenas o descer do pano
sobre um movimento que continua. Uma peleja entre contadores parece à
primeira vista estática: apresenta-nos duas pessoas sentadas, uma
diante da outra, a dedilhar violas e fazer improvisos. Mas ainda que consideremos
apenas esse aspecto exterior, a peleja será simples pausa de um
movimento que chegou até aqui e que prosseguirá não
se sabe onde. Nem Riachão nem o Negro com quem trava o seu famoso
duelo eram de Assu; estavam apenas de passagem pela cidade onde se deu
o encontro. No folheto em que narra sua peleja com Zé Pretinho (real
ou imaginária, não importa) Aderaldo começa por informar:
Um dia determinei
a sair do Quixadá
fui até ao Piauí ver
os cantores de lá.
Severino Milanez não
é de Floresta, e também não é de lá
o seu adversário Manoel Raymundo; Severino Simeão e Ana Roxinha
não são de Petrolina, onde se batem; Severino Borges e a
Negra Furacão vieram de longe para cantar no município de
Bom Jardim. E assim em todas as pelejas. Terminado o desafio, os cantadores
põem o pé no caminho e vão em busca de nova aventura,
que este é o seu destino de menestréis: mover-se.
E que dizer da dinâmica
interna da peleja? Para bem compará-la, seria necessário
evocar a tempestade. O seu começo é, em geral, lento e quase
frio. com os dois cantadores fazendo as "louvações" de estilo,
exaltando as virtudes do dono da casa que os acolheu, as virtudes e a beleza
da senhora e suas filhas, a amabilidade dos espectadores que vieram de
longe para vê-los, ouvi-los, aplaudi-los, decorar seus versos e repeti-los
pelo sertão afora, num movimento de expansão circular do
ato criador. Em dado momento, cessa o capítulo dos louvores e um
dos dois julga chegada a hora da provocação. Atirada a luva,
o adversário se agita, agita-se o público, um arrepio nervoso
percorre as cordas das violas. A cantoria sobe de temperatura, vai ganhando
um novo ritmo. Antes que os ouvintes tenham tempo de habituar-se a essa
segunda velocidade do vento poético, uma terceira é inaugurada
- salta-se da meia-quadra para o quadrão, deste para o beira-mar,
formas progressivamente mais complicadas de poesia — e assim até
a peleja adquirir características de furacão, resolvendo-se
não com um lento retorno à calmaria, mas com o súbito
e necessário naufrágio de um dos contendores.
Poesia da viagem. O Camões
de Severino G. de Oliveira (As Perguntas do Rei e as Respostas de Camões)
aos sete anos de idade:
Começou a viajar
pelo mundo abertamente...
e é por isso que se transforma
num sábio, capaz de conhecer o passado das pessoas e até
de profetizar o seu futuro. Certas pelejas, como a de Manoel Xudu versus
Severino Pereira e a de Zé Monteiro versus Cachimbinho, são
verdadeiros tratados de Geografia (arrevesada e incorreta, é verdade)
através dos quais se expressa o anseio de conhecer todos os acidentes
e conviver com todos os povos. E como ocorre nas pelejas, nos romances
também não há fronteiras, as histórias se passam
nos lugares mais distantes e exóticos — O Pavão Misterioso,
na Grécia; o drama de Aprígio Coutinho e Neusa, no Japão.
É viajando que o poeta
vem a saber dos casos e conhecer aqueles que os viveram:
Tenho visto muitas coisas
nesta vida de ambulante
e vendendo meus folhetos
já tenho andado bastante.
(José João dos Santos, Azulão: Os
Matutos na Feira)
O homem quando vigia
sempre encontra presepadas...
(Manoel de Assis Campina: Discussão
de um Fiscal com uma Fateira)
E viajando este mês
pela linha do Agreste
fui parar numa feira...
(Vicente Vitorino: Discussão
(de um Crente com um Cachaceiro)
Todo personagem importante do
romance de cordel está partindo ou chegando. A ação
sempre dispersa os atores ou, como um catalisador, os atrai para o centro
do drama. A celebridade do boi do coronel Sesinando (O Boi Misterioso,
de Leandro Gomes de Barros) traz à sua fazenda vaqueiros dos mais
distantes lugares. Um deles vem de Minas Gerais, o que, considerando-se
os meios de comunicação e os sistemas de transporte da época
em que se passa a história (início do século XIX)
é quase uma odisséia, dois mil quilômetros de distância.
Mas não tinha aventura impossível para a imaginação
do poeta, que, como o próprio boi por ele criado, não admite
peias nem currais.
Viajar é preciso. Para
saber e agir é preciso viajar. Os próprios espíritos,
quando querem comunicar-se entre si, deslocam-se de suas moradas. Para
falar com Deus, o Diabo é obrigado a sair dos "antros negros da
terra" e viajar até às alturas. Trata-se, certamente, de
uma viagem longa e cansativa, pois só de tempos em tempos a empreende:
Em quarenta o Satanás
foi ao céu ligeiramente
do que havia no mundo
ele a Cristo fez ciente
e agora resolveu
fazer queixa novamente
informa José Vila-Nova
em Segunda Queixa de Satanás a Cristo, escrita muitos anos depois
da primeira.
