Carlos Felipe Moisés
Poesia, História & Utopia
1
Neste nosso tempo de globalização neoliberal, ciosamente empenhado
em tecnologia de ponta, qualidade total, produtividade e eficiência
máximas, a poesia, surpreendentemente, continua a ser praticada e
consumida, em moldes e em escala nada inferiores aos de períodos
precedentes. Anacronismo, diria Augusto Comte, mero resíduo de um
estágio civilizacional “tecnicamente” superado. Mas, enquanto não se
dá a superação plena, a poesia segue tendo abrigo nos currículos
escolares de todos os níveis; eventos dedicados ao antigo gênero
literário ocorrem em grande número, desde congressos e simpósios
promovidos por especialistas, até encontros e recitais freqüentados
pelo público em geral; oficinas de criação literária,
predominantemente dedicadas à poesia, atraem um número considerável
de participantes; na internet, uma rápida visita, em abril de 2003,
registra 308 mil ocorrências para “poesia”, somente no universo de
língua portuguesa – cifra portentosa, mesmo sabendo-se que mais da
metade é ruído descartável; concursos, prêmios e festivais dedicados
ao gênero, muitos com regularidade de agenda, atraem milhares de
concorrentes; os editores relutam, mas os pequenos e os
independentes continuam a engrossar o acervo de títulos disponíveis;
e os meios de comunicação convencionais também relutam, mas não têm
deixado de dedicar à poesia o mesmo, modesto, espaço de antes. A
julgar por esses indícios, a velha arte de Homero e Vergílio
continua, no terceiro milênio, a ter presença marcante na vida de
grande número de pessoas.
Das mais primitivas e rudimentares formas de manifestação cultural –
voz, palavra, não mais –, a atividade poética tem evoluído ao longo
do tempo, adaptando-se às circunstâncias, mas parece conservar,
ainda hoje, muito do impulso de origem: presença e representação,
por meio da palavra, de uma voz humana, quase sempre individual, por
vezes coletiva ou anônima, que, para sobreviver ou até para existir,
precisa encontrar ouvidos humanos que a propaguem e multipliquem,
integrando-a ao cotidiano da vida comum. Não é surpreendente que
algo tão primitivo resista ao pragmatismo dominante e ao império da
alta tecnologia? Como explicá-lo?
Que papel representa para nós, hoje, o que chamamos poesia? Que
espécie de realidade entrevemos ou julgamos entrever num poema, por
exemplo, quando dele nos acercamos para ouvir a voz do poeta? Que
relações mantêm entre si a realidade “poética” e a “outra”, esta a
que todos estamos presos, antes e depois, ou para aquém e para além
do nosso contato com a poesia?
Tais são, em sua formulação mais singela, as questões que este
ensaio pretende investigar. Por várias razões, entre as quais não
conta pouco a mescla de cautela e ceticismo que deve mover todo bom
empenho ensaístico, proponho que nossa atenção se concentre, o mais
demoradamente possível, nas perguntas, atrás apenas esboçadas, para
só então arriscar uma possível resposta. O único propósito que nos
move é o misto de curiosidade e perplexidade sugerido na abertura.
Por isso convém insistir na reiterada ruminação da dúvida, sem
pressa de chegar a qualquer resultado. Nesta nossa era de urgência
global, que não tem tempo a perder, e que nos incita à corrida
desenfreada no encalço de mais produção, mais qualidade e mais
eficiência (ou seria eficácia?), proponho que nosso esforço adote,
de modo deliberado, o ritmo contrário, o ritmo pausado e moroso de
quem não tem convicções definidas a respeito do que seja “ganhar” ou
“perder” em matéria de tempo; o ritmo, em suma, de quem dispusesse
de todo o tempo do mundo, para dedicá-lo à questão da surpreendente
sobrevida da poesia.
Admitamos, de início, que não estamos no encalço de uma teoria;
pretendemos tão somente especular em torno das implicações de uma
prática, seja a prática dos indivíduos poetas, que insistem em
seguir produzindo seus artefatos chamados poemas, seja a prática da
leitura desses mesmos artefatos, atividade a que ainda hoje tantos
outros indivíduos se dedicam, regular ou esporadicamente. Admitido
isso, não soará estranho aceitar que nossa indagação prioritária não
seja “O que é poesia?”, ao menos não enquanto ponto de partida. Não
tencionamos adotar como meta, ou método, a fixação de uma base
teórica em cima da qual erguer (ou a partir da qual inferir) um bem
construído edifício. À margem dessa, nossa indagação poderá ser
“Para que serve a poesia?” ou “Que uso fazemos nós da poesia?”.
Isso nos levará a lidar não com bases seguras e firmes, mas apenas
com os tijolos possíveis de um edifício virtual, que por este
caminho, claro está, dificilmente chegaremos a construir. Mas não
importa. Se o esforço for bem sucedido, viremos a saber que
materiais podem formar a eventual concretização dessa virtualidade.
Talvez seja o caso de supor que a poesia só é o que é (embora esta
questão não nos preocupe) justamente por estar, há séculos, em
permanente construção. Proponho, em suma, que não nos mova o
propósito do cientista profissional, quaisquer que sejam a sua
ciência, a sua ambição e a sua “política de resultados”; proponho
que nos mova o anacrônico propósito do amador de poesia, aquele que
não tem pressa e encara com boa dose de ceticismo a qualidade dos
resultados possíveis.
