Carlos Felipe Moisés
Praça
de Convites
Drummond e a mineração do outro
Haverá melhor homenagem póstuma ao
poeta Carlos Drummond de Andrade do que a releitura atenta de seus
versos? Avesso a toda pompa, ele certamente aprovaria a idéia do
preito silencioso. Quem sabe, assim, um pouco da intimidade desses
versos extravase da página impressa para ingressar no circuito mais
amplo da intimidade dos leitores. Leitura atenta e silenciosa: gesto
amoroso com que nos aproximamos de um segredo guardado a sete
chaves, no entanto exposto à visitação pública. Uma vez publicado, o
poema se oferece, na confissão aberta da palavra comum, e ao mesmo
tempo se retrai, pois o segredo revelado às vezes não é senão
desconfiança e perplexidade, perguntas sem resposta.
Bom mineiro, Drummond manteve durante
quase toda a vida a mesma atitude discreta e reservada,
aparentemente fria, anti-social, mas repassada de emoção e calor
humano, tanto mais densos quanto menos alardeados. É que desde
sempre alimentou a certeza de que são tortuosos os caminhos que
levam à comunicação verdadeira. Dificultá-los pelo recato, pela
suposta frieza e pela distância estratégica é só um jeito especial
de tornar ainda mais precioso o fruto almejado: o amor, o afeto, a
vida vivida e repartida, a solidão esconjurada. Facilitá-los pelo
escancaramento despudorado da própria alma é a desculpa dos que se
satisfazem com o fingimento e a casca oca do fruto exaurido antes de
amadurecer.
Por isso a dúvida e o ceticismo, o
desespero e a angústia. Mas também alguma esperança. Tudo sempre
contido no limite do decoro e temperado da mais fina ironia. Esta
parece ter sido a marca mais característica do perfil humano de
Drummond: um homem próximo de nós, todavia distante. Arredio mas
afável, severo mas bem humorado, ilhado em suas "especulações em
torno da palavra homem" mas também imerso na multidão, um pouco para
seguir o conselho de Fernando Pessoa: "Cerca de grandes muros quem
te sonhas". Lá dentro, um coração que se esconde ao se mostrar na
linguagem cifrada dos versos, espelho turvo onde se refletem,
simultaneamente, a sua e a nossa intimidade, entrelaçadas.
Já no livro de estréia, Alguma poesia
(1930), Drummond revela ter assimilado a melhor lição do modernismo:
o verdadeiro lugar da poesia é no centro da vida, no meio da rua.
Nada de palanque ou palco, nada de pose e afetação. A fala
despojada, o ritmo livre e descontraído, em vez da ênfase oratória.
Ao longo de mais de meio século, cada livro, cada poema, vai
compondo o roteiro involuntário de um homem simplesmente humano
(passageiro clandestino?) que busca apreender o lado menos precário
de sua humanidade: singela, mineira, pungente, universal. Ao
fazê-lo, traça o roteiro maior que cada um de nós percorre, enquanto
se arma entre poeta e leitor "a teia de problemas que existir/ na
pele do existente vai gravando".
Talvez seja isto mesmo: existir vai
gravando na pele do existente a sua teia de problemas. Gravando
apenas. Os problemas aí estão e ninguém os criou, porque todos nós
os criamos. É dessa co-responsabilidade que nos fala a "teia" do
poeta de Itabira. Cada um de nós ficará à margem e os problemas
individuais seguirão sendo pontos isolados enquanto não forem
entretecidos na forma de patrimônio comum. Quem nos guia na criação
desse tecido múltiplo é a voz do poeta, que humildemente parece
falar apenas de si, quando na verdade desfia esse longo monólogo
mais-que-perfeito --a fala coletiva-- que toca ao menos a pele de
todos nós, para quem sabe aí um dia vir a gravar-se, indelével.
Monólogo e diálogo, solidão e
convívio, autoconhecimento e conhecimento do outro. A partir da
oscilação entre esses dois pólos, muitas vezes conflitantes mas
inseparáveis, Drummond foi armando seu roteiro, feito de muitos
roteiros, variações em torno do mesmo apelo existencial. Cada poema
seu parece retomar incansavelmente a mesma perplexidade diante da
difícil comunicação do homem consigo mesmo, com o semelhante, com o
universo. Por isso foi avesso a toda pompa e se furtou ao
constrangimento das homenagens engalanadas. Por isso talvez
aceitasse, como admiti de início, esta homenagem mais singela, a
leitura atenta de sua poesia, para que a voz aí recolhida retorne à
vida de que proveio e rejuvenesça, como rejuvenesce cada vez que um
novo leitor dela se aproxima.
