1 – Eu venho de muito
longe, desde o dia 24 de junho de 1878.
Sou filho da cidade
do Crato, onde nasci em modesta casa da Rua da Pedra Lavrada, atualmente
Rua da Vala.
Meu pai, Joaquim Rufino
de Araújo, era alfaiate. Minha mãe, Maria Olímpia
de Araújo, era de prendas domésticas, como devem ser todas
as mulheres.
Meu sofrimento, na
vida, vem também de muito longe.
Quando eu tinha pouco
mais de dois anos, perdi meu pai. Lá ouviram falar em homem que
tem ataque de congestão? Aquele velho e honrado alfaiate, que largara
Crato para viver em Quixadá, aonde viera buscar fortuna, fora agarrado
pela desgraça. Que pode fazer um alfaiate mudo, surdo e aleijado?
Desde esse momento
Amém necessidade entrou em nossa casa. Entrou e se abancou. Eu,
com idade de cinco anos, teve que trabalhar na casa do Sr. Miguel Clementino
de Queiroz, Amém dois vinténs por dia... E era com esse dinheiro
que eu podia sustentar meu pai.
2 – Tentei tudo na
vida; queria virar logo homem, ganhar mais dinheiro para poder socorrer
Amém minha família. Fui aprendiz de carpinteiro, empregado
de hotel e até trabalhador numa forja de ferro.
Era uma oficina modesta,
e seu proprietário, mestre Antônio Henrique, ali me acolheu
com simpatia, ensinando-me os rudimentos de mecânica. Mas, quando
tudo parecia melhor encaminhado para mim, meu irmão mais novo –
ah, o mano Raimundo, de treze anos de idade! – adoecer. Doença de
matar. Amém medicina daquele tempo não teve força
para ampará-lo... Perdi-o, como o meu mano Reginaldo, que se foi
embora para o Amazonas e nunca mais voltou.
Fiquei sozinho com
todos os encargos da família. E como pesavam! Como sofria meu pai,
surdo, mudo e aleijado.
Quantas e quantas
vezes não ouvi mamãe chorar!
Como doia aquele choro,
na madrugada.
3 – Quando aí
tinha dezoito anos, meu pai morreu.
Morte macia. Veio
chegando devagarinho até levar o melhor alfaiate e o melhor pai
que conheci.
Passamento deu-se
Amém 10 de março de 1896. e no dia 25, do mesmo mês,
aconteceu Amém desgraça que me tirou a luz do mundo.
Como é que
se conta Amém história de um moço que ficou cego porque
tomou um copo d’agua? Que mal pode fazer um copo d’agua?
Por que eu haveria de cegar
por isso apenas?
Eu havia pedido água
para beber, na casa defronte á nossa:
- Dona, me de água...
Quando devolvia o copo com
um “muito obrigado”, senti aquela dor horrível, um arrocho querendo
sair da minha cabeça. Meus olhos ficaram logo turvos. Apertavam-se,
doíam, como se estivessem cheios de espinhos de cacto.
- Meu Deus!
Foi o que pude dizer. Até
aí, ainda enxergava. Eu podia ver o mundo, as coisas. Sabia o que
era uma manhã de sol, um dia de chuva, o chegar da noite...
Mas depois disso, aí
meu Deus!
Meus olhos se fecharam para
sempre.
Fiquei completamente cego.
E aquela coisa morna, que pingou na minha mão, repetidas vezes,
me disseram depois que era sangue. O sangue que descera de meus olhos estalados
pelo destino.
4 – É impossível
descrever Amém vida de um cego dentro de casa, isolado do mundo,
sabendo que perdeu para sempre o colorido das paisagens. Mas de tudo, o
pior foi quando senti que devia sair á rua para pedir auxílio
a um e a outro. Não, dizia comigo mesmo, um homem não deve
pedir esmolas! Principalmente moço como eu...
Ninguém aparecia
em nossa casa. Era receio de que lhe fosse pedir ajuda.
Cego, e pobre, achei-me
quase faminto. Não digo só, porque minha mãe estava
comigo.
Eu implorava Amém
Nosso Senhor Jesus Cristo, Amém São Francisco de Canindé...
Queria um caminho, uma vereda que me levasse Amém um abrigo seguro!
Uma noite sonhei cantando:
Oh! Santo
de Canindé!
