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17 – Quando voltei
de Belém, encontrei o Ceará feliz. Que a terra boa é
esta, quando chove! Nem parecia aquela terra que anos atrás, me
deixara trespassado de dor! Todos que se encontravam comigo falavam dos
dias de chuva, da natureza bonita, do verde das arvores. E eu, francamente,
mal podia conter-me. Naquele instante, estava me achando um ingrato
por ter desertado da terra. E intimamente me dizia: “Não saio mais
daqui. Que venha a seca maior do mundo. Meu lugar é no Ceará”.
E fui ficando em Quixadá.
Só saí dali em 1923, para fazer uma cantoria em Serra Verde,
na casa do Sr. Francisco Botelho. De lá. Resolvi ir visitar o Padre
Cícero. De posse de uma carta de apresentação do Sr.
Botelho, que era íntimo do Padre, toquei para Juazeiro. A notícia
da minha chegada aquela terra hospitaleira correu logo. Todo mundo dizia:
- Chegou o cego Aderaldo!
Ninguém podia imaginar
como eu me sentia de estar ali, bem perto do virtuoso sacerdote. Passei
a manhã toda – pois chegara á boquinha da noite – conversando
com um e com outro, louco que as horas se passassem para eu ir até
a casa paroquial tentar falar com o Padre. Houve um momento em que eu disse
para o meu guia, que era um rapaz de certo trato:
- Nem sei o que será
de mim se o Padre Cícero não me quiser receber.
- Recebe, seu Aderaldo.
Quem não haverá de querer falar com o senhor?
- Será muito merecimento
de minha parte.
- Ora, Deus é grande...
Depois do almoço,
eu já podia me conter. Queria saber, apressado, se o Padre me recebia.
Desde rapaz ouvia falar na fama do Padre Cícero. Para mim ele representava
mais do que um condutor de almas: era o criador de Juazeiro, o guia espiritual,
daquela gente boa. Tinha pulso, era homem de boas virtudes, respeitador...
Estava nisso, quando alguém
me gritou:
- Cego Aderaldo, aí
vem o Padre Cícero!
Em me tremi todo. Nem sabia
o que fazer. Disse a mim mesmo:”Minha Nossa Senhora, valei-me.”
Contaram-me depois. O Padre
veio vindo, entrou pelo portãozinho da casa onde eu estava, e fez
com a mão um gesto para que a multidão, que o acompanhava,
ficasse do lado de fora.
E que abraço me deu
ele! Até hoje ainda sinto aquele cheiro de batina, de vela benta!
- Então, você
é que é o cego Aderaldo, famoso?!
- Quem sou eu, reverendo...
- Famoso e grande cantador.
– Depois, com mais calma – Será que o Senhor poderia me mostrar
os seus talentos?
E eu nem sei como – talvez
até com a ajuda de minha mãe que estava no céu – comecei
a cantar em atenção ao Padre:
À ordem do meu padrinho
Vou colher algumas flores...
Fazer minhas poesias
Cheias de grandes louvores
Saudando, primeiramente,
A Santa Virgem das Dores.
O Nome do Santo Padre
Anda pelo mundo inteiro,
A cidade está crescendo
Com este povo romeiro,
Devido ás grandes virtudes
Do santo de Juazeiro.
Nossa Senhora das Dores
É que nos dá proteção,
Ordena ao nosso bom Padre,
E ele cumpre a Missão,
Ensinando a todo mundo
O ponto da salvação.
Deixo aqui no Juazeiro
Todos os sentidos meus
Juntamente ao meu Padrinho
Que me limpou com os seus,
Vou correr por este mundo
Levando a bênção de Deus.
18 – Relembro esses
fatos e neles não posso esquecer o dia em que me encontrei com Lampião.
Nunca ninguém me julgou medroso. Sempre fui um homem confiante em
Deus. Quando me diziam:
- Cego, abra o olho! Tenha
cuidado, que Lampião vem por aí.
Eu balançava a cabeça,
nesse gesto muito meu. Que poderia fazer contra mim? Eu pensava assim,
e com razão. Não queria acreditar que alguém pudesse
ser perverso com uma pessoa que cumpria uma sina nu mundo, e não
vivia a malsinar ninguém...