Se assim for, aquele roteiro-muitos-roteiros poderá ser
refeito e multiplicar-se, indefinidamente. E nem é necessário
(possível?) percorrê-lo em toda a sua extensão. Basta apanhar um
atalho qualquer: a excursão levará sempre aos "grandes muros" que
cercam, ao mesmo tempo, a mais secreta intimidade do poeta e o
coração da vida comum a todos nós.
Convido pois o leitor a percorrer
comigo um desses atalhos. Convido-o a ler, ou reler, um poema
drummondiano, um só, que não está entre os mais famosos mas trata
precisamente daqueles pólos conflitantes, mas inseparáveis, a que me
referi linhas atrás. Seu belo título, "Mineração do outro", já
contém, em sua singeleza e ambigüidade, a clara definição de uma
atitude: o outro não se oferece ao primeiro e superficial contato.
Para chegar até ele, há que minerar. Maneirar, mineirar: as minas
são gerais e o horizonte é belo. Tarefa árdua mas compensadora.
Talvez tenhamos a sorte de encontrar o metal precioso escondido no
outro: ou(t)ro. Quando não, o minerador encontrará, no ato de
minerar, a satisfação da procura em si, que é pelo menos equivalente
àquela que adviria do encontro da coisa procurada. Tao: o que
verdadeiramente conta é o caminho e não o eventual destino por ele
anunciado. Mas antes que a divagação em torno do título (o do poema
e o do livro de que provém, Lição de coisas) nos afaste do roteiro
pretendido, convém revisitar o texto, na íntegra:
MINERAÇÃO DO OUTRO
[1] Os cabelos ocultam a verdade.
Como saber, como gerir um corpo
alheio?
Os dias consumidos em sua lavra
significam o mesmo que estar morto.
[2] Não o decifras, não, ao peito oferto
monstruário de fomes enredadas,
ávidas de agressão, dormindo em concha.
Um toque, e eis que a blandícia erra em tormento,
e cada abraço tece além do braço
a teia de problemas que existir
na pele do existente vai gravando.
[3] Viver-não, viver-sem, como viver
sem conviver, na praça de convites?
Onde avanço, me dou, e o que é sugado
ao mim de mim, em ecos se desmembra;
nem resta mais que indício,
pelos ares lavados,
do que era amor e, dor agora, é vício.
[4] O corpo em si, mistério: o nu, cortina
de outro corpo, jamais apreendido,
assim como a palavra esconde outra
voz, prima e vera, ausente de sentido.
Amor é compromisso
com algo mais terrível do que amor?
--pergunta o amante curvo à noite cega,
e nada lhe responde ante a magia:
arder a salamandra em chama fria.
O sentido geral do poema não parece
difícil de apreender: a relação com o outro tende a assumir a forma
do intercâmbio amoroso. (O poeta o anuncia na terceira estrofe, para
confirmá-lo nos versos finais.) Entre seres humanos o que
verdadeiramente importa é o amor, o resto não passa de preâmbulo. Ou
epílogo. E a relação amorosa é marcada de traços negativos: estar
morto, monstruário de fomes, tormento, problemas, sugado, dor,
vício, ausente de sentido, terrível, amante curvo, noite cega...
Vale dizer, o dinamismo que articula o Eu e o outro, o indivíduo e
seu semelhante, segue rumos contraditórios, de tal modo que a
expectativa do prazer supremo, ou seja, a plena realização do
impulso amoroso, se vê sempre ameaçada pelo perigo da destruição,
quando não da morte.
Os extremos se tocam: o Eu e o outro
são pólos que se atraem e se repelem com igual intensidade. (Catulo:
odi et amo?) Com isso, o poema repõe em circulação um antigo clichê
da poesia universal, tal como Camões, por exemplo, o registrara, há
mais de quatrocentos anos: "...pois tão contrário a si é o mesmo
amor".