2
Podemos então começar afirmando, sem maiores compromissos, apenas
para averiguar como se porta a afirmação e que ilações podemos
extrair dela: a poesia nos ensina a ver como se víssemos pela
primeira vez. Não é uma definição, não é sequer um conceito: a
proposição não aponta para a natureza intrínseca do objeto que
almejamos apreender, mas para seus efeitos. A hipótese de que a
poesia nos ensina a ver, ainda que a provássemos verdadeira, não nos
levaria a saber o que a poesia é, já que responde apenas à pergunta
subsidiária “Para que serve a poesia?”: serve para ensinar a ver
etc. Não obstante, penso que pode ser um bom ponto de partida, desde
que sejamos capazes de desmembrar a afirmação em partes (para em
seguida relacioná-las) e desvendar-lhe os subentendidos.
Se a poesia ensina, isso a torna, de saída, parceira ou coadjuvante
da pedagogia, mas não a iguala a esta última. Se ambas ensinam, a
primeira deverá incumbir-se de uma espécie de ensino vedado à (ou
negligenciado pela) segunda. Digamos que uma e outra, igualmente,
ensinem, e ensinem a ver – plataforma comum, que torna plausível a
aproximação e as iguala. Ver o quê? Informações, conteúdos,
conhecimentos. Mas antes de prosseguir convém esclarecer: o que
entendemos aqui por “pedagogia” é a atividade do espírito
responsável pela manutenção do conhecimento, ou pelo ensino, da
miríade de disciplinas ou ramos que formam a grande árvore do saber,
de modo que em cada um desses ramos, de acordo com os melhores
preceitos pedagógicos, ensina-se a ver o conhecimento adstrito a
esse mesmo ramo. A exemplo da pedagogia, a poesia também ensina a
ver, mas a ver o quê? Nada específico, nada adstrito a qualquer ramo
do saber. A poesia, a bem dizer, não ensina a ver nada; ou então, o
que viria a dar no mesmo, ensina a ver tudo. O que a poesia ensina é
apenas um modo de ver. A coisa vista, ou por ver, correrá por conta
de quem lê. Digamos que a ensinança poética está mais interessada no
processo da aprendizagem do que na ampla variedade dos seus
resultados.
Nossa análise vai ganhando corpo, sem pressa, num andamento que,
neste ponto, sou forçado a tornar mais moroso ainda, para que
firmemos posição em torno da questão terminológica. O território
poético, exatamente porque se detém no modo de ver e não na coisa
vista, ou porque não possui objeto específico, não dispõe de
terminologia própria. Ao discorrer a respeito do tema, as palavras
pululam à nossa frente, em alegre desordem, podendo adquirir
sentidos variados e contraditórios. Por isso tornou-se hábito, nos
esforços que almejam um mínimo de objetividade, nessa área, definir
preliminarmente uma “linha de abordagem”, sempre unilateral, da qual
se desentranha determinado repertório vocabular, via de regra
utilizado com o recurso constante a ressalvas do tipo “de acordo
com”, “segundo”, “na acepção de”, às quais se segue a nomeação da
autoridade ou da subdisciplina de maior prestígio, no momento. O
procedimento, não raro, resulta em inócuos exercícios de
obscurantismo, como se “terminologia própria” fosse sinônimo de
jargão esdrúxulo e incompreensível, disfarce de um dogmatismo
acovardado, que só faz aumentar a desordem – privando-a, o que é
pior, da alegria natural.
Para preveni-lo, nada melhor do que aceitar com clareza: não
dispomos de uma terminologia própria. Não que a desprezemos, na
verdade pugnamos por chegar a esse estágio, mas não temos uma
ciência da poesia, em sentido estrito. No entanto, o reconhecimento
desse fato não libera nem aprova a desordem generalizada do tipo cada-qual-use-os-termos-que-bem-entender. Não temos um objeto bem
definido, temos vários; não temos um método comprovada e
universalmente eficaz, temos muitos; não temos uma terminologia
própria – mas isso não nos deve induzir à anarquia ou ao império do
subjetivismo. Deve, isto sim, estimular-nos a um esforço de rigor
ainda maior, para além do pseudo-esforço de adotar uma das várias
terminologias ou “teorias” disponíveis no estoque de plantão e
aplicá-la mecanicamente.
Assim, tal como procedemos em relação ao termo “pedagogia” (sei bem
da margem de arbitrariedade aí envolvida, mas isso não nos deve
incomodar para além do razoável), convém esclarecer, também: “ver”,
na afirmação tomada por nós como ponto de partida, e nos comentários
subseqüentes, vai aqui empregado como equivalente de “conhecer” ou
“compreender”. Podemos então refazer a proposição anterior e avançar
um pouco: tanto o poeta quanto o pedagogo ensinam a conhecer ou a
compreender. O primeiro, como não detém o conhecimento de nenhum
objeto específico, atém-se ao ato que pode conduzir à apreensão de
objetos em geral; o segundo, por se definir em razão do conhecimento
especializado que detém, concentra-se em ensinar esse mesmo
conhecimento. Mas a moderna ciência pedagógica (qualquer
principiante o sabe) garante que ensinar não é transmitir
conhecimentos mas, sim, desenvolver habilidades e competências.
Quererá isso dizer que nosso esforço terá sido em vão e que ensinança poética e ensinança pedagógica resultam, afinal, em ser a
mesma coisa? A pedagogia, adequadamente entendida como usina onde se
forjam habilidades e competências, não cumprirá com o papel
ensinante que vínhamos tentando adjudicar à poesia? Talvez sim,
talvez não.