Eu falava mais ou menos
nesse tom:
- Se se encontrar comigo,
é capaz de querer que eu cante pra ele.
- E o senhor canta, Cego?
- E por que não?
Canto! Quer ver, ele experimente!
E parece mesmo que Lampião
queria experimentar. Eu vinha para Juazeiro – terra de minha predileção
-, e mal cheguei lá, vieram me dizer que o terrível bandoleiro
estava na cidade. Para comigo mesmo disse: “Cego Aderaldo, a hora é
esta!”
E foi mesmo. O Dr. Floro
Bartolomeu, de noitezinha, mandou-me chamar. Aquele meu velho amigo me
recebeu cheio de alegria e foi-me dizendo logo:
- Aderaldo, eu e o Padre
Cícero temos uma surpresa para você.
- Que surpresa, gente? Será
que eu ainda tenho merecimentos?
- Tem e muito – disse o
Dr. Floro.
- Será que é
outra personagem ilustre que está aqui?
Aí ouvi a voz de
Lampião. Não era valente – me disse-, e tinha desejo de me
ouvir...
- Eu lhe mandei chamar –
acrescentou Lampião.
Então, não
me fiz de rogado. Encontrei-me na viola, toquei e cantei a gosto. E já
no fim da reunião, improvisei, historiando para o futuro:
“No ano de vinte e quatro,
A quinze de fevereiro,
Por ordem do doutor Floro
Viu-se entrar no Juazeiro
O grupo de Lampião
O famoso cangaceiro.
João Mendes de Oliveira
Foi quem lhe deu hospedagem:
Junto a trinta cangaceiros
Provou ter muita coragem,
De acolher aquela gente,
Que matar, a vantagem.
À tarde ai tive recado
Dado por um portador:
- O capitão Lampião
Mandou dizer ao Senhor
Que levasse o instrumento
E fosse lá por favor.
Eu peguei o instrumento,
Saí, e não meditei,
Para a casa de João Mendes,
Cheguei lá, me apresentei,
Lampião falou comigo
E eu lhe cumprimentei.
Lampião então me disse:
“Eu só mandei lhe chamar,
Foi para lhe conhecer
E ouvir você cantar,
Tudo que souber de mim
Você pode improvisar.
Meu padrinho Padre Cícero
Gosta muito de você,
Por isto eu gosto também,
Não tem que vá lhe ofender.
Tenho muito que fazer...”
Eu disse: Existe três coisas
Que se admira no sertão:
É o cantador Aderaldo
E a coragem de Lampião
E as cousas prodigiosas
Do Padre Cícero Romão.
Juazeiro é colocado
Em um soberbo recanto,
Terra de Nossa Senhora,
Por isto é que amo tanto
Ao meu padim Padre Cícero
Porque seu conselho é santo.
Lampião disse:”Aderaldo
Estou muito agradecido,
Dos elogios que fizestes
Me deixaram comovidos”.
E eu lhe disse: - Capitão,
Vou lhe fazer um pedido.
Lampião sorriu e disse:
“Então me diga o que é”.
- Capitão o que lhe peço
É uma arma qualquer,
Para eu ter como memória
Se acaso o senhor puder...
“Aderaldo, o seu pedido
Para mim foi muito belo.
Se você não fosse cego,
Lhe dava um papo amarelo;
Tome esta pistola velha,
Que matou Antônio Castelo...”
Ainda hoje eu tenho
Este objeto guardado,
Nunca emprestei a ninguém,
Dinheiro eu tenho enjeitado,
Até quinhentos mil réis
Por ela alguém tem botado.
Desde que recebi ela
Nunca ela mais atirou,
Nunca mais possuiu bala,
Nem vida alheia atirou.
Vive dentro de uma mala
E com o tempo enferrujou.
Em Arapiraca, Alagoas,
certa vez, quando me perguntaram que idéia eu fazia de Lampião,
peguei a viola e cantei esse improviso que ainda hoje é repetido
pelos sertões do Nordeste:
O retrato de Lampião
Eu descrevo com capricho:
Não brigando, era simpático,
Dentro da luta era um bicho,
Com o seu terno de mescla
E alpargata de rabicho...
