Carlos Felipe Moisés
Uma
poesia plena de severidade e contrição
Nos anos 30, insastisfeito com os
excessos da década anterior, Jorge de Lima planejou devolver à sua
poesia e à poesia brasileira em geral a dignidade supostamente
perdida. "O plano mais elevado para isso", ele esclareceria mais
tarde, "seria uma poesia que se restaurasse em Cristo (...) e
tivesse, não uma tradição regional ou nacional, mas sim a mais
humana e universal das tradições, que é a bíblica". De imediato,
obteve o apoio de Murilo Mendes, daí resultando o livro de poemas
escrito em colaboração, pelos dois, Tempo e Eternidade (1934), em
cujo pórtico se lê: "Restauremos a Poesia em Cristo."
O livro provocou reações fortes,
quase todas de indignação contra o ideal evangelizador de subordinar
a poesia à fé. Murilo publicou no ano seguinte Os Quatro Elementos,
ainda fruto da crise religiosa que então vivia, mas já sem
compromissos com aquele ideal. Jorge insistiu, em 1938, com A Túnica
Inconsútil, fazendo questão de frisar que se tratava da túnica de
Cristo. Mas nos anos seguintes abandonou o projeto, para se dedicar
à Invenção de Orfeu (1952), vindo a morrer logo depois. Apesar
disso, os dois poetas, momentaneamente reunidos, tinha desencadeado
um acalorado debate em torno da hipótese de uma poesia
religiosamente engajada, que chegou a ocupar boa parte do espaço
então generoso que a imprensa dedicava à literatura. Mas o debate
cedo definhou e a questão da religiosidade em poesia logo acabou
esquecida.
Foi preciso aguardar até 1967 para
que um jovem poeta gaúcho, estreante, Armindo Trevisan, ousasse
repor a questão, com A Surpresa de Ser, a que se seguiram mais dez
livros, até o recente Os Olhos da Noite, todos centrados, de algum
modo, no propósito de criar o que Jorge de Lima sem hesitar
qualificaria de "poesia cristã". Mas se o propósito é semelhante, as
implicações são outras. O compromisso religioso de Trevisan não
parece decorrer de razões histórico-literárias e é despido de
intenções evangelizadoras. Para ele, trata-se, acima de tudo, de
buscar a expressão fiel de uma inquietação existencial que o
acompanha desde sempre e que tem no binômio erotismo-religião sua
marca mais característica. Mário de Andrade, no caso, teria chamado
a atenção para a "sexualidade com que o poeta se atira sobre a
religião", como afirmou de Murilo Mendes.
Isso quer dizer, de saída, que
Trevisan não está empenhado em alardear a segurança da fé. Sua
inquietação religiosa prende-se, antes, a certo senso trágico da
existência, vivido pelo homem que se sente, por vezes, abandonado
por Deus, sem que isso no entanto lhe abale a crença; prende-se,
ainda, ao tumulto interior e à imaginação sem limites de um Murilo
Mendes, a quem ele se filia, mais do que a Jorge de Lima.
Uma das constantes dessa poesia tem
sido a forte consciência da gravidade da vida. Sua dicção é solene,
seu tom é no geral severo e insiste em sublinhar a dramaticidade da
condição humana, premida no embate entre o corpo e a alma. A
sexualidade vem a ser então preocupação obsessiva, mas Trevisan não
se propõe a condenar o corpo, não encara o apetite sexual,
inarredável, como intrinsecamente pecaminoso nem lhe advém daí
nenhum sentimento de culpa. O drama interior por ele exposto, em
sucessivas etapas, ao longo da obra, diz respeito ao receio de que o
apelo carnal o afaste da esfera do sagrado e, em sentido inverso, de
que a eventual entrega plena à contemplação mística o obrigue a
abdicar do corpo. Como ele não quer, nem pode, prescindir de nenhum
dos extremos, isso o leva à tentativa permanente de conciliá-los,
aspiração tão antiga quanto ambiciosa, responsável pelo travo de
angústia que se destaca em seus melhores poemas.
Ciente da impossibilidade da
conciliação, Trevisan poderia afirmar, com Murilo Mendes: "Seios
decotados não me deixam ver a cruz". Mas esse viés irreverente, tão
característico de Murilo, está ausente de sua poesia. O poeta gaúcho
opta por uma postura invariavelmente austera, plena de severidade e
contrição, ainda quando se volta para os motivos singelos da vida
cotidiana, como no livro mais recente, em que deixa provisoriamente
de lado a auto-escavação reflexiva a que se dedica desde o início.
Mas não se deixe o leitor
impressionar pelo exposto até aqui. O travo de angústia, a
severidade, a consciência da gravidade da vida e a recusa em apelar
para a irreverência são características consideravelmente
atenuadas... pela forma. Aí reside a contribuição peculiar de
Trevisan a uma temática de resto comum, não só a Murilo Mendes e
Jorge de Lma, mas ao Vinícius dos anos 30 e a Tasso de Silveira, ou,
recuando um pouco, a Junqueira Freire, Fagundes Varela, Antero de
Quental e tantos outros poetas da língua.
A linguagem, no caso, é que vem a ser
sui generis nessa linha de inspiração religiosa. A expressão de
Trevisan tende a ser contida, no encalço da concisão, e vem
desenvolvendo um original apego ao dístico e ao terceto, a estrofe
curta que se desdobra ao longo do poema com precisão e clareza, e
com uma uniformidade que não redunda em monotonia, já que a divisão
estrófica não coincide com a estrutura sintática. Isso impede o
derramamento e a exaltação oratória, comuns àquela tendência, e
imprime às suas composições um ritmo pausado, discretamente
cantante, conferindo-lhes uma sensação de leveza que contrasta
favoravelmente com a gravidade dos temas e contribui para atenuá-la.
Com esse perfil, a poesia de Trevisan
ganha destaque cada vez maior no quadro geral da sua geração, por
navegar contra a corrente de uma descontração às vezes excessiva.
Alheio às modas, ele insiste em trilhar o caminho literário, quando
não retórico, da inspiração originalmente religiosa. Bem pensadas as
coisas, sua poesia talvez tenha, sim, certa afinidade, mais
histórico-literária do que religiosa, com a "restauração em Cristo",
acalentada por Jorge de Lima. Sua elaborada austeridade talvez seja
uma "resposta" à tendência, comum a seus contemporâneos, de "pôr em
troco miúdo o amor e os sentimentos em geral", para dizê-lo nos
termos da (auto) crítica de Mário de Andrade à poesia de 22.
E no tocante ao sentimento religioso
da vida, ardentemente buscado pelo poeta, há três décadas, podemos
afirmar que tal sentimento talvez se esconda quando procurado
diretamente nos temas e motivos teológicos, mas se deixa capturar,
genuíno e pleno, quando Trevisan se volta, por exemplo, para a
banalidade da cena em que surpreende o filho brincando No Parque:
"Aonde se refugia a alma/de meu filho/atrás da bola? Agora,/cheira
uma flor, cata uma pedrinha./Vem a noite,/e o pega no colo.
Dormindo,/é como se estivesse a cavalo,/mundo afora. Mas está
ali:/sua alma enrolou-se no vento,/que o guarda,/como se guardasse
um pensamento,/um melão/no fundo de uma cisterna."
Carlos Felipe Moisés é poeta e crítico literário,
autor de `Subsolo' (Massao Ohno), entre outros livros
©Copyright
1998 - O Estado de S. Paulo - Todos os direitos reservados
|