“Ensinar não é transmitir conhecimentos mas, sim, desenvolver
competências e habilidades” (e seu corolário: “Aprender não é
adquirir conhecimentos mas...”) – tal é a lição que todo pedagogo,
hoje, sabe de cor e endossa sem hesitar. Todavia, ponderemos. Essa
lição constitui, de toda maneira, um conhecimento, que pode ser
meramente transmitido, sem que para isso nenhuma habilidade ou
competência se desenvolva, seja da parte de quem ensina, seja da
parte de quem aprende. Por outro lado, desenvolver competências e
habilidades, para quê, senão para que conhecimentos sejam
transmitidos e/ou adquiridos? Não será por outro motivo que
professores de todos os graus, em início de carreira, queixam-se
sistematicamente de que não sabem ensinar, não obstante conheçam de
cor a sábia e inquestionável lição. Assim, a despeito de ambas
partilharem o mesmo bom propósito ensinante, a poesia de fato ensina
tão somente um modo de ver, enquanto a pedagogia, como prática,
embora ciente de que não deveria ser assim, ensina conhecimentos
mecanicamente reproduzidos e reprodutíveis.
Até aqui cobrimos apenas a primeira parte da afirmação tomada como
ponto de partida, aquela que designa a plataforma comum a poesia e
pedagogia: “a poesia nos ensina a ver”. Resta esclarecer qual seria
o modo de ver ensinado pela poesia, expresso na segunda parte: “como
se víssemos pela primeira vez”. Até aqui, a análise pôde ater-se aos
sentidos denotativos da frase e, de minúcia em minúcia, de
subentendido em subentendido, fomos apreendendo todas as implicações
do primeiro termo do binômio. Todas? Provavelmente, não: só aquelas
com que nosso esforço foi capaz de atinar, mas de qualquer modo
chegamos até aqui, sem grandes sobressaltos. Daqui por diante,
porém, deparamo-nos com um dado novo, o obstáculo da comparação:
“como se” – que talvez seja, aliás, o obstáculo poético por
excelência, a linguagem dita figurada. A partir do “como se”, não
temos mais cláusulas firmes, que permitam divisar, no nível
denotativo, seu campo próprio de significação.
A partir deste ponto, não podemos contar
apenas com a pura
intelecção; somos convidados a “figurar” (formar ou compor a figura
de) alguma idéia que não nos é oferecida diretamente, mas por
intermédio de uma sua imagem refletida no espelho da comparação.
Para atinar com a segunda parte da hipótese que nos ocupa, é preciso
que o ato cognitivo se faça acompanhar de alguma competência
imaginativa – que certamente será, aliás, uma das competências que a
moderna pedagogia nos convida a desenvolver. Mas, fixemos desde já,
não se trata de substituir a compreensão pela imaginação, tão logo
soe o aviso do “como se”. O adequado entendimento da afirmação
continuará a ser, necessariamente, em toda a extensão, um ato
cognitivo, que simplesmente não teria como dispensar o concurso da
imaginação.
Tentar compreender a segunda parte da hipótese
apenas com os
recursos da imaginação, induzirá o leitor-intérprete a compor
devaneios soltos no ar, fantasia subjetiva, desgarrada da realidade,
textual ou outra, a ser decifrada. Tais devaneios não têm nenhuma
contra-indicação, em si; entregar-se a eles é auto-estimulante e
pode resultar em valiosos exercícios de criatividade. Mas não é
disso que se trata, aqui. Nossa meta não é tomar aquela hipótese, ou
parte dela, como pretexto para criar ou inventar; nossa meta é
compreender o sentido ou sentidos das palavras que nos desafiam, no
papel. Imaginação, então, para o que nos importa, é forma de
conhecimento objetivo e, portanto, não se confunde com a livre
fantasia – rico e proveitoso exercício, repito, desde que não se
pretenda tomá-lo como equivalente de “interpretação”.
Mais adiante voltaremos a este ponto, crucial, das relações entre
cognição e imaginação[1] ; por ora, fiquemos com a idéia básica: “como
se víssemos pela primeira vez” é algo a que não temos acesso direto
– assim como temos acesso direto, por exemplo, à asserção “a poesia
ensina a ver”. Nossa pergunta é: em que consiste “ver como se
víssemos pela primeira vez”? Não se trata, apenas, de ver isto ou
aquilo pela primeira vez. Fosse este o caso, a poesia não teria nada
que ensinar, não haveria necessidade de recorrer à imaginação.
Quando nos deparamos com um objeto (ou coisa ou idéia) nunca antes
visto, basta vê-lo; ainda que seja pela primeira vez, não há
necessidade de recorrer a nenhum “como se”. O excêntrico modo de
ver, ensinado pela poesia, incita-nos a encarar o objeto (ou coisa
ou idéia) já visto uma ou mais vezes, como se nunca o tivéssemos
visto antes.
“Ver como se víssemos pela primeira vez” quer dizer: abstraindo o
fato de que já vimos, assumindo a postura da tábula rasa – ou da
ignorância estratégica, digamos. Tal postura é possível? Não, diria
o pedadogo ou o cientista profissional: se já vi, se é possível dar
algo como já tendo sido visto, não há por que tentar reproduzir a
“primeira vez”, exercício inócuo e irrealizável. Se já vi, o que
tenho a fazer é seguir adiante, sempre disposto a ver outra coisa,
mais coisas – coisas novas, cuja aquisição será acrescentada ao já
visto anteriormente, na ciosa e segura construção do grande edifício
da ciência, em permanente expansão. Mas, antes de dar inteira razão
ao inexcedível bom senso do cientista pedagogo, e abandonar a
hipótese de que partimos, examinemos de perto os subentendidos que
insidiosamente se escondem tanto na excentricidade do modo poético
de ver como no pragmatismo cumulativo da ciência profissional do
pedagogo.
