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Carlos Haag

  
Sábado,
5 de dezembro de 1998 
Cultural, de A Tarde

 Autores tentam resgatar Pessoa com palavras e imagens 

         A Record está lançando a biografia do poeta escrita por Robert Bréchon, `Estranho  Estrangeiro', e a Civilização Brasileira traz para o Brasil sua fotobiografia, realizada por Maria  José de Lancastre 

      CARLOS HAAG 

      Ele dizia que nunca conhecera quem tivesse levado porrada e que seus amigos eram todos campeões em tudo. Já ele era sujo, irremediavelmente sujo. Isso poderia valer para um de seus heterônimos, mas não se aplicava a ele mesmo, ou melhor, ao Fernando Pessoa ele-mesmo. "Foi um homem solitário, mas não era maldito como, romanticamente, o vêem e não se afastou da sociedade; embora seu status social fosse inferior ao de sua família, Pessoa fez uma opção clara - moral, ontológica e metafísica - por esse estatuto de estrangeiro em sua cidade", disse, ao Estado, Robert Bréchon, autor da biografia do poeta português, que chamou justamente de Estranho Estrangeiro (Record, 602 páginas, R$ 45,00). Nos seus 110 anos, o poeta está mais do que nunca plural: a Companhia das Letras edita o Pessoa definitivo e Portugal publica seus poemas para crianças. Já a Civilização Brasileira lança Fernando Pessoa: uma Fotobiografia, de Maria José de Lancastre (320 págs., R$ 36,00). As fotos, ao contrário do escritor, não mentem jamais. 

      Afinal, o poeta é um fingidor. "Isso também foi uma estratégia existencial inventada por ele e, se seus heterônimos eram capazes de reagir com presteza a algo, Pessoa era o oposto e preferia fazer desvios pela inteligência, renunciando a viver e expressar coisas com exatidão, a não ser por esses
 atalhos racionais", analisa. "A sua ambição mais alta era ver o mundo não pelo ponto de vista da materialidade dos fatos, mas de algo mais profundo; esse fingimento permitia que o poeta não precisasse enfrentar a realidade só com seu coração, seu sentido, porém com seu espírito", completa o biógrafo. 

      É claro que disso sairão os seus vários poetas interiores, mas é preciso, antes, voltar um pouco no tempo para entender melhor esse processo. Nascido em Lisboa, em 1888, Fernando Pessoa viu-se, subitamente, após a morte do pai, em 1895, arrastado para a África do Sul, para onde a mãe se mudou depois de casar-se com um diplomata. 

      "Eis um momento fundamental em sua formação, pois, ao mesmo tempo que perdia a pátria - e isso voltará a ocorrer alguns anos mais tarde, quando retornou a Portugal, algo terrível para alguém tão sedentário como ele, arredio à mudanças -, Pessoa sofreu com o que chamava de traição de sua mãe,
 por quem se sentiu abandonado: esse foi um trauma de que nunca se recuperou", assegura Bréchon. 

      "Além disso, foi quando desenvolveu uma relação toda particular com a língua inglesa, que aprenderia na África, e passou a ambicionar transformar-se num poeta inglês", conta. "Mesmo em Lisboa, de volta, ele ainda escreveu naquele idioma e demorou a se decidir pelo português; há mesmo quem diga que Pessoa passou a vida pensando em inglês", observa o pesquisador. 

      De volta a Portugal - Foi também em Durban, cidade onde leu o que pôde, que teve início o seu processo despersonalizante com a invenção de dois heterônimos incipientes, Alexander Search e Charles Robert Arnon. Com 17 anos, deixa a África e volta à terra natal. "Foi uma aclimatação difícil,
 porém, como descreve Álvaro de Campos (Lisbon Revisited), Pessoa maravilhou-se com a capital lusitana e seu charme infinito." 

      Embora tenha chegado em casa só e ido viver com a sua tia, Arnica, vendo a mãe e o padrasto apenas quando eles estavam em férias. O clima no país não era dos mais estáveis: em 1908, o rei e seu herdeiro são assassinados; dois anos depois, a república era proclamada e por décadas Portugal será sacudida por golpes de Estado, greves e revoltas de monarquistas. 

      "Isso deixará marcas em sua personalidade, pois ele não era lá nenhum partidário da Revolução Francesa, mas um nostálgico de uma monarquia dos melhores, um partidário das oligarguias, de um povo submetido à vontade de um homem, bom, mas forte e, sem dúvida, Pessoa pode ser mais bem
 definido como de direita", fala. "Quando Salazar, de ministro, em 1928, montou o seu Estado Novo, de moldes fascistas, em 1933, o poeta acolheu-o como um salvador." 

      "Aos poucos, a relação com o regime deteriorou-se, porque, se nele havia um desejo de modernidade, em Salazar ele percebeu apenas reacionarismo e tradições antiquadas; ao fim da vida, o poeta era totalmente anti-salazarista, foi atacado pelos partidários do ditador e retrucou com comentários terríveis sobre o seu despotismo", ressalta o pesquisador. "Sua adesão inicial ao Estado Novo, entre 1932 e 1933, foi apenas provisória e era bastante racional." 

      Máscaras - Antes disso, porém, em 1914, irrompeu, antes da guerra, o primeiro heterônimo: Alberto Caieiro. "Essa foi a solução que ele achou para seus problemas existenciais, foi uma necessidade interior, o repouso de uma alma que, dessa forma, podia exibir suas contradições, suas várias visões de mundo e o lado negro de sua personalidade", observa Bréchon. "São máscaras que ele assume para conseguir exprimir melhor o seu ser e o seu não-ser, algo de que ele tem consciência e o faz sofrer", continua. 