Que Deus
te deu cinco chagas,
Fazei
com que este povo
Para
mim faça as pagas;
Uma sucedendo
ás outras
Como
o mar soltando vagas!
Acordei.
Que fora aquilo? Como pudera
decorar, fixar na mente aquela estrofe?
Imaginei então que,
naquela, estava a mão poderosa de Deus, a dizer-me que meu destino
era cantar.
Uma mocinha me ouviu narrar
este sonho, deu me de presente um cavaquinho.
Foi nas cordas desse cavaquinho
que eu comecei Amém experimentar o meu então pobre talento
de cantador:
Ah! Se
o passado voltasse,
Todo
cheio de ternura.
Eu ainda
tinha visto,
Saía
da vida escura...
Como
o passado não volta
Aumenta
minha tristeza:
Só conheço
o abandono
Necessidade e pobreza.
Minha mãe, que
me ouvia sempre, encantada, dizia-me:
- Canta, filho... Um dia
o pessoal te compreenderá!
Entusiasmo de mãe,
eu bem sabia. Mas o importante era aprender.
Um homem que canta sabe
se impor e assim eu pensava. E tinha certeza que um dia me libertaria das
minhas trevas, tangendo as cordas de uma viola...
5 – Saí pela redondeza,
me oferecendo:
- Querem que o ceguinho
cante?
Alguns diziam:
- Experimente... Se agradar...
Eu sempre agradava. Ia recebendo
então, em paga, milho, feijão, arroz, farinha, e até
carne de bode. Quando enchia um saco de pano destas coisas que ganhava,
voltava á nossa casa. Minha querida mãezinha exultava de
satisfação:
- Não lhe dizia,
filho! Um dia... Não perca Amém esperança.
6 – Um dia, que dia horrível!
Eu tinha conseguido mais
prendas. Vinha carregado de coisas; trazia até um carneiro, que
recebera de presente. Tudo, graças ao meu canto, a tudo aquilo que
eu improvisava, divertindo o povo.
Pelo caminho eu pensava:
“Quando chegar em casa, que alegria a mamãe vai ter! Ela cuidará
do carneirinho... E quem sabe? Talvez até queira criá-lo.
Um carneirinho serve de companhia a uma pobre senhora que vive só,
com filho a percorrer o mundo... ”
Empurrei a porta da casa,
fui entrando.
- Mãe, mamãe...
Mas, aí meu Deus!
Mamãe mal podia falar. Torcia-se de dor. De repente, eu senti que
ela estava doente, e que sofria muito.
De manhã cedi saí
de casa, fui procurar o Dr. Batista de Queiroz.
- Doutor, minha velhinha
está doente... Veja o que pode fazer por ela.
O Doutor nada pôde
fazer por ela.
Aconselhou-me a chamar um
padre.
Com o coração
transpassado por uma dor, vi claramente que se tratava de caso perdido.
Mamãe se finava...
Sentado numa esteira, eu
tremia. Era difícil acreditar que minha mãe estava a caminho
do céu.
De repente, alguém
disse:
- Filho, vou ascender uma
vela... Sua mãe vai partir. E antes de ela se ir, ainda me falou:
- Meu filho, respeite a
todos e ande direito porque Deus no céu está vendo quem é
bom e quem é mau.
Aquela sua voz tão
doce que me acalentou, que me estimulou na vida, se apagou para sempre.
Eu chorava baixinho. E até
parece que meu próprio coração também chorava.
7 – Minha mãe, senti-a
então, morta, irremediavelmente morta.
Vieram umas pessoas estranhas
me ajudar, chorar comigo. O seu cadáver deitado numa velha esteira,
tal a pobreza em que vivíamos, sem que ei tivesse uma moeda, um
dinheiro que lhe comprasse um sepultamento honroso.
De madrugada, apareceu-me
um velho amigo, me dizendo:
- Anda, Aderaldo... Sei
onde estão hospedados uns paroaras. É gente rica que pode
concorrer para o enterro de sua finada mãe...
Dona Aninha ficou
vigiando o corpo de minha mãe. E eu fui a casa onde demoravam os
paroaras. Ai, me Deus! Os homens estavam de voz engrolada, e pelo fartum
da cachaça senti logo que se haviam exagerado na bebida.
- É este o cego que
canta? – perguntou um deles.
- Sou, sim senhor. E vim
aqui, batido pelo infortúnio, pedir a tanta nobreza um auxílio
para enterrar minha mãezinha...