Viagens com as mais diferentes
finalidades, ou mesmo,sem finalidade. Viagens iniciatórias, muitas
vezes, plenas de peripécias e dificuldades, de perigos e obstáculos
que se ,avolumam à medida em que o herói se aproxima de seu
destino. onde o esperam, finalmente, o amor, a felicidade ou o conhecimento.
Viagens para a liberdade, quantas! Raptos de donzelas que são perseguidas
pelo pai tirânico, destinado no final a ser humilhado em seu orgulho
(p. ex., Mariquinha e José de Souza Leão). Bem sucedidas
fugas de heróis solitários e sempre nômades, que conseguiram
derrotar, com inteligência e bravura, a força de latifundiários
malvados (p. ex., Zé Mendonça, o Sertanejo Valente) Fugas
desesperadas de.jovens amorosos, contra os quais se levanta não
apenas o ódio dos homens, mas também a fúria dos elementos,
transformando longo trecho de sua vidas em uma luta constante com a morte
(p. ex., as intermináveis peripécias de Aprígio e
de Alonso).
Viagens por terra, a pé,
a cavalo. em veículos antigos ou modernos; lentas. com paradas freqüentes,
ou às carreiras, em disputa com o tempo sempre inimigo da integridade
física e da liberdade do herói. Viagens por mar, entre portos
de um mesmo país da terra natal ao estrangeiro, do lar ao exílio,
dos campos aos campos da guerra, do familiar ao exótico, do certo
ao duvidoso, do aqui ao fim do inundo, do presente ao passado do longínquo
ao futuro. Viagens às montanhas, ascensão aos lugares elevados,
onde está a salvação e às vezes a realização
do senhor. Como voam os personagens do romance de cordel! Com que facilidade
e prazer os seus corpos se libertam do peso da gravidade.
Poesia do vôo, portanto.
Quase obcecados pelo vôo, eles usam de todos os recursos para se
elevarem acima da terra e se deslocarem com rapidez através das
distâncias, por maiores que sejam. Voam escanchados no dorso de pássaros,
como João Cambadinho na última etapa de sua longa peregrinação
em busca do Reino do Miramar, onde o aguarda uma princesa que prometeu
ser sua mulher. Cambadinho, que apesar de sua ignorância de pastor
de cabras aspira as alturas e estremece de alegria ao ver montes azuis
no horizonte., pois sabe que eles representam a luz e e são a morada
natural daqueles que podem voar.
Não havendo pássaros
de carne e de penas, os heróis recorrem à habilidade dos
mecânicos e voam com o auxílio de máquinas engenhosas.
Tão engenhosas. às vezes. que apesar de criados há
dezenas de anos por poetas semi-analfabetos até hoje não
puderam ser de fato construídos pelos técnicos em aeronáutica.
Como o já referido pavão de João Martins de Athayde:
que levantou vôo da Grécia
com um rapaz corajoso
raptando uma condessa
filha de um conde orgulhoso.
Belo pássaro de metal,
que além do inusitado da forma tinha toda uma série de vantagens
sobre os aviões convencionais: era movido a eletricidade, não
fazia ruído, não trepidava, podia ser desarmado com um simples
toque de botão, decolava verticalmente, descia com suavidade no
teto de uma casa qualquer, era rápido como uma flecha e
voava igual ao vento
para qualquer direção.
E se não houver aeronaves
fantásticas? E se não for possível construir uma com
a leveza do alumínio? Nem por isso o herói deixará
de voar. Tudo o que ele necessita é de uma rica, poderosa e ardente
imaginação, pois esta se encarregará alegremente de
prover o transporte para qualquer tipo de viagem. Para ter a certeza da
morte de Lampião, José Pacheco percorre as sete partes do
mundo, e chegando à conclusão de que o cangaceiro já
não se encontra na face da Terra, solta as asas da criatividade
a fim de continuar a busca:
... atravessei os mares
montado em um planeta
que ao som de uma trombeta
vinha descendo dos ares
visitando aqueles ares
terra de santos e fadas...
(O Grande Debate de Lampião com São Pedro)
Por meios e caminhos semelhantes,
José Camilo dos Santos voou até a sua ilha da felicidade,
o País de São Saruê, aonde o manda Mestre Pensamento.
Para lá chegar, o poeta viaja sucessivamente no "carro da brisa",
no "carro do mormaço" e nas costas da "neve fria". É voando
que se pode chegar ao lugar onde rompe a "nova aurora".
Poesia do movimento, da viagem,
do vôo. Poesia da imaginação sem travas e sem fronteiras.
Poesia da liberdade, apesar de tudo o que se opõe à liberdade.
Presa pelas cadeias da cegueira, da pobreza, do analfabetismo, das superstições,
do preconceitos — é certo, mas não a um rochedo imóvel
e sem vida, e sim ao lombo de um cavalo fogoso, cuja marcha normal é
o galope e cujo roteiro preferido é o altíssimo Caminho de
São Tiago.
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