O poeta não desperdiçará seu tempo, e o nosso, ensinando-nos a ver o
que não tenhamos visto antes: a pedagogia convencional dá bem conta
dessa tarefa, corriqueira, e a poesia não teria, aí, muito que
fazer. “Ver como se víssemos pela primeira vez” só faz sentido (para
além ou aquém da pedagogia, evidentemente) caso se aplique ao já
visto, ou ao já conhecido, a fim de que este seja percebido como se
desconhecido fosse. O modo de ver ensinado pela poesia pede a
negação, ao menos provisória, do conhecimento enquanto resultado, a
fim de privilegiar o próprio ato de conhecer, entendido como
disponibilidade, como ato a ser reencetado ab ovo, incansavelmente,
a cada objeto (ou coisa ou idéia) com que nos deparemos. Se formos
capazes de aprender a lição da poesia, não haverá mais objetos
definitivamente conhecidos: todos serão, sempre, novos e
desconhecidos, à procura do seu lugar na árvore do saber.
Todo conhecimento adquirido condiciona e prefigura a aquisição de
novos conhecimentos – tal é o pressuposto que permite à ciência, em
sentido estrito, avançar e progredir. Ver tudo, sempre, como se
fosse pela primeira vez, como ensina o poeta, resulta em marcar
passo, por força da repetição incessante do mesmo esforço cravado
naquele ponto imaginário da potencialidade ilimitada, a partir do
qual todos os edifícios podem ser construídos, mas a partir do qual,
também, caso insistamos em ver (sempre) como se víssemos pela
primeira vez, talvez não cheguemos a construir nenhum. Há séculos,
isso que chamamos “civilização”, esta civilização que hoje se
espalha globalizada e urgente por todos os cantos do planeta; a
civilização que tem no seu bojo o que arbitrariamente vamos
designando por “pedagogia”; há séculos esta nossa civilização optou
por construir um só e determinado edifício, abrindo mão dos demais.
Desde então, o poeta, em sua insubmissão, recusa-se a colaborar e
insiste em recorrer ao “como se”, para acenar com outros caminhos.
Com isso, o ensinamento poético resulta em ser uma antipedagogia. A
poesia não espera e não aceita que conhecimentos se acumulem para
formar um todo homogêneo e coeso; para a poesia, esse todo não passa
de miragem, impostura. A poesia ensina que o todo não é a soma das
partes; é, antes, cada edifício contido em cada tijolo. (A lógica
formal não teria por quê, nem como, quantificar os dados fornecidos
pela excêntrica lógica poética.) Em matéria de conhecimento, desde
que se trate de poesia, o único pre-requisito é estar apto a ver,
enquanto ato inaugural, semente de qualquer árvore do saber. A
poesia, em suma, sempre atuou e continua a atuar no sentido
contrário ao esforço de séculos, que veio a culminar na entronização
da idéia de que o ser humano não passa de máquina que produz e
consome; que veio a culminar na devastação concertada e consentida,
hoje designada por globalização.
Poesia e insubmissão caminham juntas e a razão é simples: uma vez
esboçado, o edifício por construir (seja o que hoje habitamos, seja
outro qualquer) prefigura e controla os novos conhecimentos a serem
adquiridos, que só serão novos na sua formulação exterior. Diante do
dado novo, só o olhar poético será capaz de apreender a novidade que
aí se esconda; o olhar guiado pela pedagogia utilitarista fará
apenas incorporar mais um tijolo ao edifício, distorcendo e
enquadrando a novidade. O conhecimento pedagógico, cioso dos
resultados e da finalidade prática dos seus propósitos, não vai além
do re-conhecimento, pois só sabe operar no âmbito da familiaridade,
debaixo da segurança do já conhecido. O conhecimento autêntico (não
aquele que se limite a trabalhar em série, para acumular resultados)
atua sempre no âmbito do desconhecido, para efetivamente conhecer em
vez de apenas re-conhecer. “A poesia nos ensina a ver como se
víssemos pela primeira vez” é, afinal, a lição elementar que podemos
extrair não dos filósofos ou dos pensadores, dos especialistas em
arte poética ou dos pedagogos (todos de um modo ou de outro
governados pela ciência profissional), mas do poeta genuíno:
O meu olhar é nítido como um girassol.
Tenho o costume de andar pelas estradas
Olhando para a direita e para a esquerda,
E de vez em quando olhando para trás...
E o que vejo a cada momento
É aquilo que nunca antes eu tinha visto,
E eu sei dar por isso muito bem...
Sei ter o pasmo essencial
Que tem uma criança se, ao nascer,
Reparasse que nascera deveras...
Sinto-me nascido a cada momento
Para a eterna novidade do Mundo...
[2]
Não há como evitar: não obstante enraizada na terra firme que todos
pisamos, a poesia acaba sempre por alçar vôo na direção da utopia.
Ver e aprender correspondem a uma aspiração natural em todo ser
humano, e se nos deixarmos guiar pelo pedagogo não haverá
dificuldade em divisar a exeqüibilidade da aspiração: nada impedirá
que se construa o edifício pretendido. Mas, se dermos ouvidos ao
poeta, correremos o risco de ficar paralisados. Ou não resistiremos
ao impulso de pôr abaixo todos os edifícios – metaforicamente, bem
entendido. Mas, se calhar, até literalmente, como propôs Marinetti[3] ,
no início do século passado.