Só o leitor menos exigente, porém,
ficará satisfeito com esse sentido geral. Acima de tudo, é preciso
aceitar a dificuldade, enfrentar o desafio e concentrar a atenção no
fato de que o poema todo converge para aquele bicho estranho e
enigmático que nos espreita e interroga, lá do último verso, qual
esfinge: "arder a salamandra em chama fria". Só isso garantiria a
originalidade da composição drummondiana, de resto verificável em
outros níveis. (O poeta mineiro, evidentemente, não está apenas
repetindo Camões, apesar de dialogar com o velho bardo o tempo
todo.) A imagem hierática da salamandra, fecho e síntese do poema,
funciona como certeiro impacto junto à sensibilidade do leitor,
parecendo acrescentar nova reverberação ao antigo clichê: estranheza
e fascínio. E curiosidade, e desconfiança. Se conseguirmos explicar
a inusitada salamandra, estará explicado o poema todo. Com efeito, o
impacto do verso final (chave... de ouro?) exacerba em nós o desejo
premente de compreender, de decifrar o enigma.
Mas é preciso agir com cautela, voltando ao título e à
atitude por ele anunciada, a "mineração", para aplicá-la à própria
leitura do poema. Se for de fato fecho e síntese, a salamandra já
deverá estar presente nos versos anteriores, subentendida,
embrionária, prestes... a arder. Só ao primeiro contato é que sua
aparição semelha ser abrupta.
E assim é. Repare o leitor como
estranheza e enigma já aparecem, embora em doses discretas, com
menos intensidade, desde os versos iniciais. Basta perguntar: se os
cabelos ocultam, o que nos garante que a coisa ocultada seja "a
verdade"? O que vem a ser, aliás a verdade? Tais perguntas, uma vez
formuladas, repercutem no segundo verso, cujo início --"como
saber"-- parece repor a afirmação inicial, agora crivada de dúvidas.
A única resposta é: a verdade está sempre oculta; tudo quanto vemos,
tudo quanto julgamos saber, será sempre aparência (mentira?), tal
como os cabelos: vaidade, artifício, moldura. Mas este início de
verso, "como saber", deve ser lido também em relação ao que vem em
seguida: "como gerir um corpo". E a pergunta agora já pode ser esta:
"como saber um corpo...?", esse corpo cuja adjetivação o poeta
sabiamente desloca para a linha seguinte, para frisar que não se
trata do seu próprio corpo nem de um corpo qualquer, mas do corpo...
alheio, por isso distante. (Observe-se que o mesmo procedimento do
enjambement ocorre outras vezes no texto, sempre instilando forte
ambigüidade, sutileza, ironia.) Se fosse possível saber/gerir um
corpo alheio, teríamos a posse da verdade.
Curiosidade, especulação, anseio:
"lavra" inútil. E o título começa a se justificar... Enquanto o
indivíduo se dedica à tarefa contemplativa de averiguar onde se
oculta a verdade, qual a verdade do corpo, como sabê-la, como
geri-la --os corpos continuam a se autogerir e a esconder a verdade.
Uma verdade de que só eles, os corpos, sabem; uma verdade
inacessível à consciência, a alheia ou a própria. Desse modo, está
claro, o esforço "significa o mesmo que estar morto". A consciência
se vê paralisada pela dúvida e a vida prossegue.
A segunda estrofe gira em torno da
nossa já conhecida "teia de problemas": o Eu e o outro, enredados;
ação versus contemplação, percorrendo caminhos que se cruzam, num
emaranhado insolúvel. Fora do alcance da consciência (saber) e da
vontade (gerir), o outro aparece sob a forma assustadora de
monstruário. Enquanto se expõe em qualquer mostruário --sem o n-- o
outro está oferecido à contemplação alheia e ali permanece,
passivamente recolhido em si mesmo, "dormindo em concha". Mas, ao se
metamorfosear em "monstruário", a exposição-vitrina, revela estar
prestes a agredir, prestes a avançar avidamente sobre o observador
incauto. O que o outro oferece, na exibição do convívio social, são
"fomes enredadas": de um lado, carência, vontade de aproximação,
apelo, desejo de compartilhar afetos --mostruário; de outro, a
possibilidade (desejo?) de ferir e o medo de ser ferido --monstruário.
A agressão como forma de autodefesa. Catulo: odi et amo,
indissociáveis.