Ouvi alguém dizer:
- Ah, morreu-lhe a mãezinha...
Houve uma espécie
de risada. Os corpos tiniram. Acho que se serviram outra vez.
- Bem, nós ajudamos,
mas primeiro você tem que cantar!
Outro mais atrevido:
- Falou que a mãe
dele morreu? Não vale nada! Quem tem a mãe viva, tem o Diabo
para atentar!
Aí, o sangue subiu.
Mas logo me lembrei dos conselhos que minha mãe me dera antes de
morrer. A provação começava. Era o mundo com sua corte
de maldade, me experimentamos.
- Cante, ceguinho, que nós
lhe damos uma esmola.
Eu temperei a garganta,
limpando o entalo, e com o coração cheio de dor, cantei então:
“ Oh!
Meu Deus do alto céu,
Lá
da celeste cidade,
Ouça-me
cantar á força
Devido
á necessidade,
Aqui
chorando e cantando
E mamãe
na eternidade...
Perdoe,
minha Mãe querida,
Não
é por minha vontade:
São
os torturas da vida
Que vêm
com tanta maldade,
Chorarei
meus sentimentos
De vê-la
na Eternidade!”
Nisto, uma voz de embriagado,
me falou assim:
- Pegue vinte mil réis!
Aqui ninguém quer ouvir choro!
E ajuntando:
- Vá-se embora.
Não lhe disse nada.
Guardei o dinheiro e saí sem nem esperar pelo guia, ás apalpepa
delas, arrimando-me ás paredes.
Fui para casa. Sabe Deus,
como me sentia amargurado.
Logo que o dia amanheceu,
com a féria de cantoria, fui alugar um caixão na igreja,
por cinco mil réis. Comprei cinco metros de chita preta para fazer
amortalha; um novelo de fio, por quinhentos réis. Com o fio as pessoas
amigas fizeram o cordão que as mortas, como a minha mãe,
levavam á volta do corpo, aquele tempo...
8 – Com dois mil e quinhentos
réis podia-se ter uma cova. A que abrigou minha mãe custou
isso. Uma missa, encomendava-se por três mil réis... Uma cruz
de madeira custava mil réis. E o toque de finado, triste e estirado,
não custava caro...
Eu comprei dois mil réis
de repiques de sino para o enterro de mamãe. Foi um triste bonito,
de dar vontade de chorar.
9 – Estava só no mundo.
Só é triste. Guardei quinhentos réis no bolso, pois
foi essa a fortuna que me sobrou. Para comigo mesmo disse: “Agora, é
ir pelo mundo, tentar a vida.”
Fiz pelo Sinal-da-Cruz;
me despedi de minha casinha velha, até dia do juízo. Parti
a pé, ouvindo o povo falar ao redor de mim: - “Coitadinho, sofreu
tanto! – Ah!, se ele pudesse ficar! – Como é triste um cego sem
mãe!”
Eu perguntei então:
- Pra que lado é
o nascente?
Uma voz me adiantou:
- É pra cá.
Na direção da Serra Azul.
E foi assim que eu saí
dali. Nem eu sabia ai certo, mas com aquela caminhada, eu começava
uma nova existência.
Andei, andei... Não
sei em que chão pisava, até que topei numa cerca velha. Quando
espinho me furou! Quanta urtiga me queimou!
De repente, vi-me entre
galinhas. Estava num galinheiro. O galo começou a cantar. Uma voz
gritou medrosa e apressada:
- Tem ladrão aqui!
Aí eu gritei também:
- Não é ladrão
não, gente!
Uma voz de mulher, que parecia
me ver, disse:
- Ah, é um ceguinho...
E eu, de voz trôpega,
cansada, me apresentei:
- Doninha, sou o cego Aderaldo.
Pegaram-me pelo braço.
Levaram-me para o anterior da casa. Deram-me uma rede. Nela eu dormi um
sono sossegado, o mais calmo daquelas últimas horas.
No outro dia, a dona da
casa me explicou:
- Vou lhe mandar, com uma
recomendação, á dona Santana. Lhe empresto um menino
para guia até a casa da minha amiga. Lá, tenho certeza, lhe
arranjarão alguma coisa...