O propósito aparente de pedagogia e poesia, entendido em termos de
sua substância, é o mesmo: ver e aprender. “Ver como se víssemos
pela primeira vez”, porém, nos leva mais cedo ou mais tarde a
indagar se esse, que se nos oferece aí fora, é realmente o edifício
que pretendemos, se essa é a morada capaz de abrigar o melhor do
nosso destino. Se pelo menos hesitarmos em responder, ficaremos
paralisados em face da tarefa impossível que então se descortina:
adquirir ou recuperar ou inventar “o pasmo essencial / Que tem uma
criança se, ao nascer, / Reparasse que nascera deveras”. Só se fosse
capaz de sentir-se “nascido a cada momento / Para a eterna novidade
do Mundo” é que o homem estaria apto a construir um edifício menos
desumano do que este em que lhe coube morar. Utopia, sem dúvida.
Valeria a pena persegui-la? Mas logo voltaremos ao tema capital da
utopia. Por ora, e para encerrar este tópico, tratemos de amarrar a
heterodoxa parceria, que vimos tentando delinear, entre poesia e
pedagogia, recorrendo mais uma vez à voz do poeta:
O essencial é saber ver,
Saber ver sem estar a pensar,
Saber ver quando se vê,
E nem pensar quando se vê,
Nem ver quando se pensa.
Mas isso (tristes de nós que trazemos a alma vestida!),
Isso exige um estudo profundo,
Uma aprendizagem de desaprender.
[4]
E aí temos a idéia da poesia como antipedagogia: “uma aprendizagem
de desaprender”. Ensinando-nos a ver como se víssemos pela primeira
vez, o poeta nos induz a conviver com a aparente tautologia segundo
a qual para ver é preciso saber ver, não basta olhar para as coisas
(supostamente) já vistas e catalogadas por outrem. Mas,
incongruência das incongruências, se o saber ver trouxer como
resultado algo que eu possa considerar como tendo sido visto, daí
por diante já não saberei ver mais nada, serei capaz apenas de
re-ver, movido pelo intuito exclusivo, embora subliminar, de
confirmar e reforçar o já visto.
Mais tautologia? Não chega a tanto, é só a platitude do óbvio: para
estar apto a conhecer é preciso desconhecer. Se eu aceitar ou
presumir que conheço, ainda que não se trate de operações
inteiramente claras para minha consciência, o cognoscível se
reduzirá às dimensões do já conhecido, que passará a se reproduzir,
em série, embora eu possa me iludir com a agradável sensação de
estar “descobrindo” novidades, no rumo seguro do avanço e do
progresso... sempre no mesmo lugar. Quererá isto dizer que, quanto
mais civilizados – nos limites estreitos do que nos habituamos a
chamar “civilização” – mais empenhados estamos na plena recuperação
da barbárie?
O fato é que, para verdadeiramente aprender e avançar (mais um
paradoxo não causará grande transtorno), é necessário, antes,
desaprender o anteriormente aprendido, por valioso e seguro que nos
pareça. A poesia ensina, subliminarmente, a estratégia da
insubmissão. Por isso, os guardiães do edifício, qualquer edifício,
não sabem como lidar com ela, embora não hesitem em aparentar
sabê-lo.
3
A onda predatória que se alastra pelo mundo, hoje, com sua urgência
neoliberal e globalizadora, pode levar-nos a julgar que a
insubmissão do poeta seja fenômeno recente, resposta imediata à
solicitação de momento. Não há dúvida de que a atitude de indignação
e revolta, formadora da antiga variante literária que é costume
designar por “poesia de protesto” ou “de resistência” é
intrinsecamente afim da insubmissão que aqui tratamos de descrever,
mas não deve ser confundida com esta última. O espírito de
insubmissão, entrevisto na hipótese de que “a poesia nos ensina a
ver como se víssemos pela primeira vez”, deve ser entendido não em
termos do libelo ostensivo contra a desolação reinante no mundo
desumano que a globalização vem construindo, mas como rebeldia
ontológica, recusa radical em aceitar os fundamentos que
possibilitam essa construção. Insubmissão designa a condição
intrínseca e despremeditada que enforma a postura genuinamente
poética, desde tempos aurorais, e não a reação deliberada, pontual,
contra esta ou aquela tirania, esta ou aquela ignomínia.
“Tempos aurorais”? Não nos deixemos impressionar, é só um modo de
dizer; e não nos entusiasmemos demasiado com o eventual fascínio do
aliciamento metafórico. Confiemos tais caprichos aos poetas. Para
chegar aonde pretendemos, não há necessidade de recorrer a nada vago
e difuso, como “tempos aurorais”, não precisamos lançar mão de nada
que não possa ser historicamente situado e documentado e escape ao
nosso esforço de cognição racional. Que a insubmissão, esta
insubmissão, acompanhe desde sempre a figura do poeta, podemos
detectá-lo, por exemplo, em Platão e sua República[5] , documento
datado e uma das matrizes do modo de ver em que, ainda hoje, assenta
a civilização a que pertencemos. Deixemos de lado, por um momento, a
aviltada realidade atual, para encetar um breve e sumário recuo de
2.500 anos.
Longo diálogo travado entre Sócrates e alguns interlocutores, a
propósito do tema nuclear da Justiça, a República resulta em ser a
descrição de uma utopia: o Estado ideal, a forma superior e perfeita
de organização social e de bem-aventurança, individual e coletiva.
Platão principia por determinar que Justiça e Verdade, em sentido
pleno, são indissociáveis, e situam-se num nível de realidade
substancial a que só o conhecimento filosófico tem acesso. Por assim
ser, caberá aos filósofos o governo da República, a fim de garantir
que Verdade e Justiça se distribuam com firmeza e temperança.
Assegurado o fundamento fornecido pelos filósofos, eliminada com
isso toda possibilidade de erro, a Cidade ideal se constrói, como um
todo harmonioso e estável.