Como saber? Como eliminar da
vitrina-oferecimento aquele n cavernoso, gerador de monstros? A quem
compete a iniciativa? A mim ou ao outro? O poema parece dizer que
toda interrogação é inútil, pois toda iniciativa, "um toque", de
onde quer que provenha, desencadeia só o medo latente e a
negatividade. Podendo ver no meu gesto o aceno solidário, por que o
outro vê aí o inimigo? Podendo ler no gesto do outro "a fome", por
que leio eu "enredada"? Por isso todo gesto é só parcialmente
positivo, pois vem carregado de dubiedade, a "blandícia", e se
revela ou se transforma em tormento. É que toda iniciativa, como por
exemplo o "abraço", arma entre os parceiros algo que os transcende e
lhes escapa: a teia de problemas, uma teia que irmana e afasta, já
que nenhum dos envolvidos tem controle (como saber, como gerir?)
sobre a espécie de contrato precário que passa a vinculá-los, para
"além do braço".
Ao se defrontarem, tanto o Eu quanto
o outro correm o risco de perder a própria individualidade --o seu
"espaço", como foi moda dizer, por algum tempo--, pois cada qual se
vê na contingência de abandonar a condição de indivíduo autônomo
para assumir a de simples membro da parceria, coparticipante de uma
relação comum. Por isso eu tendo a ver no outro o inimigo, aquele
que me usurpa de mim mesmo, o responsável pela perda de minha
individualidade. E não me apercebo de que, na verdade, pode não ser
perda, mas ganho. De qualquer modo, é esse mesmo motivo que leva o
poeta a afirmar, em outro poema, da mesma admirável coletânea Lição
de coisas:
Os amantes se amam cruelmente
e com se amarem tanto não se vêem.
Um se beija no outro, refletido.
Dois amantes que são? Dois inimigos.
Estará o poeta querendo dizer que o
amor é uma aspiração impossível? Talvez sim, talvez não. O
pessimismo, embora inegável, pode ser só aparência. Mas voltemos à
mineração do outro: "não o decifras, não". Talvez tudo não passe de
uma teia de malentendidos. O amor não é, primeiro, "blandícia" para
só depois vir a ser "tormento": este já está implícito naquela e
basta a mais leve desconfiança para que venha à tona. Toda blandícia
é ambígua, certamente, é o afago que esconde, latente, o gesto
inamistoso. Mas, exatamente por isso, se fosse possível reduzi-la à
sua aparência, que é a sua dimensão positiva, o tormento jamais
adviria.
Por essa razão a estrofe seguinte, a
terceira, gravita em torno daquele aparentemente redundante "mim de
mim", agora de fácil elucidação: trata-se do meu segredo mais
ciosamente guardado, minha intimidade mais recôndita, aquilo que eu
próprio ignoro, apenas adivinho, mas sei que é algo substancial. O
"mim de mim" é o que permite que eu seja eu mesmo e não outro. Por
isso Fernando Pessoa recomenda cercá-lo de "grandes muros": minha
fortaleza. Mas, justamente porque precisa ser tão protegido, é
também minha fragilidade, aquilo que de mim facilmente se esvai, já
que é "sugado", como diz Drummond, no comércio com o semelhante e, a
partir daí, mal reverbera, reduzido a simples ecos: a voz original,
proveniente do "mim de mim", se perdeu.
Um toque, um abraço, um avanço: impossível resistir ao
apelo que vem de fora, proposto no monstruário ou na praça de
convites, mas também vem de dentro. Por que os meandros diriam
respeito somente a mim e não ao outro? Por que as sutilezas e
complexidades da autoconsciência não se aplicam também à consciência
do outro? É por assim refletir que o Eu rejeita o ensimesmamento, a
auto-reclusão; recusa-se a "viver-não", que corresponde à morte, ou
a "viver-sem", que é viver em estado de permanente carência. Seu
impulso mais legítimo é na direção do convívio e da afirmação da
vida, e aí começa a se desfazer o pessimismo de superfície. Ao
perguntar "como viver sem conviver, na praça de convites?", o poeta
demonstra que só a contradição antes assinalada, fruto da
desconfiança, é que leva a blandícia a se transformar em tormento e
o amor, em vício. Não é um resultado irreversível. A causa profunda
reside na dependência e na compulsão, na falência da vontade, na
abdicação da consciência.