      "O seu projeto é criar várias personalidades a fim de, `estrangeirado' de si, arranjar novos meios de expressão, para absorver, reter fluxos de pensamentos, sentimentos, imaginação, sem ter de pôr essas coisas em prática: os heterônimos são, acima de tudo, canais de experimentação em que ele está a salvo do mundo real." 

      Experimentando o ser, sem o ser, Pessoa podia organizar sua existência como um dramaturgo que controla, de longe, seus personagens, todos eles mais ou menos vivos. "Para ele, uma pessoa só existia por causa de pensamentos e sensações", diz o biógrafo. "É algo que lembra muito os romances heteróclitos de Balzac, com o regresso de personagens, ou os motivos condutores da música de Wagner; só que, enquanto esses dois usavam esse meios para fins estéticos, Pessoa fazia dos heterônimos um modo de organização de sua vida e de sua obra, uma saída para problemas pessoais e estéticos simultaneamente". 

      Bréchon rejeita, enfaticamente, qualquer análise psicológica. "São absurdas e Pessoa não tinha nenhum sintoma de patologia psiquiátrica", encerra. 

      A saída, no entanto, não o livrava do pessimismo. "Ele via o mundo com olhos trágicos e cria que o homem era mal; essa condição só lhe era atenuada por uma esperança, religiosa, de vida eterna (em total contradição com Álvaro de Campos) e pela obsessão da criação de uma obra de alto nível", acredita o autor. 

      Esoterismo e sexualidade - A religião estava igualmente presente em duas outras facetas da vida de Pessoa: o esoterismo e a sua sexualidade. "O esoterismo era uma mania desde os tempos de criança e virou algo sério quando ele se encontrou com o mago inglês Aleister Crowley, em 1930, que
 mudou uma paixão infantil numa visão do poeta de que esses poderes espirituais, as ciências ocultas, seriam metáforas, símbolos de sua concepção poética", revela. 

      O oculto vai igualmente adentrar o seu fascínio pelo passado e perpassar o seu culto a um Quinto Império, mito tradicional português, um sebastianismo transfigurado. "Só que ele o tomava no sentido dado a essa utopia milenarista pelo padre Vieira, que lhe dava um estatuto de realidade concreta, a ser
 realizada em um dado tempo e lugar, Portugal", diz. 

      Pessoa retransforma ainda mais o mito e substitui os quatro primeiros impérios da tradição por quatro momentos da civilização, de Roma ao iluminismo, prevendo que o Quinto Império seria cultural, nada tendo a ver com colonialismos e poder das armas. Caberia, então, ao povo lusitano a difusão da idéia apolínea pela humanidade. "É quando o poeta usa o oculto na história, na memória coletiva, na nacionalidade." Ou, nas palavras de Pessoa: "Quero ser um criador de mitos, que é o mistério mais alto que pode obrar alguém da humanidade." 

      No entanto, o poeta não podia imaginar que a sua sensualidade adquirisse também contornos míticos, batizada por Bréchon de "sexualidade branca", um dos pontos menos estudados e compreendidos de sua biografia. "Ele diz amar as mulheres, mas com a condição de permanecer estrangeiro ao sexo, adorando-as platônica e idealmente, como seres que devem caracterizar-se pela pureza, pela virgindidade", afirma. "Isso se relaciona com sua formação religiosa e as idéias de pecado e, ao mergulhar nessa idealização feminina, Pessoa mais parece adorar a Virgem Maria do que a mulher de carne e osso", completa. "É uma libido perversa, cujo erotismo reúne prazer e horror e nos Poemas em Prosa, em que fala com mais crueza sobre o sexo, é sensível o seu esforço para falar de algo que não conseguia enfrentar no seu cotidiano." 

      Poucos testemunhos - "A compulsão mais importante em Pessoa é o seu masoquismo, que percorre toda a sua obra, bem mais do que o componente homossexual, que não é essencial nele, antes só se efetiva, de forma incontestável, nos seus textos", avisa. "No entanto, saber se havia relação direta entre a sua imaginação erótica e a realidade do amor físico esbarra na ausência de testemunhos outros além de suas cartas a Ofélia, em que, num tom afetuoso, falava sobre amor livre, pedofilia e outros tópicos sexuais." 

      "Já que não podia fazer sexo, Pessoa deixava escapar, nessas cartas, o seu erotismo", conta Bréchon. Ofélia Queirós conheceu o autor de Mensagem em 1919, quando ela tinha 19 anos, poucos estudos e um emprego de datilógrafa junto ao poeta. Corresponderam-se por alguns meses, até que ele
 rompeu relações em dezembro de 1920. Pessoa surpreendia sua Ofelinha com bilhetinhos pedindo beijos, saltava em sua frente e recitava a declaração de Hamlet a Ofélia e, acima de tudo, escrevia-lhe cartas em que a tratava de "meu bebé", "minha bonequinha", pedindo à moça: "Vem cá, bem para o pé
 do Nininho." Apesar de reveladoras, Álvaro de Campos tinha razão em desabafar (talvez como catarse do ele-mesmo): "Todas as cartas de amor são ridículas." 

      Mas, às vezes, o tom falsamente infantil dá lugar a ousadias maiores: Pessoa dizia-lhe sonhar em lhe dar açoites e receber, ele também, a sua porção de chicotes. "Nesses momentos de excesso, não é Pessoa que escreve, mas como se estivesse possuído por um de seus heterônimos, porque a sua sexualidade branca não lhe permitia habitar o seu próprio corpo: Ofélia sabia muito bem disso e chegava a dizer que odiava, por exemplo, Álvaro de Campos", diz Bréchon. "Só gosto do Pessoa", insistia a musa e secretária. Ao que o poeta retrucava: "Não sei por quê: olha que ele gosta muito de ti." 



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