Daí por diante, a concepção da República é uma luminosa premonição
das modernas estratégias de planejamento e gestão de recursos. Em
linguagem vulgar (creio que o filósofo ateniense nos perdoará o aligeiramento), a chave é a divisão do trabalho, com vistas à
racionalização de esforços e à otimização de resultados: funções
específicas serão confiadas às diversas categorias de cidadãos, de
modo a obter de cada um o desempenho máximo, capaz de atender ao
mesmo tempo às aptidões individuais e às necessidades coletivas:
cada qual em seu devido lugar, todos dando o melhor de si, em prol
do bem comum.
Ora, se cada cidadão fosse capaz de atinar por conta própria com o
“seu devido lugar”, com o “melhor de si” e com o “bem comum” (tal é
o raciocínio implícito na hierarquização de funções concebida para a
República), não haveria necessidade de uma classe de filósofos, os
únicos mortais, convém insistir, que têm acesso ao conhecimento e à
sabedoria definidores daquelas condições, sendo por essa razão que
se deve confiar a eles, e só a eles, o governo da Pólis. Tal é o
raciocínio implícito na hierarquização de funções concebida para a
República: os filósofos definem as regras, os demais obedecem e
cumprem, sem discussão. O fato, aliás exemplarmente platônico, de
que todos somos obrigados, hoje, a cumprir com regras estabelecidas,
digamos, pelos técnicos do FMI, mostra acima de tudo que cada tempo
tem os filósofos que merece. Daquele raciocínio (podemos retomá-lo,
depois do breve desvio) decorre que a saúde da República dependerá
não da sabedoria de todos, mas da submissão e da estrita obediência
dos cidadãos, perfeitamente adaptados às suas funções respectivas.
Sabedoria – Platão nos induz a reconhecê-lo – não é um dom
universal, mas prerrogativa dos filósofos governantes.
Como lidará, então, o governo da
República com o artesão que desista
de seu mister e pleiteie exercer o de guerreiro, ou vice-versa,
alegando sua inclinação natural ou sua aptidão comprovada? Ou com o
guerreiro que se candidate a governar? E que fazer com a hipótese do
cidadão eclético, disposto a assumir ou ao menos a experimentar,
concomitante ou alternadamente, várias funções? Mas seria um
contra-senso esperar que Sócrates e companheiros cogitassem dessa
ordem de hipóteses. Platão cuida do substancial, a Verdade e a
Justiça; adianta, mais, como deve ser o modo de organização do
Estado e das relações entre os homens; e afirma: esta é a Cidade
perfeita, mas não lhe importa averiguar se é, também, a Cidade
realizável.
Para erguer tal Cidade, em seus termos ideais, Platão não confia
unicamente nos filósofos; o ateniense conta com a colaboração
decisiva dos educadores. A Educação, concertada pelos filósofos, e
por isso igualmente alicerçada em Verdade e Justiça, se incumbirá de
preparar (programar?) todos os cidadãos, a fim de que estes
desempenhem a contento as funções que lhes forem destinadas. Devemos
supor (embora tenhamos dificuldade em imaginar como isto se daria)
que essa preparação prevenirá a eventualidade do cidadão
insatisfeito com seu papel e desejoso de mudar ou de assumir mais de
uma função. Para a boa consecução da República, Educação e governo
cuidarão de providenciar, na quantidade justa, cidadãos que, além de
respeitarem seus limites, estejam satisfeitos e felizes com a
limitação.
Muito tempo depois, Aldous Huxley[6] proporá uma solução para o
impasse: indivíduos geneticamente programados, produzidos em linha
de montagem, para atender aos interesses da Pólis. Restrição ou
supressão da liberdade? Tirania e totalitarismo? Tantos séculos
atrás, Platão talvez não tivesse como levar a sério a possibilidade
de tal crítica vir a ser feita à utópica República que admite até
mesmo uma classe de escravos. O filósofo ateniense lida com o ideal,
não com o realizável.
Com o realizável lidarão os administradores, os de antanho e os de
hoje, mas já não será mais o caso de alicerçar a vida da Pólis em
Verdade e Justiça, e sim em Produtividade e Lucro. Ao longo do
enorme lapso que separa a utopia platônica da anti-utopia de Huxley,
os filósofos serão alijados do governo, pelos economistas e os
empreendedores, e a garantia de submissão e obediência, bem como a
satisfação de cada indivíduo no exercício de suas funções, ficarão a
cargo da Comunicação Empresarial, externa e interna, em estreita
sintonia com Recursos Humanos, Propaganda e Marketing.
Um pouco abusado o excurso, reconheço, e excessivamente simplificada
a sinopse da República. Está claro que a complexidade da idealização
platônica se estende para muito além do tímido horizonte aqui
esboçado. Mas o que aí vai, creio, é leal ao pensamento do filósofo,
e é o que basta a nosso propósito, modesto, qual seja situar o
contexto em que se inscreve uma das primeiras manifestações formais
a respeito da função do poeta e da poesia, em nossa cultura. E
sugerir que no diálogo platônico em torno da Justiça ganha corpo,
também, a estratégia organizacional decisiva, moderníssima, que
consiste em adotar, e impor, uma interpretação, dentre várias
possíveis, como sendo a verdade absoluta. É um caso típico, diria Barbara H. Smith, de “autoprivilégio epistêmico absoluto”[7]. Se a
Verdade que serve de fundamento à República fosse um dado universal,
objetivo e inquestionável, Platão não precisaria despender tão
avantajado esforço, não precisaria sequer ter imaginado uma utopia:
bastaria planejar a execução da sociedade perfeita, antecipando-se
aos infalíveis gestores de hoje.