Camões parece estar coberto de razão
ao afirmar que "tão contrário a si é o mesmo amor". Mas diversamente
do percurso camoniano, que aponta para a alma, a "alma minha gentil
que repousa lá no céu eternamente"; que aponta para o conforto
espiritual da idealização platônica; diversamente disso, o percurso
drummondiano aponta para o corpo, ponto de partida e de chegada, sem
ilusões de transcendência. Drummond aponta para o corpo, não para
negar a aspiração metafísica do poeta renascentista, mas para
torná-la imanente. O corpo não é só vil matéria, reduzida à
opacidade da contingência física; o corpo é também "mistério", é
"cortina de outro corpo, jamais apreendido". Repare o leitor como a
partir deste ponto (estamos nos versos iniciais da quarta e
derradeira estrofe) a linguagem do poeta se impessoaliza e é
imprescindível determo-nos nesse pormenor.
Até o final da terceira estrofe,
estávamos diante de uma voz pessoal, individualizada, a primeira
pessoa do singular, que se dirigia diretamente a um interlocutor: ao
outro. A mim, a você, a todos nós. A partir do verso seguinte o Eu
se ausenta e passa a falar de em vez de falar a. A isso me referi
quando afirmei que a voz do poeta se impessoaliza. Drummond fala
agora de um "amante curvo". Quem? Cada um de nós? Quem quer que
seja? Ele mesmo? O fato é que se trata de uma terceira pessoa
distante, ou distanciada. Por que? Exatamente porque, para que o
corpo se manifeste (esse corpo que não sabemos nem gerimos), é
preciso que o Eu, a subjetividade recôndita, se ausente, logo após
haver atingido sua expressão máxima, com o "mim de mim" da estrofe
anterior. A passagem ficará mais clara se a confrontarmos com outra,
de um livro mais recente (Corpo), em que Drummond retoma essa mesma
possibilidade de uma metafísica imanentista do corpo, já agora numa
relação subjetivada:
Meu corpo não é meu corpo,
é ilusão de outro ser.
Esse "outro ser" corresponde à "outra
voz" que, no poema em foco, se esconde por trás das palavras:
"prima", primeira, primordial; "vera", verdadeira. Mas ausente de
sentido. Ausência provisória, já se vê, pois o sentido primordial e
verdadeiro aí está, embora inacessível à consciência. O que chegamos
a pôr em palavras, mesmo nos momentos de mais extrema lucidez (é o
que parece insinuar o poeta), não passa de amostra precária,
representação imperfeita do que verdadeiramente sentimos e queremos.
Assim como o abraço se desdobra em
teia de problemas; assim como o "mim de mim" se desmembra em ecos;
assim também o amor talvez não possa ser contido em seus limites,
tendendo sempre a se transformar em outra coisa. Essa outra coisa,
dor ou vício, paradoxalmente não é mais amor, embora continue a
fazer parte integrante e inalienável da experiência amorosa. "Amor é
compromisso com algo mais terrível do que amor?" Ao perguntá-lo à
noite cega, o amante curvo (vale dizer, previamente derrotado,
voltando a se recolher para dentro de si mesmo) já sabe que não
obterá resposta. De fato, "nada lhe responde". A não ser, claro, que
se tome como resposta o mero adjunto circunstancial "ante a magia".
Que magia é essa? Bem, já o tínhamos visto, a magia que é "arder a
salamandra em chama fria". Podemos não saber de que se trata (quem o
sabe?) mas percebemos que tem a ver com a lógica dos contrários,
agora tornada cristalina.
O alquimista do verbete enciclopédico
pode vir em nosso auxílio: a salamandra atravessa o fogo sem se
queimar. Não esta, porém, cravada por Drummond no fecho de seu
poema. Esta não só arde, mas arde em chama fria. A magia consiste no
absolutamente inesperado, no imprevisível, no inexplicável. Assim
será o amor, como o entende o poeta, para que o desconcertante verso
final venha a servir de emblema ao poema todo. Emblema tanto mais
notável por reelaborar, com extrema originalidade, outro clichê
camoniano, aquele segundo o qual "amor é um fogo que arde sem se
ver". Assim, a praça de convites, referida de passagem, vem a dizer
respeito não só ao confronto genérico entre o Eu e o outro, mas
entre o poeta e seus leitores, assim como entre o poeta e seus
poetas --todos entrelaçados, incapazes de resistir ao apelo do
convívio.
Publicado pela primeira vez no Jornal da Tarde, São
Paulo, 12/9/87. Reproduzido no livro de Carlos Felipe Moisés
Literatura para quê? (Florianópolis, Letras Contemporâneas, 1996,
págs. 61-70)
Leia obra poética de Drummond
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