Pulava igualmente a gato,
Com o rifle e a cartucheira
Mais um rifle pequenino
Que tinha na bandoleira
E um revólver Anagão
Chamado espanta-ribeira.
Ostentava na cabeça
Um grande chapéu
de couro,
O seu pescoço eua
ornado
Com um lindo colar de ouro.
Se lia no rosto dele:
“Não suporto desaforo.”
Zé Antonio do Fechado
Foi um grande valentão:
Zé Dantas, João
Vinte e dois
Era uma assombração...
Jesuíno brigou muito,
Mas não como Lampião.
19 – Corria o ano de
1931. de tanto viajar pelo sertão, palmilhando distâncias,
resolvi parar um pouco. Afinal, lá me sentia cansado de tanta cantoria.
Todo mundo – e isso não é exagero – queria ouvir-me. Fiz,
então, um plano para ganhar a vida de modo mais suave. Comprei um
gramofone, que era novidade em Fortaleza, e munido de disco e agulhas viajei
para o sertão. Havia empregado nesse instrumento cem mil réis,
mas como essa pequena fortuna pretendia ganhar pelo menos dez vezes mais...
eu percorria fazendas, cidades e vilas. O gramofone, reparti-o em dois.
Assim acomodava-o da melhor maneira num lençol que me envolvia a
tiracolo. Foi o sucesso dessa temporada! Quando me avisavam, de longe,
já gritavam:
- Chega, aí vem o
cego Aderaldo com um “bicho” esquisito!
O bicho esquisito era o
gramofone. E explicava, pondo sabedoria numa prosa esticada:
- Bem, meus amigos, trago
aqui a última novidade da cidade. É uma máquina assombrosa.
Toca tudo quanto se desejar ouvir!
A matutada ficava de boca
aberta, me olhando. Choviam perguntas:
.- Tem gente dentro desse
bicho?
- Como é que ele
canta?
E outros até espirituosos:
- O que é que tem
dentro dele que fala? Será visagem?
E assim eu ia dando minha
função. Cobrava cem réis por disco. Os discos de tanto
rodar. Se acabavam. O dinheiro, entretanto, caía do meu bolso. Os
homens, fumando, discutiam:
- Esse cego Aderaldo tem
parte com o cão! Vote!
- Mas depois ele tem que
cantar.
- É verdade. O cego
precisa cantar pra gente.
E eu, para encerrar a função,
tinha mesmo que cantar pelo menos uns versos. Que bons tempos aqueles!
20 - Foi no município
de Jequié. Eu havia sido chamado para uma apresentação
de gramofone na casa de abastado fazendeiro. Entre os curiosos, desembrulhei,
o gramofone, tirando-o do lençol já encardido de tanto viajar.
Coloquei a máquina em cima de couro de boi, que fora estendido ali,
no chão para isso, e diante da multidão. Que me aguardava
fui preparando o espetáculo. Coloquei a agulha, montei o fone. Dei
corda vagarosamente, dando voltas, parando, assuntando. Eu fazia tudo aquilo
calculadamente. Depois, muito sério, chamei o dono da casa, dizendo:
- Cel., encoste a
cabeça aqui e escute
Ele desconfiado veio vindo.
No meio da sua gente, abaixou-se, meio encabulado, esperando... De repente,
quando o disco principiou a girar, ecoando as primeiras notas de “O Guarani”,
ai! Deus do céu! Foi um fim de mundo! O homem afastou-se para trás,
aos berros, e todo aquele correu assombrado se benzendo.
Eu gritava:
- Acalma, gente!
É preciso ficar para ouvir..
Ninguém queria
saber de meus conselhos. E somente depois de muito tempo é que o
dono da casa regressou, pé ante pé, para ver de perto a boca
daquele bicho. Assustado ainda, me disse:
- Tome o seu tostão,
seu Aderaldo, mas por favor leve esse bicho “maldito” daqui...
21 – Foi em Apoli,
Rio Grande do Norte. Eu ia acompanhado do guia, um menino de seis anos,
quando a noite nos alcançou em pleno mato. “É o diabo”, pensei.