As crianças, desde
esse tempo, sempre me ajudaram. Primeiro, foi o menino que me guiou até
a presença da Dona Santana; depois, o que foi comigo a casa de senhor,
rico fazendeiro, chamado Faustino.
Fiz questão, logo
que lá cheguei, de reunir tudo que era menino, principalmente os
pobrezinhos, ao redor de mim. Contei-lhes histórias-de-trancoso,
de assombração, de fada, de boi valente...
Foi o primeiro dia alegre
que passei na vida depois que morreu minha mãe. Eu achava que era
ela, minha mãe, que do Reino da Glória me ajudava.
10 – Um dia, eu estava arranchado
no alpendre de uma casa, quando o cantador Antonio Felipe apareceu, me
dizendo:
- Vim aqui cantar com um
cego. Onde está ele?
- Se procura o cego Aderaldo,
sou eu...
- Pois se prepare que eu
quero cantar com o senhor.
- Mas eu não sei
cantar direito – desculpe-me.
- Mas trate de cantar certo!...
Juntou logo gente ao redor
de nós. Uns diziam: - “O cego agora tem que cantar!”- “não
há de fazer vergonha ao outro!”
Antonio Felipe cantava:
“Tenho
atração de jibóia,
Sou forte
como um leão,
Na ciência
em cantoria
Sou igual
a Salomão,
A
força deste meu peito
Veio
do braço de Sansão.”
E eu, naquela hora, não
sei em que talento me segurei, mas lhe respondi em cima da bucha:
“No tempo
em que eu era moço
Comia
meus ensopado.
Agora
como sou cego
Só
como macaco assado.”
Foi um chuveiro de palmas!
Ave-Maria!
Pelas nove horas da noite
– corria um vento frio que arrepiava a garganta – os promotores deram por
encerrada a cantoria. Depois de contado o apurado (que não foi além
de dois mil réis) eu fiquei satisfeito porque me tocara dos tostões!
Mas qual! O cantador, meu adversário, todo enjoado, me falou grosseiro:
- Você, cego, só
fica com cinco tostões. Eu cantei mais. O senhor não cantou
nada.
Deus prepara sempre uma
hora para os mais fracos. Foi aí que um senhor de nome Pacheco,
aproximou-se de mim, dizendo:
- Deêm o dinheiro
todo ao cantador. O cego fica por minha conta.
Depois, tomou-me pela mão
e me levou á sua casa.
- Cego, se arranche aqui
comigo. Já mandei a mulher armar uma rede. Você aqui está
servido. Tem tapioca daqui a pouco... tapioca e queijo.
Foi esta a melhor refeição
que tive na minha vida, dada de coração, e chegando na hora
da precisão. Onde andará esse Pacheco, que eu não
sei se chamava Zé ou Antonio?
11 – Foi em casa do seu Pacheco
que criei uma poesia dedicada á minha mãe, “As três
lágrimas”:
“Eu ainda
era pequeno
mas me
lembro bem
de ver
minha pobre Mãe
em negra
viuvez.
Meu pai
jazia morto
Estendido
em um caixão
Pelo
primeira vez!
E a pobre
minha Mãe
Daquilo
estremeceu:
De uma
moléstia forte
A minha
mãe morreu.
Fiquei
coberto de luto
E tudo
se desfez
E eu
chorei então
Pela
segunda vez.
Então,
o Deus da Glória,
O mais
sublime artista,
Decretou
lá do Céu,
Perdi
a minha vista.
Fiquei
na escuridão,
Ceguei
com rapidez
E eu
chorei então
Pela
terceira vez.
Meus
prantos se enxugaram.
Das lágrimas
que corriam
Chegou-me
a poesia
E eu
me consolei.
Sem pai,
sem mãe, sem Vista,
Meus
olhos se apagaram;
Tristonhos
se fecharam
E eu
nunca mais chorei.”
12 – Saí pelo
mundo, como se diz, acompanhado dos bons conselhos de minha mãe
e da força de Deus, que fazia nascer em mim a poesia dos sertões.
Não posso dizer que pelo caminho da minha jornada só tenho
recebido aplausos. Quem é que pode andar pelo mata sem se ferir
em espinhos? Em Vazante, por exemplo, quando acabei de cantar, não
tive aplausos. Um menino deu um assobio fino, que até parecia assobio
de cão, e uma vaia sem tamanho desabou sobre mim como um pesadelo
depois de panelada.