A sociedade “perfeita” (qualquer que seja a distorcida facciosidade
adotada como tal) será sempre incompatível com a perigosa idéia de
liberdade e com a mais perigosa ainda de indivíduos conscientes,
capazes de livre-escolha. Os sábios governantes, de qualquer
república, sabem ou simulam saber muito bem o que é melhor para
todos e não hesitam em impô-lo, contra a vontade e/ou a consciência
de quem quer que seja. Mas a questão que nos ocupa é outra: que
funções a República destina ao poeta?
Resposta: nenhuma. Como se sabe (e o tópico vem sendo glosado há
séculos), o ateniense opta por banir da República os poetas. Não
terá sido uma decisão fácil. O assunto é abordado de passagem no
livro I; vem tratado extensamente nos livros II e III, onde já se
define a deliberação; mas torna a aparecer no VIII e,
principalmente, no X, o fecho do diálogo, para que se reforcem os
argumentos contra a poesia. Se o caso não fosse tão complexo e
controvertido, Sócrates e convivas o teriam resolvido mais
rapidamente. Mas vamos à argumentação do filósofo.
Platão começa por tecer elogios a Homero, salientando o poder de
encantamento de sua voz e seu canto, a arte sublime que garante à
poesia o apreço em que é tida pelos cidadãos. Mas em seguida fixa,
entre outros, o argumento capital: o poeta lida com imitação da
imitação, afastando-se portanto da Verdade em três graus – um a mais
que o pintor, dois a mais que o artesão. Homero, Hesíodo e os demais
poetas, no entanto, são exímios em imprimir às suas imitações uma
intensidade tal que as torna tão persuasivas e convincentes quanto a
Verdade do filósofo. O mesmo transporte de emoção intensa (fictícia,
porém intensa), que leva o ouvinte a se deixar persuadir pelo poeta,
resulta, nesse mesmo ouvinte, na debilitação do caráter e da
vontade, fatores imprescindíveis à manutenção da Verdade comum, da
Justiça e da Felicidade. Como o poeta não se empenha em distinguir o
falso do verdadeiro, o injusto do justo, o ímpio do virtuoso,
pintando com as mesmas e convincentes cores a uns e outros, daí
segue que a poesia promoverá, no ouvinte, a mesma indistinção, a
mesma confusão dos retos valores que sustentam a Pólis. Se o efeito
indesejado se limitasse àquele instante fortuito em que o cidadão se
entretém com a voz do poeta, de modo que, antes e depois, os
trabalhos da República prosseguissem, inabaláveis, talvez não
houvesse muito que objetar. Mas, e Platão o sabe, a voz do poeta
costuma ecoar, em longos e imprevisíveis desdobramentos; confusão e
indistinção, dessa ordem, tendem a se alastrar. O filósofo não tem
alternativa senão desterrar o poeta.
A poesia, afinal, é um peso morto. Enquanto os demais cidadãos
desempenham cada qual a sua função útil, de modo disciplinado e
produtivo, o poeta não têm nenhuma função, não produz nada, a não
ser suas inúteis imitações de imitações. A poesia, embora largamente
apreciada, nada acrescenta ao esforço de todos na manutenção da
Justiça e na consecução da Felicidade. A lógica do argumento é
irrecorrível. Mas, se fosse apenas essa a razão – a inutilidade do
poeta –, haveria necessidade de tamanho rigor de parte do filósofo?
Certamente não. O fato é que, de acordo com sólida e arraigada
tradição, ainda vigente no século de Platão, a função da poesia não
é só comover e entreter, mas também educar. Não que os poetas se
arvorassem em educadores, pretendendo rivalizar com os pedagogos,
mas é nessa condição que o povo os considera. O encantamento, o
poder de sedução e a força persuasiva da fantasia poética tendem a
se transformar em “modelos”, que o ouvinte busca imitar. Ora, tomada
dessa forma pelo cidadão comum, como fonte de “exemplos” e
ensinamentos (falsos e impuros, já se vê: imitação da imitação), a
poesia representará verdadeiro foco de deseducação. Mais do que peso
morto, a poesia é uma séria ameaça à ordem e à estabilidade da República. O poeta, em suma, é expulso não por ser inútil ou
incapaz, mas por ser perigoso.
Com isso, a lógica platônica dá a entender que nem o elevado esforço
dos filósofos e dos educadores, nem o laborioso e homogêneo empenho
dos cidadãos bem avisados, em defesa da Verdade, são capazes de
enfrentar a inocência da imaginação poética. Bani-la da Cidade
perfeita é reconhecer-lhe o poderio. Absurdo, protestarão os
administradores e gestores das cidades realizáveis – os da nossa
aldeia global, por exemplo. Palavras, palavras, palavras, não mais –
dirão. E o poeta retrucará: “wordswordswords / swords”[8]. Mas eles
insistirão: de que modo isso pode desestabilizar uma bem planejada
república? Quando muito irá perturbar um ou outro indivíduo, já
predisposto à perturbação, mas nunca chegará a afetar a organização
geral da Pólis. E, ao que parece, assim tem sido. Essa espécie de
argumento cético e pragmático, solidamente assentado no seu
compromisso com a realidade dos fatos e nenhum com as idéias (no
sentido platônico, evidentemente), acabou por se tornar hegemônica,
ao longo dos séculos, desenvolvendo-se de modo prodigioso, no cerne
da portentosa árvore da ciência e da técnica, para culminar na
Maravilha global do nosso tempo.