“Se não alcanço uma casa onde possa me arranchar, nós
dois vamos ficar á toa”. Afinal, toca para aqui, toca para acolá,
o menino descobriu uma casa abandonada. Dei graças a Deus. Entramos
na tapera e enquanto o menino me auxiliava a armar as redes, eu lamentava
o sucedido. Depois, vi que não adiantava reclamar o sucedido. Depois,
vi que não adiantava reclamar. Era deitar-se e entregar a alma a
Deus. No outro dia talvez surgisse alguém, um homem que nos quisesse
ajudar.
Deviam dar as duas
da madrugada quando o menino bateu na minha rede, amedrontado:
- Seu Aderaldo, o
senhor está ouvindo?
Até ali eu
ainda não tinha ouvindo nada. Prestei atenção.
Um gemido apertado, espremido, veio vindo de longe até perto de
mim. Aquilo, depois eu atinei melhor, parece que nascia do chão,
do outro lado de uma parede que nos separava de uma sala..
O menino, tremendo,
insistiu:
- Ouviu, seu Aderaldo?
- Ouviu...
Minha voz saiu-me
num sopro. A essa altura o gemido crescia e diminuía como se alguém
já não tivesse muita força para resistir à
dor que o atormentava. Levantei-me da rede e mandei o menino ir apanhar
um tição da figueira que eu fizera para afugentar bichos
e insetos. Eu dizia ao guia, baixinho:
- Vai na frente,
menino, de tição erguido. Se for bicho feio, enfia nele o
tição.
Fomos avançado,
pé ante pé, na direção do gemido, que agora
tomava canta da casa. De repente, o menino deu um pulo e gritou:
- Seu Aderaldo, é
uma cabra! – E como se a visse mas de perto – Está com uma bicheira
danada!
Caímos os
dois na gargalhada. Não digo que estivesse com muito medo, mas,
que estava meio assustado, estava.
Assim mesmo só
largamos a cabra depois que lhe fizemos o curativo da bicheira com cinza
da fogueira. Vendo-se só, aliviado, o animal desapareceu aos pulos.
Não sei era uma cabra mesmo. Já ouvi falar de muita histórias
em que o demônio aparece em figura de bode ou de cabra. Quem sabe
se não era ele, naquela noite, querendo e atormentar?
22 – Em 1933, eu
já possuía algum dinheiro. Economia amealhadas graças
ao gramofone que continuava sendo o sucesso por onde eu andava. Foi aí
que eu pensei em botar para render uma idéia que viera a mente:
a de ser exibidor de cinema. Comprei uma máquina “Pathe Baby” e
dois burros. Assim preparado, com alguns filmes variados que consegui,
resolvi percorrer outra vez o sertão. Só aceitava cantorias
bem pagas e só pelejava com cantores de cantorias.
Não posso
deixar de dizer aqui o meu cinema ficou logo famoso entre os sertanejos.
Os filmes eram antigos até estragados, e se ocupavam da chegada
do Rei Alberto, da Bélgica, ao Brasil, e de fatos históricos
da vida de Napoleão Bonaparte. A máquina ia rodando, e eu,
que sabia mais ou menos o que se desenrolava na tela (um lençol
branco armado na janela da casa), descrevia o filme. As pessoas diziam:
- E dizer que ele
é cego!
- Menino! Parece
que o homem vê!
- Não errou
nenhuma passagem do filme! Sabe tudo!
Hoje, passa aqui,
amanhã, passa acolá, percorri quase todo o sertão
do Ceará. O filme mais completo que tinha era a “Paixão de
Cristo”. Os velhos choravam quando viam Cristo rumando para o Calvário,
sob o peso da cruz.
Foi exatamente esse
filme que causou uma cena de muito vexame. Eu viajava pelo interior de
Pernambuco, quando, uma noite, fui interceptado por um grupo de cangaceiros
comandados por João 22. o desordeiro falava meio apressado e foi
logo me propondo uma exibição de cinema.
- Divertimento pro
meu pessoal. Arrume a sua estrovenga aí, que agente não tem
muita pressa.