Eu fiquei calado, ouvindo
a vaia, os assobios...
Que podia fazer? O que fiz:
chorar manso, arrependido.
Mas nessa hora apareceu
outro cantador, um cego de nome José dos Santos, que tomando a frente
daquele povo que exorbitava, assim falou:
- Não está
decente... O homem é cego como eu. Aposto como sabe cantar. Se ainda
não é bom na viola, tempo virá que ele agradará
a Deus e ai mundo.
E concluindo:
- Vou buscar meu violão,
e vou mostrar a vocês como esse cego é cantador de verdade.
Quando voltou, sentando-se
ao meu lado, disse:
- Cante, cego... cante “Eugênia”.
E eu comecei, a voz ensoluçada,
molhada mesmo. E fui destranvando, acertando os tons, pondo melindres na
voz...
“Vamos
Eugênia, fugindo
De tudo
alegre sorrindo
Bem longe
nos ocultar
Como
boêmios amantes
Por entre
vagas errantes
Pra ser
feliz, basta o mar.”
Mal acabei de cantar, ainda
com uns trêmulos na voz, reboou um aplauso tão forte que até
parecia trovão passando em cima da serra. E o peito deste cego velho,
da alegria, bateu descompassado mais uma vez.
13 – Os meus pés pisaram
a poeira de muitos caminhos!
Tenho comigo as lembranças
mais gratas de minhas cantorias, ainda no começo de minha
vida. Percorri todas as serras, alcancei os chapadões, varei a caatinga,
entrei no brejo...
Por toda parte eu levava
a minha voz, assim como um soldado leva a bandeira do seu batalhão.
Contei em Baturité,
em Canindé... Fui ao Crato, pisei o solo verdejante do Cariri...
Que terra boa, maravilhosa! Nunca meus lábios provaram melhor água!
Comecei, aqui escrevo, cantando
apenas uma ou duas horas. Depois de alguns anos, eu – modéstia á
parte – já era cantador de três noites! Ah, como isso me regalava
o peito!
Mas minha vida, eu sentia,
não devia parar. Tinha que ir adiante... Deixei o sertão,
acudi para Fortaleza. Nesta terrinha do sol, que também é
da Iracema, comecei cantando pelas pontas de ruas... Um dia, na Cachorra
Magra, outro dia, no Mata-Galinha.
Quem diria que um dia esse
pobre cego desvalido cantaria dentro dos palácios, para governadores
e potentados?
Mas nesse tempo – que era
por volta de 1906 – cantador não tinha grande valor para o pessoal
das capitais. Não haviam aparecido os estudiosos do folclore, a
gente boa que haveria de mostrar aos letrados todo o brilho da nossa arte...
Dentro do meu peito eu sentia
uma voz me chamando. Era o sertão.
14 - Cumprindo um roteiro
de cantorias, de Ubajara até Viçosa, parti para Pedro II...
Aí parei um pouco, estropiado. Havia ganhado oito mil reis, mas
estava com os pés - de tanto andar a pé - em petição
de miséria. Sentei-me á sombra do alpendre de uma casa, e
um menino, meu guia, começou a tirar os espinhos que me incomodavam.
Aí pernoitei. No
outro dia segui para Pimenteira, que soube da existência do maior
cantador do Piauí.
O dono da casa me falou
dele: - É negro afamado. O senhor toca?
Eu respondi: - Muito ruim,
mas toco.
Ele tornou, mais interessado
- E canta?
O homem bateu palmas! Era
aquilo mesmo que procurava, um cantador para defrontar-se com o maior cantador
do Piauí.
E eu, sem me conter de curioso,
simplesmente perguntei:
- Me diga uma coisa, meu
senhor, como é o nome desse cantador assim tão grande? É
o famoso Zé Pretinho.
Corria o ano de 1916.
E seria este o ano do meu
encontro com Zé Pretinho.
15 – Pelo arrastar de tambores,
pelo fruta de saias, pela conversa de homens, que me azuava o espírito,
eu podia bem imaginar que o terreiro estava repleto de gente. Depois me
contaram que estava mesmo.
Naquele instante eu queria
apenas a proteção de minha mãe, e que Deus não
me desamparasse também.
Não demorou, o dono
da casa bateu palmas, anunciou Zé Pretinho, fazendo-lhe os elogios
merecidos...