Valeria a pena indagar quando se definiu esse rumo? Talvez tenha
sido no momento em que os bárbaros da futura Europa ocuparam o
Império Romano; ou logo depois, quando se consolidou a Cristandade,
com sua radical e irreversível ruptura entre tempo mítico e tempo
histórico; mas talvez tenha sido em tempos mais recentes: os
Descobrimentos, o Mercantilismo, o Colonialismo; ou mais recentes
ainda: a Revolução Industrial, o Neocolonialismo. Mas seria
irrelevante especular a respeito. Para o que nos importa, o
essencial é observar que em algum ponto no curso da História –
difícil se não impossível de precisar – aquela espécie de argumento,
atrás assinalada, tornou-se hegemônica e definiu os rumos que vimos
seguindo até hoje.
Em tempos aurorais, ou na aurora dos nossos tempos (retomar, agora,
a metáfora não causará nenhum dano), o arquiteto da República
relutou mas acabou por admitir seu temor ao poeta e por isso
desterrou-o; já os administradores das cidades realizáveis
desdenham, com arrogância crescente, não só o poeta e a poesia, como
também toda modalidade de idealização, a ponto de não tomarem sequer
o cuidado de enxotá-los de vez, permitindo que poeta, filósofo e
Ideal continuem por aí, sobrevivendo nos interstícios da Aldeia,
largados no monturo geral dos mitos inúteis e das excentricidades
obsoletas.
Com isso, a severa advertência de Platão continua a ecoar, e a nos
ensinar a lição de base: a Cidade perfeita exige a cessação das
mudanças e transformações, a utopia é a negação da História. Por
que? Porque a sociedade perfeita só é concebível como aquele limite
(fictício, porém imposto como verdadeiro) em que todos os recursos
materiais e humanos, como diriam nossos gestores, tenham atingido o
máximo de sua potencialidade, não havendo mais por quê nem por onde
evoluir. A Cidade perfeita é a negação da temporalidade. A História
se interrompe e estagna, sempre igual a si mesma, e devém eterno
presente. “Para Platão”, assevera Collingwood, “as substâncias são
imateriais embora não mentais; são formas objetivas. [...] Ora, uma
metafísica substancialista implica uma teoria de conhecimento
segundo a qual apenas o que é imutável é cognoscível. Mas o que é
imutável não é histórico. O que é histórico é o evento transitório.
A substância em que se manifesta um evento, ou de cuja natureza este
procede, não é nada para o historiador. Daí o fato de a tentativa de
pensar historicamente e a tentativa de pensar em termos de
substância serem incompatíveis.”[9]
Com efeito, a utopia da Cidade ideal, como a temos na
República, é
sinônimo de estabilidade e imutabilidade, não enquanto freio odioso,
que impeça a evolução, mas enquanto plenitude absoluta, finalmente
atingida. Platão não nos pergunta se tal meta é exeqüível, mas
garante-nos que Perfeição, seja o que for, é isto mesmo:
estabilidade, imobilidade, negação da História. E, portanto, negação
ou “superação” do conhecimento, da consciência, da liberdade...
Platão demonstra, ademais, que o grande inimigo da Perfeição é a
poesia, por sua vez sinônimo de afirmação da História, aposta
radical na mudança e na transformação incessantes.
Já o tínhamos assinalado no tópico precedente (“A poesia nos ensina
a ver como se víssemos pela primeira vez”), mas faltava elucidar: a
utopia só é pensável caso se admita que todas as coisas já tenham
sido satisfatoria e definitivamente vistas, que não haja mais o que
ver e, sobretudo, que não haja outros modos de ver – hipótese
firmemente repelida pelo poeta, que naturalmente só sabe lidar com a
variedade e o permanente dinamismo de suas imitações.
Muitos haverá que vejam, neste mundo globalizado em que nos é dado
viver; neste mundo regido pelo dogma da Produtividade e do Lucro;
muitos haverá que vejam aí o melhor dos mundos, a realização da
utopia. Já outros o verão como anti-utopia. Num caso e noutro, o
resultado é o mesmo: não temos escolha. Eis aí a Verdade única do
nosso tempo, como afiançam, e nem perdem tempo em discuti-lo, os
filósofos e os educadores da república que nos coube.
Não seria o caso de voltar a indagar (enquanto isso for possível):
para que serve a poesia? E repetir: a poesia nos ensina a ver como
se víssemos pela primeira vez. A História poderá confirmá-lo.
[1]
O presente ensaio é capítulo do livro Poesia e insubmissão (em
preparo).
[2]
Fernando Pessoa, Poemas de Alberto Caeiro, p. 22.
[3] V.
Referências bibliográficas.
[4]
Idem, p. 48.
[5] V.
Referências bibliográficas.
[6] V.
Referências bibliográficas.
[7] V.
Referências bibliográficas.
[8] José
Paulo Paes, Resíduo, p. 5.
[9] R.G.
Collingwood, A idéia de história, p. 74
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
APOLLONIO, Umbro (org.). Futurist manifestos, trad. amer., New York,
The Viking Press, 1973.
COLLINGWOOD, R.G. A idéia de história, trad. port., Lisboa,
Editorial Presença, s.d..
HUXLEY, Aldous. Admirável mundo novo, trad. bras., São Paulo, Abril,
1980.
PAES, José Paulo. Resíduo, São Paulo, Cultrix, 1980.
PESSOA, Fernando. Poemas de Alberto Caeiro, 3ª ed., Lisboa, Ática,
1958.
PLATÓN. República, trad. arg., Buenos Aires, Editorial Universitaria
de Buenos Aires, 1963.
SMITH, Barbara Herrnstein. Crença e resistência. A dinâmica da
controvérsia intelectual contemporânea, trad. bras., São Paulo,
Editora da Unesp, 2002.
Ensaio publicado na revista Tempo & Memória, São Paulo, Universidade
São Marcos, ano 1, no 1, 2º sem. 2003, p. 77-94.
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