- Mas, seu capitão...
- Tem que ser agora,
cego velho. Eu não posso deixar para outra vez. Vamos, arrume o
seu instrumento.
Estávamos
numa vilazinha, no terreiro da casa onde se acoitavam o bandoleiro e sua
gente.
Vi que não
havia outra saída. Era preparar a máquina e passar o filme.
E assim foi feito.
O filme era a “Paixão de Cristo”. Os cangaceiros o assistiam calados,
respeitosos. Quando um deles, a certa altura, se pronunciou, dizendo pilhéria,
João 22 ralhou:
- Cala a boca! Respeite
Nosso Senhor!
E o filme continuou
passando. A máquina tec-tec desfiava o filme.
Quando chegou a hora
da crucificação de Jesus Cristo, com os guardas malvados
pregando-o à cruz, João 22 não teve dúvidas.
Sacando do revolver disparou-o várias vezes sobre a tela, alvejando,
na cabeça, um dos soldados.
- Arre, miserável!
Aprenda a lição! – gritou.
Os homens riram com
aquilo. João 22 novamente sério, ralhou:
- Isso não
é vadiação!
E se dirigindo a
mim:
- Cego, passe essa
cena ligeiro. Não gosto de ver santo sofrer.
23 – Ah, depois do
gramofone, depois do cinema, eu vi que estava errado. O meu negócio
era empunhar a viola e tanger-lhe as cordas. Guardei, então, o gramofone
e a máquina de cinema, e saí novamente a correr o mundo,
como um trovador dos tempos antigos...
24 – Corria o ano
de 1942 quando cheguei a Fortaleza. Havia caminhado por todo o sertão.
Quantos terceiros visitara? De quantas cantorias participara? Será
difícil enumerar aqui, nestas lembranças, os desafios que
topei com os mais famosos cantadores do Nordeste. Não digo que não
ganhei glória e dinheiro. Por isso resolvi descansar um pouco e
tentar a vida em Fortaleza, onde o comércio, ouvira dizer – era
adiantado e de muita vantagem até mesmo para um cego como eu. Aos
sábados, eu pretendia aceitar desafios, convites para cantorias.
Poderia visitar cidades próximas da capital cearense... E assim
não estaria distante do meu interesses.
Que ramo de negócio
me agradaria?
Entrevistado pelo
repórter Pery Augusto, manifestei-lhe a vontade de me entender pessoalmente
com o interventor federal, Dr. Menezes Pimentel, a respeito de uma pretensão
que me cativava, a de instalar em Fortaleza uma bodega bem sortida. Logo
que entrevista foi publicada no jornal, o Interventor mandou-me, sem tardança,
ao Dr. José Martins Rodrigues, então secretária da
Fazenda. Este, por sua vez, enviou-me á consideração
do Dr. Raimundo Alencar Araripe, prefeito de Fortaleza, que me aconselhou
a ir a alfândega falar com o Dr. Luiz Sucupira. Ao receber-me, aquele
jornalista e homem público foi logo me dizendo: ‘Já conheço
o seu plano. Como é que um cego negocia? Você sabe? Acho que
o seu estabelecimento comercial vai quebrar ligeiro...”
Para encurtar: arranjaram-me
licença para funcionar a bodega e até ajudaram em provê-la
de um tudo. O ponto adquirido na Rua da Bomba, n.º 2, custou-me trezentos
mil réis. Sobre o balcão coloquei um rádio, que vivia
aberto para que os meus fregueses pudessem divertir-se escutando os sucessos
musicais do momento.
Os dias foram passando...
a freguesia aumentando... E aí o fiado começou. De repente,
sem exagero, quase todo mundo estava-me comprando fiado. Havia freguês
que me elogiava uma hora, enaltecendo minha cantoria, para no final da
conversa querer levar um quilo de carne seca para pagar depois. Mas qual!
Não nasci para bodegueiro! E aí sendo enrolado de todo jeito!
Uma vez vendi um
litro de aguardente por dez mil réis e a pessoa que o comprou, mostrando-se
arrependida – a desculpa era a maior do mundo – veio devolver a aguardente!