Eu, calado, segurava as
cordas do instrumento, meio nervoso, ciente da minha responsabilidade.
Uma voz de mulher, já idosa, cochichou pra outra:
- Eu não sei porque,
mas a minha fé é no cego!
Quando fui apresentado,
já estava mais animado. Que mais podiam dizer de mim. Um cego é
sempre um cego. Eu só era um pouquinho mais, porque cantava...
16 – Depois dessa “pega”
com Zé Pretinho, eu senti saudade do meu sertão, da minha
terra. Disse para comigo mesmo: “É hora de voltar, cego. Que vai
você fazer pelo mundo afora, sem conhecer alguém?”.
Voltei então para
Quixadá, em 1914. Ano de bom inverno, mas de guerra. O Juazeiro
estava pegando fogo. E quando morreu o grande J. da Penha, tudo piorou.
Depois desse ano, aí
meu Deus! Sem que ninguém percebesse, a famigerada seca chegou devagar,
como cobra venenosa. Foi a seca mais braba que se viu pelo sertão!
Pela primeira vez na vida dei graças a Deus por não enxergar.
Como é que eu, com um coração tão mole, ía
suportar tanta pena, tanta tristeza?
De manhã. De tarde
e de noite, era uma lamentação sem fim. Ninguém tinha
a mente limpa. Todo mundo amargurado, chorava a perda de, pelo menos, um
ente querido,
Aqui escrevo, e juro que
é verdade. Não me contive. Podia lá existir aquela
miséria? Não tinha nervos para suportar as histórias
que me contavam, de pai que vendera a filha, de filha que morrera de fome,
dentro da caatinga, e servindo de pasto aos urubus.
Meu coração
me dizia que eu deveria ir embora, tentar a sorte noutro canto. Se todo
mundo estava indo para o Pará, porque o cego também não
ía?
E lá me vi de viagem
para o Amazonas.
No navio eu via com os olhos
da alma o meu Ceará, minha pobre terra perseguida, que eu sentia
ficando distante. E cantei então:
“Canto
para distrair,
Este
meu curto poema:
Vou fugindo
da miséria
Que é
este o penoso tema,
Desta
terra de Alencar,
Deste
berço de Iracema.
Fugi com
medo da seca,
Do pesadelo
voraz
Que alarmou
todo o sertão
Da cidade
aos arraiais”.
Em Belém do Pará
eu conheci muitos cantadores. Mas o mais afamado, que emendou a camisa
comigo, foi o índio Azuplim. Nossa batida foi a que se segue...
Eu saí
do Ceará
Deixei
meu triste macambo,
Com medo
do dezenove,
Este
pesadelo bambo.
Vinha
o coronel Monturo
Junto
com doutor Molambo...
A dona
fome na frente,
Na cadeira
do trapiche,
Dizendo:
No Ceará
Tudo
é fofo e nada é fixe.
Juro
que aqui nesta terra
Não
vinga mais nem maxixe...
A dona
Fome me olhou
E disse
a mim: - Eu pego!
Eu disse:
- Não senhora!
Eu sei
por onde navego,
Quem
tem vista corre logo,
Quanto
mais eu sendo cego...
Segui
para Fortaleza,
Dei uma
viagem além.
O barco
era o “Maranhão”,
E até
corria bem,
Com três
dias e três noites
Chegando
nós em Belém...
Quando
eu cheguei em belém,
Me encostei
naquele cais.
- Aonde
vai esta linha?
Eu perguntei
a um rapaz
Ele disse:
- Nesta linha
Passa
um trem para São Bras...
Eu parti
para São Bras,
Para
casa de Gaudêncio
Que já
conhecia bem,
Ele,
Salina e Merêncio;
Junto
estes amigos
Não
pude guardar silêncio...
Fui para
Madre de Deus,
Terra
de um povo fiel,
Ali ganhei
qualquer cousa
Tomei
açaí com mel,
De manhã
peguei o trem,
Fui para
Santa Isabel...
Depois
fui para Americana,
Cantei
lá no Apéu,
Do sitio
de Sào Luís
Eu fui
pra Jambuaçu;
Eu cantei
no Castanhal,
E no
Igarapeaçu...
No primeiro
Caripi
Eu cantei,
lá fui feliz,
No segundo
Caripi
Cantei
tudo quanto quis,
E ali
tomei o trem,
Fui cantar
em São Luís....