Quando recebeu o dinheiro de volta, e se retirou da bodega, eu fui examinar
a aguardente. Destampei a garrafa e tomei bem o cheiro no nariz. Que cachorro!
Era água pura!
Não posso
esconder a minha decepção. Não fui à falência
mais ligeiro porque a cantoria me salvava. Mas logo vi que era ganhar por
um lado e perder por outro. Ali estava o castigo de querer mudar o meu
destino de trovador errante.
Liquidei a bodega.
O prejuízo foi enorme. Mas nem me incomodei. Muito ao contrário,
mais feliz, comecei a cantar:
Voltei de novo a cantar
Porque esta é a minha sorte
Minhas cantigas me dão
Roupa comida e transporte.
Deixarei este dever
Quando um dia receber
O beijo fatal da morte!
25 – Desde 1942 que
resolvi ser francamente um homem da cantoria. Minha estrela para negócios
não brilhava coma intensidade daquela que me guiava para minhas
viagens pelo sertão, quando eu cantava para coronéis, para
homens ricos e de muitos talentos. Todos me queriam ouvir. E era um prazer
escutar, na roda que se formava em torno de mim, alguém se surpreender:
- Espere , é
esse o cego Aderaldo?
Eu mesmo, de viola
em punho, a garganta aberta, o peito altivo e desfiar no ar a minha inspiração.
E assim cantando, para ganhar a vida, transitei pelos lugares mais distantes.
Percorri Pernambuco; e estive no Maranhão. Voltei ao Piauí,
onde demorei em várias cidades, aceitando desafios.
Naturalmente tenho
muito a contar. Mas sempre que quero escrever minhas memórias, penso
num problema que me parece muito sério. Afinal de contas, o que
há de interessar mais aos meus leitores: as minhas anotações
de saudade ou os meus versos? Embora sinta que talvez fosse melhor fazer
as duas coisas, prefiro dar mais espaço aos meus versos, porque
neles está a verdadeira história de minha vida . Em cada
verso que fiz está a marca, o instante exato da inspiração,
o que valerá dizer, do meu sentimento. Nos meus versos, insisto,
eu me encontro de corpo inteiro, como se eu me pudesse enxergar a mim mesmo.
26 – De uns dez anos
para cá já não aceito desafios. Sinto que o meu corpo
não é o mesmo. Acho que já escrevi no livro dos cantadores
populares uma história bastante extensa. Não posso mais sofrer
vexames, pois a serenidade que só a idade avançada autoriza
não permite mais que eu me encha de ódio contra os meus possíveis
antagonistas.
Aos oitenta e tantos
anos sinto-me mais calmo, mais sereno. Tenho minhas vontades de ficar só,
de me esquecer do mundo... Cantador da minha idade sabe que não
pode mais ter ligeirezas de cantador de quarenta anos... é chegado
o tempo de honrar a viola nos momentos mãos solenes. Por isso, desde
1945 que não aceito mais desafios.
Hoje, eu canto para
entreter minha alma. E só canto para os que querem me ajudar a entretê-la.
27 – Na ordem das
confissões é preciso que lhes diga: nunca me casei. E na
verdade nunca tive vontade de me casar. E sem me casar, sempre tive uma
vida de chefe de família, pois, ao todo, criei vinte e seis
meninos. O último se chama Marconi. O penúltimo, Mário
Aderaldo Brito, casou-se há dois anos. Foi durante anos e anos o
meu acompanhante. Francamente, sempre me fez um homem feliz...
sozinho no mundo,
espero, com a graça de Deus, poder um dia fazer a minha casinha
e morar num bosque ouvindo a passarada cantar. Sabendo por que? Das coisas
que me lembro, do tempo em que eu enxergava – o céu, as árvores,
os pássaros, os rios – são as que mais me comovem. Eu queria
reuni-las para sempre perto de mim...
28 – Quando eu morrer,
gente, me deixem mesmo em Fortaleza. Não me levem para Quixadá.
A terra lá é dura, rija. Eu quero o chão fofo, mole,
da beira-mar.
E quando assim se
proceder, que venha um amigo descrever como eu morri, como se acabou um
cego cantador e tocador de viola.
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