Ali chegou
um convite,
Eu para
Muricizeira,
Depois,
cantei no Burrinho
Cantei
no Açaí Teuã...
Fui cantar
no Timboteuã...
Segui
para Capanema
Com coragem
e esperança.
Passei
uns dois ou três dias
E segui
para bragança,
Dizendo
sempre comigo:
- Quem
espera em Deus não cansa...
Quando
eu cheguei em Bragança,
Não
quis ir no Benjamim,
Não
encontrando hospedagem,
Me hospedei
num botequim,
Que era
coberto e cavaco
E circulado
a capim...
O dono
do botequim
Veio
a mim e perguntou:
- Cego
de onde tu és?
Me diga
se é cantador.
Me diga
se não tem medo
De azuplim
trovador...
Me perguntei:
- Não senhor!
Será
algum rio-grandense
Ou mesmo
um paraíbano,
Ou um
cantador cearense?
Ele disse:
- Não senhor,
É
um cantor paraense...
Quando
findei a palavra
Vi o
paraense chegar,
Ele trazia
consigo
Uma viola
e um ganzá,
E trazia
um tamborim,
Que é
instrumento de lá...
Ele afinou
a viola,
Quando
bateu no ganzá,
Deu um
tom no tamborim
Para
o baião entoar,
Eu tirei
a rabequinha
E fiz
a prima chorá...
C -
Eu lhe disse: - Oh! Paraense,
Es uma
ninfa de fada,
Teu cântico
me parece
A deusa
da madrugada.
Eu lhe
peço, amicíssimo,
Que cante
a sua taoda...
A - Cego,
minha toada é,
Um trabalhador
garantido.
Você
pra cantar mais eu
Precisa
ser aprendido,
Queira
Deus tu me acompanhe, ai ai!
Pra cantar
nesse gemido...
C - Meu amigo,
o teu gemido,
Tem destacado
valor,
Canta
bem perfeitamente,
Já
vi que é bom cantadot,
Mas amigo,
esse gemido,
Me desculpe
, que eu não dou...
A - Se
num dás um só gemido
Também
nãi és cantador,
Vá
cobrar logo o dinheiro.
Do mestre
que lhe ensinou, ai, ai!
O cego
já apanhou...
C - Se
gemer foi cantoria,
Você
é bom cantador,
Pois
gemes perfeitamente,
No gemido
tem valor,
Mas geme
com grande dor...
A - Ou
que gema ou que não gema,
A boa
palavra encerra,
Cego,
cante aqui mais eu,
Que eu
vim lhe fazer guerra,
Quero
que você me diga, ai, ai!
A linguagem
da minha terra...
C - A
linguagem da tua terra,
Não
é linguagem mesquinha,
É
toda no guarani
Estudada,
é bonitinha!
Para
que não perguntaste
A linguagem
da terra minha?...
A - Eu quero
é que diga da minha
Por que
muda de figura:
Cego,
diga para mim
O que
nós chama mucura,
Quero
que você me diga, ai, ai!
O que
é saracura...
C - É
verdade, essa linguagem
Muda
mesmo de figura,
O que
nós chama casaco
Vocês
só chamam mucura
E o que
nós chama sericóia
Vocês
chamam saracura...
A - Cego, diga
para mim:
O que
é jamaru?
Queira
Deus você me diga
O que
é jacuraru,
O que
é macuracar ai, ai!
O que
nós chama jambu...
C - É
o que nós chama cabeça,
Vocês
chama jamaru,
O que
nós chama tejo,
Vocês
chama jacuraru,
Tipi
é mucuracar,
E agrião
chamam jambu...
A - Cego, diga
para mim
O que
nós chama jibóia,
Quero
que você me diga
O que
é tiranabóia,
Diga
aí pra eu saber, ai, ai!
O que
é “pegando a bóia”...
C - No
Piauí tem um besouro
De nome
tiranabóia,
Nossa
cobra-de-veado
Cresce
aqui, chamam jibóia,
Em minha
terra almoço e janto,
... tanto
aqui só “pego a bóia”...
A - Cego, diga
para mim
O que
é a sacupema,
Veja
se você me diz
O que
é piracema,
Diga
aí rapidamente, ai, ai!
O que
nós chama panema...
C - O que nós
chama raiz
Vocês
chama sacupema,
O que
nós chama peixe muito
Vocês
chamam piracema;
A um
sujeito preguiçoso
Chega
aqui chamam panema...
A - Cego, diga para mim
A língua dos
Tupinambá,
A língua dos
Aimoré,
Ou dos índios
Caetá,
Ou sobre os índios
Tamoios
Ou índios Tamaracá...
C - Sobre as gírias
dos índios,
Desde o Norte até
o Sul,
Pixueira é
coisa fria,
Um beijo chama meiru,
Tacioca é uma é
uma casa,
Morada
de caititu...
A - Agora o
cego Aderaldo
Me respondeu
muito bem,
Vi que
gírias dos índios,
Ele segue
mais além,
Pelo
jeito que estou vendo
Você
é índio também...
C - Meu amigo
eu não sou índio,
Nasci
num pobre lugar:
Que é
tão propenso a seca
Que obriga
agente emigra
Sol danado
de Iracema,
Terra
de Zé de Alencar...
A - Cego, deixa
de mentira,
Tua terra
não tem nome,
Tua terra
é uma miséria,
Ë
lugar que não se come,
De lá
veio cinco mil,
Tudo
pra morrer de fome...
C - Dos cinco
mil que vieram
Algum
era meu parente,
Uma era
tio, outro primo,
Conterrâneo
e aderente,
Mais
esse povo só come
Massa
de figo de gente...
A - Saí
daí, cego canalha,
Com a
sua poesia,
Nesta
minha carretilha
Você
hoje se esbandalha,
Teu cântico
tem grande falha,
Quer
cantar mais não convém...
Você
somente o que tem
É
entrar no bacalhau;
Apanhar
de peia e pau
Cearense
aqui não vai bem...
C - De onde
tu vens contrafeito,
Cabeça
de onça mancho,
Bote
o matulão abaixo
E conte
a história direito,
Me diga
o que aqui tem feito
Por estes
mundos além,
Se você
matou alguém
Ou então
se fez barulho,
Vai muito
mau seu embrulho,
Paraense
aqui não vai bem...
A - Quando eu
pego um cantador
Dou três
tacada danada,
Lhe deixo
a cara inchada
De relho
e chiquerador,
É
o café que lhe dou,
É
isto que lhe dou,
E não
diz nada a ninguém,
Apanha
e fica calado,
Triste
e desmoralizado
Cearense aqui não vai bem...
C - Disse uma
velha na rua
Que em
outros tempos atrás
Você
e um seu rapaz
Lhe roubaram
uma perua;
Veja
que moda esta sua
Roubando
quem vai, quem vem,
Como
tu não tem ninguém
Mais
ladrão do que você.
Tome
lá meu parecer:
Paraense
aqui não vai bem...
A - O cantador
que eu pegar
Pelo
meio da travessa
Nem Padre
lhe confessa
Enquanto
eu não lhe soltar,
Dou-lhe
arrocho de lhe quebra,
Osso
e costela também,
Quebro
tudo que ele tem,
Deixo-lhe
o corpo em bagaço,
Tudo
quanto eu digo eu faço,
Cearense
aqui não vai bem...
C - Até
as moças donzelas
Pediram
aos cabras da feira
Para
meter-lhe a madeira
E arrebentar-lhe
as costelas.
Você
abra o olho com elas,
Boa surra
você tem,
Boa surra
você tem,
Neste
dia também vem
A velhinha
da perua
Quebrar-lhe
a cara na rua,
Paraense
aqui não vai bem...
A - Também
não quero brigar,
Não
sou homem de intriga,
Eu não
nasci para briga
E não
vivo de pelejar;
Também não
quero teimar
Porque
isso não convém,
Lhe venero
e quero bem,
Digo
isso pode crer;
Não
quero lhe aborrecer,
Cearense
aqui vai bem...
C - Amigo, como
mudou,
Que coisa
misteriosa!
Tens
o perfume da rosa
Que a
pouco desabrochou.
Por isso
tem o maior verdor
Do que
lá no bosque tem.
O anjo
lá de Belém
Ouviu
nossa cantoria,
Entrarmos
em harmonia,
Paraense
aqui vai bem...
Havia
quatro cervejas
Que um
coronel apostou
Dizendo
que todas quatro
Pertencem
ao vendedor
Nós
dois bebemos as cervejas
Nem um
nem outro apanhou...
Cidade de Bragança
– Estado do Pará, junho de 1919
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